REQUISITOS PRÉVIOS PARA UMA VIDA DE
ORAÇÃO
‘A primeira
vista, pode parecer um tanto estranho que um livro como o Caminho de Perfeição,
escrito pela Madre Teresa para ensinar a suas filhas a oração mental, só entre
no assunto no capítulo 22. Pensando bem, contudo, é uma postura lógica e de
simples senso comum, pois não se trata de um simples ato de piedade, mas de uma
vida inteira de oração: é muito adequado começar explicando o ambiente ou os
requisitos prévios para levar esse gênero de vida.
Por isso, escreve com razão a Madre: “Foi
sobre a oração que pedistes alguns conselhos. Em paga do que eu vos disser,
peco-vos que observeis e leiais muitas vezes, de boa vontade, o que vos escrevi
até aqui” Antes de me referir ao interior, isto é, à oração
propriamente dita, direi algumas coisas necessárias que, mesmo sem serem almas
muito contemplativas, poderão progredir rapidamente no serviço do Senhor. Ao
invés, “é impossível serem grandes contemplativas se negligenciarem essas
recomendações, e. quem se tiver nesta conta, estará muito enganada” (C
4, 3).
Como se vê, esta introdução é original como o
próprio carisma teresiano, já que se trata de pré-requisitos essenciais para a
vida de oração. A Santa Madre está tão convencida da importância de uma
atmosfera adequada para se viver essa vida que, ao receber as postulantes à sua
Ordem, diz: ‘É preciso grande informação para receber as postulantes e larga
provação antes de admiti-las à profissão. Saiba o mundo, uma vez por todas, que
tendes liberdade para as despedir. Em mosteiro onde se professa vida austera,
muitos motivos pode haver para isso e, se virem que é este o vosso costume,
ninguém se ofenderá’ (C 14, 2).
Seria um erro pensar que a Madre queda que suas
postulantes ou noviças já fossem santas e perfeitas. Não, esta seria a meta a
ir atingindo pouco a pouco. Exigia, isto
sim, que suas noviças se sentissem felizes naquela atmosfera que incluía os
quatro requisitos prévios, que explicaremos a seguir. Assim escreveu: ‘Não
penseis, minhas amigas e irmãs, que serão muitas as coisas a serem
recomendadas. (...) Estender-me-ei tão somente em declarar-vos três portanto,
que são das mesmas Constituições, porque multo importa entendermos o grandíssimo
proveito da sua observância, para alcançarmos, interior e exteriormente, a paz
tão recomendada pelo Senhor. O primeiro é o amor de umas para com outras; o
segundo, o desapego de todo criado; o terceiro, a verdadeira humildade, e este,
embora sela enumerado por último, é o principal e abrange a todos” (C 4. 4) Se
ás três indicadas acrescentarmos a ‘boa consciência’ que depois mencionará (cf.
C 5, 2), já temos elencadas as quatro colunas que são o alicerce e a base da
vida teresiana de oração.
Esses requisitos prévios a uma vida
carmelitano-teresiana devem ser considerados em uma determinada ordem e
analisados com certo método, mas devem ser entendidos apenas como uma
sistematização de idéias para sua melhor compreensão. Estes quatro requisitos
estão tão relacionados entre si que, praticando um, pratica-se todos de uma
vez, e são tão essenciais para uma reta construção da vida de oração que, na
verdade, não é possível antepor-se um ao outro, assim como não se pode eliminar
um sem que os outros sofram e se ressintam. Devem ser como os quatro pilares de
uma construção: cada uma deles deve ser considerado fundamental.
A Santa Madre se deu conta disso muito cedo, razão
pela qual começou por esta observação tão bela como lógica: ‘A
meu ver, não pode haver humildade sem amor, nem amor sem humildade. Nem é
possível existirem estas duas virtudes sem profundo desapego de toda Criatura’
(C 16, 2).
Foi, sem dúvida, a lógica da vida que a fez dar-se
conta de que não é possível dar mais importância a um do que a outro elemento
desses requisitos prévios, e que nenhum deles pode existir sem o outro, porque
todos eles são meios que ajudam a viver a vida de plena intimidade com Deus, e
não fins em si mesmos.
Para maior clareza, abordaremos os quatro
pré-requisitos na seguinte ordem: boa consciência, humildade, caridade fraterna
e desapego. É interessante notar, de passagem, sua maravilhosa correspondência
com as quatro leis fundamentais da amizade de que falamos no capitulo anterior,
ou seja: boa consciência = mútuo encontro, humildade = conhecimento mútuo, amor
de umas para com as outras, amor mútuo, desapego = conformidade de vontades.
