MARIA E O CARMELO (II PARTE)
Emanuele Boaga, O. Carm.
III - Da
petição à consagração a Maria
21. Nos primeiros escritores medievais da Ordem não
encontramos nada sobre a invocação de Maria nas necessidades da vida, mesmo
sendo uma prática espontânea e natural entre os Carmelitas. As gerações
seguintes desenvolveram este tema colocando suas motivações. Entre estes,
recordamos o prior geral Miguel Aiguani de Bolonha, morto em 1400. Realmente,
invocar e recorrer à Virgem Santa nas várias circunstâncias da vida quotidiana,
é sinal certo de enorme fé em seu materno amor e na sua presença intercessora diante
de Deus. Tal fé é certamente agradável a Nossa Senhora, pois demonstra a
confiança de filhos naqueles que a ela recorrem. Deus desejou Maria não somente
para ser sua Mãe, mas a tornou a poderosa intercessora por todos nós. Recorrer
sempre a ela significa também estar conforme o desígnio de Deus.
22. Sobre este assunto, são belíssimas as páginas
de Arnoldo Bostio (1445-1499) em seu De patronatu et patrocinio Beatissimae
Virginis Mariae in dicatum sibi Carmeli Ordinem, escrito em 1479. Nesta obra
Bostio, depois de resumir toda a tradição mariana precedente, convida o
Carmelita a habituar-se, em cada circunstância da vida, a interceder à Virgem e
não somente para obter graças e ajuda de Deus através de sua mediação, mas
também para tudo oferecer a Deus e mesmo consagrar-lhe todas as próprias ações
23. A oração apenas em alguns momentos não é
suficiente para aquele que ama Maria. Por isso Arnoldo Bostio aconselha
trazê-la sempre presente na mente: Que a sua recordação amorosa o acompanhe de
dia e de noite, durante as suas atividades, trabalhos, conversações; em meio a
suas alegrias ou tristezas, em seu repouso. Ela ocupe sempre o primeiro lugar
em sua memória. E, enfim, faz a sugestão para oferecer tudo a Deus, pelas mãos
puríssimas de Maria, porque aquilo que lhe chega por estas mãos é mais
agradável a Ele: Qualquer coisa que oferecer a Deus, não deixe de ser
recomendada pelas mãos de Maria, pois Ela cuidará bem da oferta de seu irmão.
24. Um dos escritores do século XVII, frei Marcos
da Natividade, não hesitou em afirmar e ensinar que esta prática é obrigatória
para cada Carmelita. E frei Alexandro Van den Bergh, o discípulo predileto de
frei Miguel do S. Agostinho, exclamava: No Carmelo ninguém se torna santo e bom
sem nutrir uma especial devoção a Nossa Senhora. A devoção carmelitana a Maria
torna-se portanto, assim compreendida:
- o verdadeiro Carmelita deve viver para glorificar
a Virgem Santíssima;
- deve imitá-la com generoso empenho dentro das
próprias possibilidades;
- deve invocar sempre o seu grande patrocínio;
- deve enfim, oferecer tudo e a si mesmo a Deus,
através de suas mãos puríssimas.
25. Uma devoção assim entendida, não se baseia,
naturalmente em práticas de determinados exercícios de piedade, mas consiste,
ao contrário, em um modo de viver em permanente contato e união espiritual com
a Mãe Celeste. Consiste, em outras palavras, em uma familiaridade de vida com
Maria, que exige um profundo processo de purificação e de conversão que permeia
todo o ser até alcançar a completa consagração a Deus. É esta a verdadeira
devoção mariana que o Carmelo ensina.
IV - No cume
do amor
26. Entre os autores que, sobretudo na época
moderna, aprofundaram esta dinâmica da vida mariana no Carmelo, ocupa um lugar
de relevo frei Miguel de S. Agostinho (+1684), com o seu pequeno mas célebre
tratado sobre a vida mariana: Vita marieforme e mariana. Ele propõe um vida de
comunhão intensa com Maria, como uma nova maneira para viver em Deus. É difícil
explicar e descrever tal vida, por isto ele sublima a necessidade de
experimentá-la para conhecê-la. Ela vem descrita utilizando o recurso da
linguagem simbólica e mística.
27. Tal vida marieforme não se torna em obstáculo
ao cristocentrismo, caminho espiritual de cada cristão, mas antes é ajuda e
estímulo para bem vivê-lo, pois, o reino de Maria não é contrário ao Reino de
Jesus, mas a este, totalmente ordenado. A vida marieforme, explica o nosso
autor, é uma vida conforme a vontade de Maria e um solícito e alegre
compromisso para a realização da vida teologal. Realiza-se em um viver em Maria
e por Maria. Viver em Maria, significa desenvolver um esforço para conservar e
fazer crescer em nós uma conversão filial, afetuosa e pura da alma, que passa a
buscar em Maria inspiração amorosa para a própria vida como se busca o ar para
a vida natural. Desta forma, o amor para com Maria e através dela para com
Deus, tem um suave fluxo e refluxo. A vida por Maria consiste no empenho de
todas as forças de forma que Maria seja, em cada coisa, honrada, glorificada e
amada; que o seu reino seja promovido com a realização e o crescimento do Reino
de seu Filho Jesus Cristo. A vida marieforme e mariana chega à máxima expressão
quando se se deixa animar pelo espírito de Maria até a própria transformação nela.
