domingo, 1 de julho de 2012


MARIA E O CARMELO (II PARTE)
Emanuele Boaga, O. Carm.

III - Da petição à consagração a Maria

21. Nos primeiros escritores medievais da Ordem não encontramos nada sobre a invocação de Maria nas necessidades da vida, mesmo sendo uma prática espontânea e natural entre os Carmelitas. As gerações seguintes desenvolveram este tema colocando suas motivações. Entre estes, recordamos o prior geral Miguel Aiguani de Bolonha, morto em 1400. Realmente, invocar e recorrer à Virgem Santa nas várias circunstâncias da vida quotidiana, é sinal certo de enorme fé em seu materno amor e na sua presença intercessora diante de Deus. Tal fé é certamente agradável a Nossa Senhora, pois demonstra a confiança de filhos naqueles que a ela recorrem. Deus desejou Maria não somente para ser sua Mãe, mas a tornou a poderosa intercessora por todos nós. Recorrer sempre a ela significa também estar conforme o desígnio de Deus.

22. Sobre este assunto, são belíssimas as páginas de Arnoldo Bostio (1445-1499) em seu De patronatu et patrocinio Beatissimae Virginis Mariae in dicatum sibi Carmeli Ordinem, escrito em 1479. Nesta obra Bostio, depois de resumir toda a tradição mariana precedente, convida o Carmelita a habituar-se, em cada circunstância da vida, a interceder à Virgem e não somente para obter graças e ajuda de Deus através de sua mediação, mas também para tudo oferecer a Deus e mesmo consagrar-lhe todas as próprias ações

23. A oração apenas em alguns momentos não é suficiente para aquele que ama Maria. Por isso Arnoldo Bostio aconselha trazê-la sempre presente na mente: Que a sua recordação amorosa o acompanhe de dia e de noite, durante as suas atividades, trabalhos, conversações; em meio a suas alegrias ou tristezas, em seu repouso. Ela ocupe sempre o primeiro lugar em sua memória. E, enfim, faz a sugestão para oferecer tudo a Deus, pelas mãos puríssimas de Maria, porque aquilo que lhe chega por estas mãos é mais agradável a Ele: Qualquer coisa que oferecer a Deus, não deixe de ser recomendada pelas mãos de Maria, pois Ela cuidará bem da oferta de seu irmão.

24. Um dos escritores do século XVII, frei Marcos da Natividade, não hesitou em afirmar e ensinar que esta prática é obrigatória para cada Carmelita. E frei Alexandro Van den Bergh, o discípulo predileto de frei Miguel do S. Agostinho, exclamava: No Carmelo ninguém se torna santo e bom sem nutrir uma especial devoção a Nossa Senhora. A devoção carmelitana a Maria torna-se portanto, assim compreendida:
- o verdadeiro Carmelita deve viver para glorificar a Virgem Santíssima;
- deve imitá-la com generoso empenho dentro das próprias possibilidades;
- deve invocar sempre o seu grande patrocínio;
- deve enfim, oferecer tudo e a si mesmo a Deus, através de suas mãos puríssimas.

25. Uma devoção assim entendida, não se baseia, naturalmente em práticas de determinados exercícios de piedade, mas consiste, ao contrário, em um modo de viver em permanente contato e união espiritual com a Mãe Celeste. Consiste, em outras palavras, em uma familiaridade de vida com Maria, que exige um profundo processo de purificação e de conversão que permeia todo o ser até alcançar a completa consagração a Deus. É esta a verdadeira devoção mariana que o Carmelo ensina.

IV - No cume do amor

26. Entre os autores que, sobretudo na época moderna, aprofundaram esta dinâmica da vida mariana no Carmelo, ocupa um lugar de relevo frei Miguel de S. Agostinho (+1684), com o seu pequeno mas célebre tratado sobre a vida mariana: Vita marieforme e mariana. Ele propõe um vida de comunhão intensa com Maria, como uma nova maneira para viver em Deus. É difícil explicar e descrever tal vida, por isto ele sublima a necessidade de experimentá-la para conhecê-la. Ela vem descrita utilizando o recurso da linguagem simbólica e mística.