Na verdade, é a lógica da vida que unifica estes
quatro elementos; daí que, sem procurá-lo, a exposição da Madre Teresa é muito
coerente, e os vinte e um capítulos do Caminho que precedem aquele em que
começa a explicar seu conceito de oração mental correspondem precisamente a essas
quatro leis da amizade. Parece-nos muito conveniente recordar este ponto, pois
acreditamos sinceramente que não seria possível explicar esses elementos
teresianos guiando-nos pelos livros clássicos de teologia; quem tentasse
fazê-lo não demorada muito para perceber seu próprio fracasso.
De fato, a Madre não enfrenta esses temas a partir
de uma teologia teórica ou especulativa - que, por outro lado, não possuía-,
mas do ponto de vista prático. O que pretende é simplesmente explicarás suas
filhas a natureza da vida de oração - à que por vocação se consagraram, com sua
vertente eclesial; assim, brotam de sua pena definições engenhosas e originais
do que são boa consciência, humildade, amor fraterno e importância do desapego,
tão externo como interno. Estes são os elementos que criam a atmosfera
necessária a uma vida de oração.
Vejamos agora cada um deles.
1. BOA CONSCIÊNCIA
A Madre Teresa não se perde em digressões
teológicas sobre a graça (atual ou habitual, adquirida ou infusa, etc.), mas
vai diretamente ao essencial: ‘Já sabeis que a primeira pedra há de ser a
boa consciência e, com todas as vossas forças, livrai-vos até dos pecados
veniais e segui o mais perfeito... Sobre isto assenta bem a oração; sem este
forte alicerce, todo o edifício vai em falso’ (C 5, 3-4). Em outras
palavras: devemos fazer todo o possível para conservar-nos em estado de graça
habitual e evitar até os pecados veniais.
Santa Teresa trata o tema da boa consciência sob
dois aspectos distintos: um negativo, o outro positivo,
a) Aspecto negativo - O aspecto negativo
implica a abstenção de todo pecado mortal e até dos pecados veniais
deliberados. A Santa não escreveu muito sobre o pecado mortal, mas encontramos,
lá e cá, expressões suas que nos traçam um quadro bastante claro sobre o que
pensava a respeita Assim, por exemplo: ‘O pecado é urna guerra campal travada
contra Deus por todos os nossos sentidos e potências da alma’ (ExcI. 14, 2). ‘Nesta
vida, só o pecado merece ser chamado de mal, por acarretar males eternos e para
sempre’ (1M 2, 5). Em suma: é a perda total da graça: “Vi
com quanta justiça se merece o inferno por uma só culpa mortal” (V 40, 10).
Quando trata do pecado venial é surpreendente ver
como sabe explicá-lo bem, tanto que dá a impressão de ser uma teóloga moralista
por profissão. Suas reflexões são muito instinitivas e mostram claramente que o
estado de pecado venial deliberado é incompatível com a vida de oração. Escreve:
“Tende
em conta o aviso de extrema importância que consiste em trabalhar sempre por
adquirir grande determinação de nunca ofender ao Senhor e de estar dispostas a
perder mil vidas de preferência a fazer um só pecado mortal. Dos veniais
guardai-vos com sumo desvelo. Refiro-me aos que se cometem com advertência,
pois, sem ele, quem estará livre de cometer muitos? Mas há uma advertência de
caso pensado. Há outra tão rápida que fazer o pecado e ter consciência dele é
quase a mesma coisa. Nem chegamos a entender bem o que fazemos. Deus nos livre
de pecado plenamente deliberado, por pequeno que seja! Quanto mais que não pode
haver pouco, sendo contra tão grande Majestade, que nos está olhando
continuamente, como sabemos muito bem. Parece-me a mim que é pecado
premeditado. É como se alguém dissesse: ‘Senhor, ainda que vos magoe, farei
este ato. Bem convencida estou de que o vedes e não o quereis, mas antes quero
seguir meu capricho e apetite do que vossa vontade.’ Não me parece que possa
haver pouco esta matéria, por leve que seja a culpa, senão muito, e muitíssimo’
(C 41,3).
Como vemos, a Santa Madre refere-se aos pecados
cometidos deliberadamente, que têm sérias conseqüências para a vida de oração,
já que com eles antepomos nossos caprichos à vontade de Deus. Longe de
considerá-los irrelevantes, a Santa leva-os muito a sério, lá que, embora não
rompa definitivamente nossa amizade com Jesus, o pecado venial esfria e
enfraquece o ardor do amor. Sabe-se que dependemos de Deus em tudo e que, se
agirmos deliberadamente contra Ele, também Ele se mostrará menos generoso
conosco. Por isso, a Santa insiste em que, para que nossa amizade com Cristo
seja forte e permanente, devemos provar nosso amor com fatos, não só com
palavras.