28. Miguel de S. Agostinho fundamenta toda a sua
posição mariana não em visões particulares, e sim sobre a doutrina da Igreja da
mediação e maternidade espiritual de Maria, insistindo sobre a singular união
de Maria com Deus. Isto lhe permite afirmar que a contemplação de Maria conduz,
necessariamente, à contemplação de Deus e se une a esta: Maria serve de meio e
conduz à mais forte ligação da alma com Deus.
29. Esta forma de espiritualidade, conduzindo a
precisa e forte orientação mística e contemplativa, é o ponto culminante da
doutrina mariana carmelitana. O Pe. Miguel de S. Agostinho, ao tratá-la, tinha
diante de si a admirável experiência mística da terciária carmelita por ele
dirigida, Maria Petyt (1623-77). Testemunhos notáveis, desta linha de percepção
da função de Maria na vida espiritual, podem ser encontrados também em outras
figuras carmelitanas, entre as quais o venerável Frei João de São Sansão (1571-1636),
a venerável Serafina de Deus (1621-99) e Maria de S. Pedro (1816-1848). Também
neste sentido podem ser entendidos os textos que descrevem experiência análoga
de Balduino Leersio (†1483) e de S. Teresa de Jesus (†1582). Também, muitas
vezes no passado, nos escritos dos autores místicos carmelitanos, Maria está
presente como Mãe e Modelo do itinerário espiritual.
30. Esta mesma referência, caracterizada pela
familiaridade de vida com Maria, tomando-a também como modelo, é possível
encontrar na experiência interior de figuras como S. Teresa do Menino Jesus
(†1897), Beata Elisabete da Trindade (†1906), Ir. Teresa Benedita da Cruz
(Edith Stein - †1942) e Frei Tito Brandsma, mártir em Dachau (†1942). Este
exortava a buscar a semelhança com Maria, porque o escopo da verdadeira devoção
a Ela é tornar-se uma outra Mãe de Deus, de forma que Deus seja concebido em
nós e levado por nós ao mundo.
V - Reproduzir
e continuar o amor de Jesus por Maria
31. O argumento pode parecer que já esteja
esgotado, porém, permanece ainda um outro aspecto fortemente presente na vida
mariana do Carmelo. Cada cristão modela seu ideal a partir do próprio Cristo:
Ele é membro da Igreja, Corpo Místico de Cristo, cuja vida prolonga na terra,
até o final dos tempos e na sua própria vida sobrenatural é alimentado pelo
Espírito de Cristo. Neste contexto a devoção da Igreja para com Nossa Senhora
torna-se uma manifestação no tempo e no espaço, do amor de Jesus para com sua
Mãe Maria. Respeitadas as devidas proporções, isto que se afirma da Igreja,
pode ser dito de cada cristão que, como membro do Corpo Místico, vive do mesmo
espírito de Jesus, recebido no Batismo e na Crisma e que continua a receber
abundantemente no seu caminho de maturação da fé. Sob a ação do mesmo Espírito,
cada cristão no reproduzir Jesus em si, exprime o outro aspecto da infinita
perfeição do Divino Mestre.
32. Já por volta de 1370, o carmelita João de
Hildesheim aplica esta realidade às ordens religiosas que buscam no mistério da
Igreja um particular sentido e um modo próprio de imitar a Jesus Cristo. Entre
estas Ordens religiosas, ele afirma que o Carmelo tem a missão de reproduzir o
amor de Jesus por Maria. Este pensamento abriu a gerações de carmelitas vastos
horizontes para sua vivência da devoção a Maria: o amor a ela, por mais ardente
que seja, nunca pode igualar-se àquele de Jesus por sua Mãe.
33. Muito tempo depois, o já lembrado Pe. Miguel de
S. Agostinho acrescentava a este pensamento uma consideração profunda e de
grande valor para a vida mariana. Ele diz que, realmente, através da imitação
do amor de Jesus por Maria, sua Mãe, realiza-se também a continuidade daquele
amor. Isto significa que participando nós do Espírito e vivendo deste,
tornamo-nos cheios da sua força vital, de forma que Jesus mesmo continua a
viver em nós e vivendo em nós, em conseqüência, por nosso intermédio, há de
amar sua Mãe sobre a terra, enquanto, ao mesmo tempo, a torna feliz com seu
amor no céu.