27. Tal vida marieforme não se torna em obstáculo ao cristocentrismo, caminho espiritual de cada cristão, mas antes é ajuda e estímulo para bem vivê-lo, pois, o reino de Maria não é contrário ao Reino de Jesus, mas a este, totalmente ordenado. A vida marieforme, explica o nosso autor, é uma vida conforme a vontade de Maria e um solícito e alegre compromisso para a realização da vida teologal. Realiza-se em um viver em Maria e por Maria. Viver em Maria, significa desenvolver um esforço para conservar e fazer crescer em nós uma conversão filial, afetuosa e pura da alma, que passa a buscar em Maria inspiração amorosa para a própria vida como se busca o ar para a vida natural. Desta forma, o amor para com Maria e através dela para com Deus, tem um suave fluxo e refluxo. A vida por Maria consiste no empenho de todas as forças de forma que Maria seja, em cada coisa, honrada, glorificada e amada; que o seu reino seja promovido com a realização e o crescimento do Reino de seu Filho Jesus Cristo. A vida marieforme e mariana chega à máxima expressão quando se se deixa animar pelo espírito de Maria até a própria transformação nela.

28. Miguel de S. Agostinho fundamenta toda a sua posição mariana não em visões particulares, e sim sobre a doutrina da Igreja da mediação e maternidade espiritual de Maria, insistindo sobre a singular união de Maria com Deus. Isto lhe permite afirmar que a contemplação de Maria conduz, necessariamente, à contemplação de Deus e se une a esta: Maria serve de meio e conduz à mais forte ligação da alma com Deus.

29. Esta forma de espiritualidade, conduzindo a precisa e forte orientação mística e contemplativa, é o ponto culminante da doutrina mariana carmelitana. O Pe. Miguel de S. Agostinho, ao tratá-la, tinha diante de si a admirável experiência mística da terciária carmelita por ele dirigida, Maria Petyt (1623-77). Testemunhos notáveis, desta linha de percepção da função de Maria na vida espiritual, podem ser encontrados também em outras figuras carmelitanas, entre as quais o venerável Frei João de São Sansão (1571-1636), a venerável Serafina de Deus (1621-99) e Maria de S. Pedro (1816-1848). Também neste sentido podem ser entendidos os textos que descrevem experiência análoga de Balduino Leersio (†1483) e de S. Teresa de Jesus (†1582). Também, muitas vezes no passado, nos escritos dos autores místicos carmelitanos, Maria está presente como Mãe e Modelo do itinerário espiritual.

30. Esta mesma referência, caracterizada pela familiaridade de vida com Maria, tomando-a também como modelo, é possível encontrar na experiência interior de figuras como S. Teresa do Menino Jesus (†1897), Beata Elisabete da Trindade (†1906), Ir. Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein - †1942) e Frei Tito Brandsma, mártir em Dachau (†1942). Este exortava a buscar a semelhança com Maria, porque o escopo da verdadeira devoção a Ela é tornar-se uma outra Mãe de Deus, de forma que Deus seja concebido em nós e levado por nós ao mundo.
 
V - Reproduzir e continuar o amor de Jesus por Maria

31. O argumento pode parecer que já esteja esgotado, porém, permanece ainda um outro aspecto fortemente presente na vida mariana do Carmelo. Cada cristão modela seu ideal a partir do próprio Cristo: Ele é membro da Igreja, Corpo Místico de Cristo, cuja vida prolonga na terra, até o final dos tempos e na sua própria vida sobrenatural é alimentado pelo Espírito de Cristo. Neste contexto a devoção da Igreja para com Nossa Senhora torna-se uma manifestação no tempo e no espaço, do amor de Jesus para com sua Mãe Maria. Respeitadas as devidas proporções, isto que se afirma da Igreja, pode ser dito de cada cristão que, como membro do Corpo Místico, vive do mesmo espírito de Jesus, recebido no Batismo e na Crisma e que continua a receber abundantemente no seu caminho de maturação da fé. Sob a ação do mesmo Espírito, cada cristão no reproduzir Jesus em si, exprime o outro aspecto da infinita perfeição do Divino Mestre.

32. Já por volta de 1370, o carmelita João de Hildesheim aplica esta realidade às ordens religiosas que buscam no mistério da Igreja um particular sentido e um modo próprio de imitar a Jesus Cristo. Entre estas Ordens religiosas, ele afirma que o Carmelo tem a missão de reproduzir o amor de Jesus por Maria. Este pensamento abriu a gerações de carmelitas vastos horizontes para sua vivência da devoção a Maria: o amor a ela, por mais ardente que seja, nunca pode igualar-se àquele de Jesus por sua Mãe.

33. Muito tempo depois, o já lembrado Pe. Miguel de S. Agostinho acrescentava a este pensamento uma consideração profunda e de grande valor para a vida mariana. Ele diz que, realmente, através da imitação do amor de Jesus por Maria, sua Mãe, realiza-se também a continuidade daquele amor. Isto significa que participando nós do Espírito e vivendo deste, tornamo-nos cheios da sua força vital, de forma que Jesus mesmo continua a viver em nós e vivendo em nós, em conseqüência, por nosso intermédio, há de amar sua Mãe sobre a terra, enquanto, ao mesmo tempo, a torna feliz com seu amor no céu.
Maria inspiradora hoje

34. Todo este rico patrimônio mariano ficou em parte esquecido ou ignorado pelos próprios Carmelitas durante o século XIX e parte do século XX. Isso foi causado por vários fatores, entre os quais as supressões das corporações religiosas pelos vários governos, particularmente na Europa e na América latina.