O pecado venial é um obstáculo à nossa intimidade
com Cristo, diminui o ardor de nosso abandono e paralisa a nossa vontade nas
obras isto contradiz o amor, de forma que a relação mútua de amor fica limitada
a uma simples formalidade. Daí a lei básica da psicologia do amor: devemos amar
a Deus segundo nossa natureza humana, e portanto, segundo a totalidade do nosso
ser psicológico.
b) Aspecto positivo - Para explicar o aspecto
positivo da boa consciência, a Santa Madre também recorre a uma grande
variedade de fórmulas e metáforas: seguir sempre o caminho mais perfeito em
tudo o que fazemos por Nosso Senhor (cf. C 3,4; 5,2, etc.); cuidar bem do
jardim da alma, extirpando dele as ervas daninhas para que o Senhor se
deleite... e plantar as boas (cf. V 11, 6; 7M 4, 9); servir a Nosso Senhor (cf.
7M 4,6); todo pensamento deve concentrar-se em procurar maneiras de agradá-Lo e
lhe mostrar o quanto o amamos (cf. 7M 4,6). : ‘Minhas irmãs, quero que
procuremos alcançar este alvo. Desejemos e pratiquemos a oração a fim de nos
satisfazer, mas para termos forcas no serviço de Deus. Não sigamos caminho não
trilhado, pois não perderemos no melhor do tempo” (7 M 4,12).
Estes são os fundamentos positivos da boa consciência.
Se os praticarmos com empenho, estaremos em condições de aproximar-nos muito de
Deus. E não esqueçamos que a Santa afirma que “a primeira pedra tem de ser a
boa consciência” (C 5,3).
2. HUMILDADE
Santa Teresa diz que, embora trate da humildade em
último lugar, ela é a principal, pois reúne em si todas as demais virtudes. É
óbvio que com isto não pretende fazer dela uma virtude maior que as virtudes
teologais - fé, esperança e caridade nem tão pouco que as virtudes cardeais- a
humildade é só uma virtude moral. Mas é interessantíssimo estudar o modo
original como explica esta virtude.
a) Uma definição original - Santa Teresa
define a humildade como “humildade é andar na verdade’ definição tão concisa
que não é fácil entender o que quer dizer sem levar em conta o contexto. Aqui
está: “Certa vez, estava eu considerando por que razão Nosso Senhor é tão
amigo da virtude da humildade. Veio-me logo de improviso, sem trabalho de
raciocínio, esta resposta: é por que Deus é a suma verdade - e ser humilde é
andar na verdade. Grande verdade é que nada de bom procede de nós, a não ser a
miséria de ser nada. Quem não entende isso anda na mentira. Quem melhor o
entender, mais agradará à suma Verdade, porque anda em sua presença.”
(6M, 10 7).
Não reconhecer os dons recebidos não é humildade
autêntica, e sim fingida e artificiosa. Se quisermos agradecer a Deus os dons
recebidos, nosso primeiro dever é reconhece-los como tais, porque não há
orgulho mais sutil do que atribuir-nos as boas qualidades e pensar que as
conseguimos com nosso próprio esforço. Portanto, a verdadeira humildade é a
verdade, quer dizer: reconhecer que todas as nossas boas qualidades vêm de
Deus, e em compensação, todos os nossos defeitos vêm de nós mesmos.
Daí a nossa Santa Madre não gostar dessa humildade
artificiosa; tanto é assim que chega a dizer que, quanto mais a alma se mantém
nesse estado de reconhecimento de sua própria fraqueza, mais se aproxima de
Deus: ‘Ele é muito amigo da humildade. Se vos considerardes indignas de
merecer o ingresso mesmo nas terceiras moradas, mais depressa lhe movereis a
vontade para vos admitir na quinta. Então, continuando a frequentar essas
quintas moradas, entrando nelas muitas vezes, podeis servi-lo de tal modo que
vos acabe introduzindo no aposento que reservou para si’ (M conclusão
2).
Segundo a Santa, é falsa humildade dizer “sou a
última das criaturas” se isto não for verdade. E, para ilustrar graficamente a
importância desta virtude na vida de oração, lançou mão de um exemplo muito
original, o do jogo de xadrez, comparando a humildade com a rainha, que pode
dar xeque-mate no Rei da glória (cf. C 16,1-2). Foi esta virtude, diz a Santa,
que trouxe o Senhor ‘do céu nas entranhas da Virgem (ibid.). Não é maravilhoso
que uma pobre monja possa dar xeque-mate no Rei da glória?
b) A virtude da humildade em seus escritos -
Seria preciso muitas páginas para incluir aqui textualmente as numerosas
citações que nos deixou sobre a virtude da humildade. Por isso, acredito que é
mais prático resumir aqui os seus ensinamentos em alguns pontos que nos façam
ver a importância da virtude e que caracterizam o homem verdadeiramente
humilde:
v
“Nunca perde de vista o que realmente é, Isto
significa que devemos ter sempre em mente o que somos, quer dizer nada, já que
tudo o que temos vem de Deus” (cf. 7M 4, 2).
v
“Aceita os dons de Deus com reconhecimento, como
não merecidos. Reconhece humildemente que foi Deus quem os deu e nunca os
considera como se fossem próprios” (cf. V 10, 4; C38, 3).
v
“Está sempre contente e feliz em servir a outros” (cf. C
17, 1).
v
“Confia pouco em si mesmo e em suas aptidões” (cf.