Maria inspiradora hoje
34. Todo este rico patrimônio mariano ficou em
parte esquecido ou ignorado pelos próprios Carmelitas durante o século XIX e
parte do século XX. Isso foi causado por vários fatores, entre os quais as
supressões das corporações religiosas pelos vários governos, particularmente na
Europa e na América latina.
35. Nas últimas décadas do nosso tempo - dentro da
Família Carmelitana - percebe-se uma recuperação e uma redescoberta dos valores
conectados com a vivência precedente. Há ênfase em Maria Mãe e Irmã à luz de
aprofundamentos teológicos, que levam as atuais gerações carmelitanas a tomarem
Maria como modelo de vivência profética dos valores da espiritualidade
carmelitana, ou seja:
- Contemplação para olhar o mundo com os olhos de
Deus e amá-lo com seu coração. Por isso vê-se em Maria a fiel ouvinte da
Palavra, a discípula de Jesus na fé, a sua busca com coração puro;
- Fraternidade, vendo em cada ser humano um irmão,
porque filho do mesmo Pai- Deus. Por isso vê-se em Maria a animadora da
comunidade de Jerusalém e a sua presença entre nós, próxima de nós;
- Serviço, prestando aos irmãos o serviço com
qualidade evangélica a fim de alcançar a justiça e a paz. Por isso vê-se em
Maria a conformidade com a vontade divina, o compromisso concreto com o
desígnio de Deus; a disponibilidade no serviço, a testemunha fiel do Reino, a
pertença aos pobres de Javé.
VI - O
Escapulário
36. Finalmente, não se pode tratar da vida mariana
do Carmelo sem fazer menção ao Escapulário, porque do século XV em diante vê-se
nele simbolizada as suas relações com Maria: a própria consagração a ela e a
especial proteção de Nossa Senhora para com seus devotos que através dele se
afiliam à Família Carmelitana. Justamente, o Papa João Paulo II, na sua recente
carta à Família Carmelitana, destaca esta realidade, acrescentando que a mesma
devoção constitui “um tesouro para toda a Igreja”, graças à sua simplicidade,
valor antropológico e relação com o papel de Maria nas diversas vicissitudes da
Igreja e da humanidade.
37. Por isto, atualmente, no Carmelo, o Escapulário
é considerado sinal de duas realidades:
da materna proteção da Mãe celeste, que é também a Mãe de Jesus, e da filial
consagração a ela. Revestir-se do Escapulário e trazê-lo dignamente, é
afiliar-se a uma Ordem eminentemente mariana e participar ao mesmo tempo, do
dinamismo de sua vida no mistério da Igreja. Tal postura significa que os valores
inseridos na devoção ao Escapulário, como a fé na intercessão da Mãe de Deus em
relação ao mais importante interesse humano, a salvação, devem ser realizados
sempre, na imitação dos exemplos evangélicos de Maria, superando cada tentação
de resultados mágicos.
38. E a consagração de que se faz referência tem
dois pontos essenciais: consagramo-nos a Deus no espírito de Maria, simbolizado
pelo Escapulário, porque esta tem como finalidade a consagração a Deus mesmo.
Então, mais profundamente Deus nos consagra, doando-nos Maria, a Senhora do
Carmo, como Patrona, Mãe e Irmã, e nós nos tornamos consagrados acolhendo este
grande dom.
39. Este dom deve ter para cada membro da família
carmelitana o mesmo significado que teve para João o discípulo predileto de Jesus,
quando no Calvário o recebeu: nós acolhemos Maria entre as coisas mais
preciosas que nos pertencem. Isto significa que tomamos a pessoa de Maria como
membro da Comunidade concreta que é a Igreja, o corpo de Cristo, e de forma
também particular em nossa família carmelitana. A consagração, em definitivo,
implica uma mais profunda aceitação do dom de sua Mãe feita a nós pelo Salvador
e um compromisso sempre maior e mais autêntico para com a comunidade eclesial
que ela representa.
40. Portanto, o Escapulário mesmo, torna-se sinal
da verdadeira devoção a Nossa Senhora. Contém uma íntima, pessoal e contínua
exortação, ao menos habitual,
- à invocação e louvor a Maria,
- à imitação de suas virtudes,
- e a oferecer a Deus tudo por meio dela.
Torna-se o Escapulário, expressão concreta do amor
e da vontade decisiva de viver a própria existência apoiando-se em Maria, Mãe,
Patrona e Irmã. Busca-se nela o perfeito modelo sobre o qual se deseja plasmar
a própria vida, sustentada pela oração e pela humildade; pela transparente
pureza do coração; pela escuta da Palavra de Deus; pelo serviço dedicado aos irmãos; e sempre na consciência
de sua presença no próprio caminho até a Casa
do Pai.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
DEIXE AQUI SEU SUA SUGESTÃO