35. Nas últimas décadas do nosso tempo - dentro da Família Carmelitana - percebe-se uma recuperação e uma redescoberta dos valores conectados com a vivência precedente. Há ênfase em Maria Mãe e Irmã à luz de aprofundamentos teológicos, que levam as atuais gerações carmelitanas a tomarem Maria como modelo de vivência profética dos valores da espiritualidade carmelitana, ou seja:
- Contemplação para olhar o mundo com os olhos de Deus e amá-lo com seu coração. Por isso vê-se em Maria a fiel ouvinte da Palavra, a discípula de Jesus na fé, a sua busca com coração puro;
- Fraternidade, vendo em cada ser humano um irmão, porque filho do mesmo Pai- Deus. Por isso vê-se em Maria a animadora da comunidade de Jerusalém e a sua presença entre nós, próxima de nós;
- Serviço, prestando aos irmãos o serviço com qualidade evangélica a fim de alcançar a justiça e a paz. Por isso vê-se em Maria a conformidade com a vontade divina, o compromisso concreto com o desígnio de Deus; a disponibilidade no serviço, a testemunha fiel do Reino, a pertença aos pobres de Javé.

VI - O Escapulário

36. Finalmente, não se pode tratar da vida mariana do Carmelo sem fazer menção ao Escapulário, porque do século XV em diante vê-se nele simbolizada as suas relações com Maria: a própria consagração a ela e a especial proteção de Nossa Senhora para com seus devotos que através dele se afiliam à Família Carmelitana. Justamente, o Papa João Paulo II, na sua recente carta à Família Carmelitana, destaca esta realidade, acrescentando que a mesma devoção constitui “um tesouro para toda a Igreja”, graças à sua simplicidade, valor antropológico e relação com o papel de Maria nas diversas vicissitudes da Igreja e da humanidade.

37. Por isto, atualmente, no Carmelo, o Escapulário é considerado sinal de duas  realidades: da materna proteção da Mãe celeste, que é também a Mãe de Jesus, e da filial consagração a ela. Revestir-se do Escapulário e trazê-lo dignamente, é afiliar-se a uma Ordem eminentemente mariana e participar ao mesmo tempo, do dinamismo de sua vida no mistério da Igreja. Tal postura significa que os valores inseridos na devoção ao Escapulário, como a fé na intercessão da Mãe de Deus em relação ao mais importante interesse humano, a salvação, devem ser realizados sempre, na imitação dos exemplos evangélicos de Maria, superando cada tentação de resultados mágicos.

38. E a consagração de que se faz referência tem dois pontos essenciais: consagramo-nos a Deus no espírito de Maria, simbolizado pelo Escapulário, porque esta tem como finalidade a consagração a Deus mesmo. Então, mais profundamente Deus nos consagra, doando-nos Maria, a Senhora do Carmo, como Patrona, Mãe e Irmã, e nós nos tornamos consagrados acolhendo este grande dom.

39. Este dom deve ter para cada membro da família carmelitana o mesmo significado que teve para João o discípulo predileto de Jesus, quando no Calvário o recebeu: nós acolhemos Maria entre as coisas mais preciosas que nos pertencem. Isto significa que tomamos a pessoa de Maria como membro da Comunidade concreta que é a Igreja, o corpo de Cristo, e de forma também particular em nossa família carmelitana. A consagração, em definitivo, implica uma mais profunda aceitação do dom de sua Mãe feita a nós pelo Salvador e um compromisso sempre maior e mais autêntico para com a comunidade eclesial que ela representa.

40. Portanto, o Escapulário mesmo, torna-se sinal da verdadeira devoção a Nossa Senhora. Contém uma íntima, pessoal e contínua exortação, ao menos habitual,
- à invocação e louvor a Maria,
- à imitação de suas virtudes,
- e a oferecer a Deus tudo por meio dela.
Torna-se o Escapulário, expressão concreta do amor e da vontade decisiva de viver a própria existência apoiando-se em Maria, Mãe, Patrona e Irmã. Busca-se nela o perfeito modelo sobre o qual se deseja plasmar a própria vida, sustentada pela oração e pela humildade; pela transparente pureza do coração; pela escuta da Palavra de Deus; pelo serviço  dedicado aos irmãos; e sempre na consciência de sua presença no próprio caminho até a Casa  do Pai.

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