Ditos 2, 25).
v
“Esquece-se de si e procura servir ao Senhor que
lhe deu tudo o que tem” (cf. C 36. 10).
v
“Foge de qualquer louvor que possam lhe fazer” (cf. 5M
3, 11).
v
“Deseja ser tido como pouco” (cf. C
15, L.).
v
“Não deseja honrarias nem cargos, sejam de que tipo
forem” (cf. C 12, 6).
v
“Não se deixa afetar em seu agir pela honra ou
desonra que dele possa decorrer” (cf. C 12, 13).
v
“Não olha nunca as faltas ou pecados dos outros,
mas apenas os próprios. Esta é uma regra muito importante, porque julgar os outros
é apropriar-se de uma função que cabe somente a Deus” (cf. C
19, 5).
v
“Sempre duvida das próprias virtudes e freqüentemente
considera mais seguras e de maior quilate as que vê no seu próximo” (C 38,
9).
v
“Procura saber a verdade, submete-se ao confessor e
trata com ele com verdade e simplicidade” (cf. C 40, 4).
v
“Suporta com serenidade seus próprios pecados e
misérias, coisa importante na vida espiritual, porque irritar-se ou deprimir-se
por causa deles é sinal de que atribui todo progresso aos seus esforços
pessoais” (cf. C 39, 1-2).
v
“Deseja ser tido por pouco e perseguido e condenado
sem culpa, até em coisas graves” (cf. C 15, 2).
v
“Permanece sempre contente com o que o Senhor
quiser fazer dele, sentindo-se indigno de chamar-se seu servo” (cf. C
17,6).
Como pode constatar-se, temos aqui um belo tratado
sobre a humildade que, em vez de abater e desanimar, consola e ilumina, Só nos
resta esforçar-nos para colocá-los em prática.
3. CARIDADE FRATERNA
O próprio fato de a Madre Teresa ter dedicado
quatro capítulos inteiros ao tema (cf. 04-7) já denota a importância que dava a
este pré-requisito da vida de oração. Por outro Fado, se a vida de oração é um
trato de amizade com o Senhor, a mera analogia deste gênero de amizade com a
amizade humana evidencia que ninguém é verdadeiro amigo se não amar e respeitar
os amigos do amigo, segundo o conhecido provérbio: “Os amigos dos meus amigos,
são meus amigos.”
Pois bem, já sabemos que, para a Santa Madre, a
função básica do Carmelo é oferecer a Cristo “um pequeno grupo de amigos
verdadeiros” que devem reger-se pela regra básica que o Divino Mestre deu ao
colégio apostólico: ‘Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros
como eu vos amei’ (Jo 13, 34). Portanto, Jesus não recomenda um amor
qualquer, mas o próprio amor com que de nos amou e pelo qual sacrificou sua
vida.
Esse amor também foi a característica mais destacada
da comunidade cristã primitiva. Tanto é assim que São João, o discípulo amado,
não se cansava de repetir já na velhice: ‘filhinhos, amai-vos uns aos outros’;
os discípulos estranhavam que o repetisse tantas vezes e lhe perguntavam por
quê, e sua resposta era sempre a mesma: que esse era o mandamento do Senhor e
cumpri-lo era o bastante (cf. 1Jo 3, 23).
Madre Teresa, que tão bem soube assimilar o
espírito do Evangelho, logo intuiu que as pessoas que aspiram a viver uma vida
de oração e intimidade com Jesus têm absoluta necessidade de obedecer e
praticar este Seu mandamento. Se não nos amarmos uns aos outros, não poderemos
pretender amar a Cristo Jesus, porque esta é a mensagem evangélica desde o
começo: ‘Se alguém disser ‘amo a Deus’, mas odeia seu irmão, é um mentiroso;
pois quem não ama o irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê’ (1Jo
4, 20).
Em relação á prática do amor fraterno, a Santa
Madre deixou escritas, normas muito concretas que a tomaram famosa entre os
autores espirituais. Em primeiro lugar, a Santa não crê que seja necessário
provar a necessidade desse amor mútuo, que lhe parece uma coisa evidente: “Voltando
ao amor de umas para com as outras, parece escusado recomendá-lo. Pois, que
gente haverá tão grosseira, vivendo na mesma companhia, sem outra convivência,
outros tratos ou recreações com estranhos, que não tenha mútuo amor? Ainda mais
entre nós, pois cremos que Deus ama as nossas irmãs e elas o amam, tendo
deixado tudo por Sua Majestade?” (C 4, 10).
Por outro lado, é muito fácil cometer faltas na
prática deste amor fraterno, pois com freqüência a vontade deixa-se dominar
pela paixão e o amor mútuo diminui ou se limita a uma pessoa, de onde nascem as
amizades particulares que a Santa detesta: ‘Nesta casa, onde não são nem hão de ser
mais de treze, todas as irmãs devem ser amigas, todas hão de se amar
igualmente, todas hão de se querer, todas hão de se ajudar. Pelo amor de Deus,
guardem-se dessas particularidades, por santas que sejam! Ainda entre irmãos
costumam ser veneno. Nenhum proveito vejo nisto, e, se são parentes, pior
ainda, é peste!’ (C 4,7). A Madre é muito exigente quando se trata de
evitar essas amizades particulares, e não vê modelo melhor que o do próprio
Jesus:
‘Assemelha-se e imita o amor que nos teve o Jesus, nosso bom Amigo’ (C 7,4).
Então como deve ser esse amor mútuo entre as irmãs?
Para evitar toda confusão possível, a Santa Madre
começa distinguindo dois tipos de amor fraterno: “De duas espécies de amor quero
tratar. Um é espiritual, totalmente isento de qualquer sentimentalismo e ternura
da natureza que o tomem menos puro. O outro é também espiritual, mas
acompanhado de sensibilidade e fragilidade humana. É amor bom e licito, como o
dos parentes e amigos” (C 4, 12).
O amor é espiritual quando a paixão não o
influencia em nada. Os
teólogos escolásticos diriam que se trata de um amor de benevolência, em
oposição ao chamado amor de concupiscência. O primeiro tem por objeto o amigo
em si mesmo, e quem ama não procura nenhuma vantagem pessoal; o segundo é
sempre um amor interessado. A Santa escreve que ‘havendo paixão, toda a harmonia
se muda em dissonância’ (C4,13). Poucos chegam a ter este amor puro
espiritual, e sua presença indica maior perfeição (cf. C6, 1).
Mas o problema é: como a alma pode saber que o possui?
Ponto muito importante, a que a Madre responde: “Quando Deus dá a conhecer
claramente a uma pessoa o que é o mundo e quanto o mundo vale, e que há outro
mundo; a diferença que há entre um e outro, e que um é eterno e o outro um
sonho, ou que coisa é amar o Criador ou a criatura. não por fé ou persuasão,
mas por experiência, o que é muito diferente; quando esta alma vê e prova o que
se ganha com um e se perde com o outro, que coisa é o Criador e que coisa é a
criatura, e muitas outras verdades que o Senhor ensina a quem se deixa instruir
por ele na oração, ou a quem apraz a Sua Majestade ensinar, essa pessoa sabe
amar muito melhor do que os que ainda não chegaram a essa perfeição” (C
6, 3).
Estas almas ‘se algumas vezes, no primeiro momento, por
inclinação natural, gostam de se sentir amados, caindo em si, vêem que é
disparate, a menos que se trate de pessoas capazes de lhes beneficiar a alma
com doutrina ou com oração’ (C 6,5).
‘Ora, essas
almas perfeitas já trazem tudo debaixo dos pés: bens, satisfações e prazeres
que o mundo lhes pode dar. Chegaram a tal ponto que, por assim dizer, ainda que
queiram, não se podem deleitar senão em Deus, ou em tratar de Deus’ (C6,6).
‘Quando
se lhes representa esta verdade, riem-se de si mesmas, da preocupação que algum
tempo tiveram, se era ou não correspondida a sua amizade’ (C 6, 7).
‘Parecer-vos-á
que essas almas não amam como nós, nem sabem amar senão a Deus? Pois eu vos
digo que amam muito mais, e maior veemência, e com amor mais proveitoso e
verdadeiro; enfim, é amor. (..,) Asseguro-vos que só este amor merece tal nome,
que essas outras afeições imperfeitas lhe têm usurpado o nome’ (C 6,7).
“É amizade
que lhes custa muito caro: não há diligência que deixem de fazer para
aproveitamento da pessoa amada. Mil vidas dariam para lhe obter um pequeno
beneficio espiritual. Õ precioso amor, que tão fielmente imita o
comandante-chefe do amor, Jesus, nosso bem’! (C6, 9).
Este é o verdadeiro amor de benevolência vivido com
todas as suas conseqüências. É verdade que até neste amor pode haver um pouco
de sensibilidade natural, mas, como destaca Santa Teresa: ‘Se, pela fragilidade natural,
tem algum sentimento passageiro, logo a razão examina se aquela alma aproveita
com o sofrimento, se cresce nas virtudes e se suporta bem. Feito isto, roga a
Deus que a faça merecer e lhe dê paciência nas tribulações. Quando vê que a
tem, não sente pesar algum, antes se alegra e consola’ C7,3).
Estas almas amam ao próximo com o amor verdadeiro,
desejando só seu bem, e, se o vêem cometer alguma falta, sofrem e procuram
levá-lo à verdadeira perfeição ‘logo o advertem. (...) Se não vêem emenda,
não recorrem a lisonjas, nem dissimulam coisa alguma’ (C 7, 4). Ê este
tipo de amor que a Santa Madre deseja para suas filhas: ‘Esta maneira de amar, quisera eu
tivéssemos umas às outras. A principio não será tão perfeita, mas o Senhor a
irá aperfeiçoando’ (C 7, 5).
Este tipo de amor mútuo manifesta-se em muitíssimas
circunstâncias da convivência religiosa, como em compadecer-se das irmãs ao
vê4as sofrer (C 7, 6), ‘também alegrar-se com as irmãs quando estão necessitadas de
recreação’ (C 7, 6), preferindo os interesses das outras aos
próprios (C 7, 8), procurar ‘tirar às irmãs o trabalho, tomando-o
para si nos ofícios da casa’ (C 7, 9), etc.
Santa Teresa era muito exigente neste ponto do amor
fraterno: ‘Cuide muito a Priora, por amor de Deus, em não permitir semelhantes
coisas, Em atalhar ou não energicamente os princípios está todo o remédio ou o
dano. Se souber que alguma irmã altera a paz, procure transferi4a a outro
mosteiro, que Deus lhe dará meios para a dotar (C 7, 11).
Com toda razão, pois, põe ela a caridade fraterna
entre os pré-requisitos a uma vida de oração (cf. C 4, 4) e exorta os que
tiverem recebido do Senhor este dom a mostrar-se muito agradecidas (cf. C 6,
1), porque, para ela, o amor fraterno na vida de oração é o sinal mais seguro
do amor a Deus. Ouçamos como se expressa a este respeito: “O mais certo sinal. a meu ver,
para verificar se guardamos esses dois pontos com perfeição, é a observância
generosa da caridade fraterna. Com efeito, não temos certeza do nosso amor a
Deus, conquanto haja grandes indícios por onde se entende que o amamos- O amor
ao próximo, por outro lado, logo se conhece. E convencei-vos: quanto mais
adiantadas estiverdes no amor do próximo, mais tanto mais o estareis no amor de
Deus. Quereis saber a razão? É tão grande o amor de Deus para com os homens
que, em paqa do amor que tivermos a eles, Sua Majestade fará crescer por mil
maneiras o amor que temos a ele. Não posso duvidar.” (SM 3, 8).
Como conclusão a estas considerações teresianas
sobre o amor fraterno, permita-me acrescentar aqui umas breves reflexões sobre o
diálogo como mais uma expressão do amor mútuo.
Depois do concilio Vaticano II e de sua Constituição
‘Perfectae Caritatis’, falou-se e se escreveu muito a respeito da necessidade
do dialogo como meio eficaz de promover o amor fraterno na vida comunitária.
Não ê minha intenção explicar seus prós e contras, mas simplesmente oferecer ao
leitor uma informação elementar sobre este ponto.
a) O diálogo - A primeira
coisa que me ocorre dizer é que, quando usado corretamente, o diálogo pode ser
um instrumento maravilhoso para reforçar o amor mútuo dos componentes de uma
comunidade. Na verdade, ninguém pode negar que, mesmo depois de uma convivência
de muitos anos tanto em pequenas como em grandes comunidades-, é freqüente não
conhecer-se verdadeiramente uns aos outros, nem saber as respectivas opiniões
sobre os temas mais importantes. Isto se deve, em grande medida, a um modo de
vida comunitária regida pelo costume e por uma certa tradição em que o Superior
da comunidade ordena e manda sem dar ao subordinado a oportunidade de
manifestar seu próprio ponto de vista.
Hoje em dia não se pode agir assim; a mentalidade e
o estilo da sociedade humana mudaram muito neste sentido, como assinala o
Decreto conciliar ‘Dignitatis humanae’. Hoje incute-se mais o respeito á pessoa
humana: cada um tem sua própria dignidade como pessoa e ê amado e chamado por
Deus em igual medida. Seria um ato ridículo e de orgulho pensar que já sabemos
tudo e que nada podemos aprender escutando os outros. Por isto, penso
sinceramente que seria muito proveitoso a todos dedicar algum tempo da vida
comunitária a exercitar o ‘diálogo’. É um fato histórico que, a partir dos
Padres do deserto, sempre houve na vida religiosa uma espécie de diálogo
comunitário, denominado ‘conferência espiritual’, na qual cada um dos
participantes expressava livremente o que pensava sobre um determinado assunto.
A pena é que, quando esses encontros, e também o modo ritual como se
realizavam, foram institucionalizados, foi-se perdendo sua espontaneidade e,
portanto, sua utilidade espiritual. O resultado foi que se transformaram em
atos de observância formal, controlados pelo Superior, tomando-se estéreis para
fomentar a vida comunitária.
b) Como o diálogo deve ser realizado-
Apelando para a minha limitada experiência, considero que, para que o diálogo
seja frutuoso e possa atingir sua finalidade, devem-se levar em conta as
seguintes regras fundamentais:
Ø
Uma boa preparação é
absolutamente necessária: estabelecer o ponto concreto sobre o qual dialogar, e
dar tempo suficiente para que possa ser estudado de forma adequada por todos os
que desejarem intervir.
Ø
Dar a cada um a oportunidade de expressar livremente o seu
modo de pensar sobre o tema, e que sua opinião seja ouvida com respeito, mesmo
se não for compartilhada ou aceita por todos.
Ø
Não interromper com perguntas e questionamentos enquanto
alguém estiver expondo sua opinião; o diálogo não é uma discussão, e todos têm
o direito de ser ouvidos. Se um diálogo se transformar em polêmica, já vai pelo
caminho errado, pois a caridade e o amor fraterno são humilhados, em vez de
reforçados. É evidente que antagonismos e faltas de caridade são coisas
contrárias a um diálogo proveitoso.
O princípio fundamental do diálogo é não dizer nada
que possa fazer mal a ninguém. Quando não se tem respeito pelos outros, quando
se pensa que alguém sabe mais, é mais inteligente, os sentimentos do outro são
feridos, a caridade é ofendida e, sobretudo, Nosso Senhor é ofendido. E isto é
ainda pior do que não entabular diálogo algum. A verdadeira comunicação, o
mútuo conhecimento, não consiste tanto em falar quanto em ouvir os outros em
todos os temas que afetam a vida comunitária em seus vários aspectos.
Por outro lado, o diálogo não pode ser imposto a
ninguém. Quem não tiver nada a dizer, melhor não abrir a boca; e se não tiver
nada que acrescentar, não deve ser importunado para que diga algo. 0 diálogo
não tem como finalidade convencer os outros de que a própria opinião é a certa
e a de outros, errada, mas apenas comunicar-se e reforçar os vínculos da
caridade fraterna.
Para garantir a utilidade do diálogo, é preciso que
haja sempre um presidente ou moderador, oficio que bem poderia ser exercido
rotativamente, preservando-se sempre a liberdade de aceitar ou recusar, pois,
neste caso, não se trata de ter autoridade ou jurisdição, mas somente de
presidir uma troca fraterna de idéias.
4. DESAPEGO
O último, embora não menos importante, dos pré-requisitos
a uma vida de oração é o desapego. O conteúdo doutrinal da palavra ‘desapego’
na literatura ascética, tanto cristã como não cristã, é muito rico e amplo.
Resumindo-o, poderíamos dizer que é o estado da alma em que esta se encontra
livre de todo afeto desordenado e egoísta para com algo ou alguém.
Entretanto, não se refere só á ausência e
libertação de todo apego; de fato, muitos autores espirituais usam
freqüentemente o termo com um significado mais amplo, de maneira que deve
coincidir mais ou menos com as palavras, quase sinônimas, abnegação, renúncia,
nudez, mortificação., etc. Assim, São João da Cruz utiliza diversos termos para
referir-se ao desapego, como “noite, vazio, purificação, nudez, negação”, cada
um deles com um matiz diferente.
A Santa Madre Teresa emprega preferencialmente esta
palavra no sentido de desapego de todo afeto, e também no de penitência,
mortificação, sacrifício, etc., ou sei, para significar as variadas formas
ascéticas de a vida religiosa comporta sob forma de pobreza, clausura,
penitência, jejum. etc.
Não falta quem afirme que São João da Cruz
mostra-se mais exigente do que Santa Teresa em matéria de desapego que, para
ele, é uma condição de todo o caminho de perfeição, um nada drástico e
intransigente, ao passo que a Santa — como mulher e, portanto, pessoa mais
sensível - não seria tão exigente neste aspecto. Entretanto, ambos os Doutores
da Igreja pensam de maneira idêntica: para chegar à verdadeira intimidade com
Deus e à completa transformação de nossa vontade na sua, será preciso deixar de
lado toda amarra desordenada às criaturas.
Algumas citações da Santa Madre sobre o tema nos
convencerão de que ela é tão exigente quanto seu filho Frei João da Cruz:
v
“Avisei que em de grande importância, ao começarem
a oração, as almas se desapegarem de todo gênero de satisfações e entrarem
neste caminho determinadas unicamente a ajudarem Cristo a levar a cruz, como
bons cavaleiros que, sem remuneração querem servir a seu Rei” (V 15,
11).
v
“É grande fundamento resolver-se desde o principio,
com determinação, a seguir o caminho da cruz, sem desejar consolações. O mesmo
Senhor mostrou ser essa a estrada da perfeição, dizendo: ‘Toma tua cruz e
segue-me” ( V 15, 13).
v
“A meu ver, não há nem pode haver humildade sem
amor, nem amor sem humildade. Nem é possível existirem estas duas virtudes, sem
profundo desapego de toda criatura” (C16, 2).
v
“Se o desapego for verdadeiro, parece-me que não é
possível sem ele não ofender ao Senhor” (F 4, 5).
v
“Com efeito, se nos esvaziarmos de todo o criado e
nos desapegarmos das criaturas, por amor de Deus, é certíssimo que o mesmo
Senhor nos encherá de si” (7M Z 7).
Embora o método de apresentação da própria doutrina
seja diferente nos dois Santos — assim, a Santa Madre não segue uma ordem
metódica, e São João da Cruz é um professor na exposição sistemática-, pode-se
dizer que seus ensinamentos a este respeito são idênticos.
Para confirmá-lo, seja-nos permitido recorrer a um
texto mais enfático da Madre Teresa: “O que importa para nós é que nos entreguemos
com total determinação, dando-lhe plena liberdade, para que ele possa pôr e
tirar ã vontade como propriedade sua. E Sua Majestade tem todo o direito, não
lhe neguemos o que exige de nós. Como não nos constrange, aceita o que lhe
oferecemos. Contudo, não se dá de todo enquanto não nos dermos de todo a Ele.
(...) O Senhor, amigo de toda ordem e harmonia, não age na alma, senão quando a
vê toda sua e sem partilhas, (...) Se atravancarmos o palácio de gente baixa e
de bagatelas, como há de caber nele o Senhor com sua corte? Já muito faria em
estar um pouquinho no meio de tanta barafunda”. (C, 28, 12).
Uma dúvida surgirá aqui indevidamente em todo
leitor que conheça, mesmo superficialmente, a vida destes dois Doutores
místicos: como combinar sua insistência no desapego com a prática de sua vida?
Em relação à Santa Madre, sabe-se do afeto que
professou a seus familiares, e não menos a tantos filhos e filhas (Padre
Gracián, Maria de São José, etc.), como também a muitíssimas pessoas eclesiásticas
e leigas. Basta percorrer o seu epistolário para percebê-lo: todas as suas
cartas transpiram um afeto intenso e muito feminino pelas pessoas a quem se
dirige.
Quanto a São João da Cruz, conhecemos sua
predileção por seu irmão e sua cunhada, a ponto de que, enquanto foi Superior
em Duruelo, Granada e Segóvia cuidou deles, enviando-lhes presentes e dinheiro
para atender ás suas necessidades.
Pois bem: sabe-se que os Santos não são hipócritas
nem pregam o que não praticam. Tem de haver alguma explicação que justifique
este modo de agir. E é que, em todo caso, desapego não significa tornar o
coração duro e insensível, pois o amor é o primeiro e o maior dos deveres.
Quando Santa Teresa e São João da Cruz falam de
desapego, referem-se sempre ao interior, ou, como diriam os teólogos, ao
desapego “afetivo”, para distinguí-Io do “efetivo’ Portanto, quando se viram
obrigados a manifestar seu afeto por outras pessoas do modo que acabamos de
recordar, não há dúvida de que o fizeram por um motivo sobrenatural. Na
verdade, não são as coisa materiais em si que ameaçam o nosso desapego, e sim
nossa atitude em ralação a elas. O desapego é uma atitude espiritual: um
mendigo pode estar mais apegado a um punhado de moedas do que um homem rico à
sua fortuna. O que importa é a reta intenção, mais do que as circunstâncias
materiais.
Por isto, a primeira coisa que devemos fazer é
purificar o nosso coração de todo afeto desordenado para com qualquer criatura,
e regular todas as nossas ações pelo amor de Deus, que é quem deve iluminar
toda a nossa vida. Eis aqui uma regra de ouro formulada pela Santa em poucas
palavras: “(...) desapego que devemos ter, porque tudo depende dele, se for praticado
com perfeição” (C 8.1).