INSPIRAÇÃO E VERDADE
Pe.
Ney Brasil Pereira,
Professor de Exegese Bíblica na
Facasc/Itesc
Email:
ney.brasil@itesc.org.br
Abordamos, no artigo anterior,
vários conceitos fundamentais para entender o ensinamento conciliar sobre a
Palavra de Deus. Antes de tudo, procuramos explicar a relação entre Tradição e
Escritura, mostrando que esta se insere na corrente daquela. De fato, a Tradição, isto é, a transmissão oral da
divina Revelação, precede a Escritura e a segue, norteando-se por ela e
continuando até hoje. Vimos também que a destinatária do “depósito da Fé”,
contido na Tradição e na Escritura, é a Igreja, “povo santo de Deus unido a
seus pastores”. E que o ofício de interpretar autenticamente a palavra de Deus,
“escrita ou transmitida”, não cabe a cada um individualmente, mas ao
“Magistério vivo da Igreja”, que o exerce em nome de Jesus Cristo. O
“Magistério”, porém, “não está acima da palavra de Deus, mas a seu serviço”, e
por isso não deixa de ser também “Igreja discente”. Finalmente, lembramos o
“tripé” inseparável, sobre o qual se apoia a interpretação católica do conteúdo
da divina Revelação: a Tradição, a Escritura, e o Magistério da Igreja, os
quais estão de tal modo entrelaçados e unidos, que um não tem consistência sem
os outros.
Chegamos, assim, ao capítulo III da
“Dei Verbum”, que aborda o dogma da Inspiração divina da Sagrada Escritura e a
sua Interpretação. Ou, como diz o subtítulo, “estabelece-se o fato da
Inspiração e da Verdade da Sagrada Escritura”.
1.
O conceito de “Inspiração”
Primeiro, entendamos o próprio
conceito de “Inspiração”, que é o ato de inspirar, insuflar, normalmente
atribuído ao “espírito”: se com maiúscula, “Inspiração” é a ação do Espírito
Santo. Como tal, como “ação do Espírito Santo”, podemos entendê-la de modo
amplo. Nesse caso, é sua ação na criação e na história, desde o princípio do
mundo, como o indica o livro do Gênesis: “O espírito de Deus pairava sobre as
águas” (Gn 1,2). Na própria Bíblia encontramos também muitas referências à ação
do Espírito nos Juízes e nos Profetas e, de modo especial, no Senhor Jesus e na
sua Igreja. Essa ação do Espírito é às vezes chamada de “unção”, como em Is
61,1 e Lc 4,18: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu…” Mas a
“inspiração” que focalizamos aqui, em relação à Bíblia, mesmo se precedida da
inspiração profética, é a inspiração escriturística, isto é, a inspiração dos
livros bíblicos que constituem o cânon. E este, por sua vez, é a lista daqueles
livros que a Igreja reconhece como inspirados. Mas então, só os livros da
Bíblia são “inspirados”? Que dizer de tantos outros escritos religiosos, não só
cristãos mas também de outras religiões, de tantos escritos cheios de valores
humanos, se não explicitamente religiosos, nas várias línguas e culturas do
mundo ao longo dos séculos, desde que a humanidade começou a expressar-se por
escrito?
Nada
disso é inspirado? Ou tudo isso é também inspirado?
A resposta se encontra na distinção
feita acima: escritos reconhecidos como inspirados, dogmaticamente, são só os
escritos canônicos, isto é, incluídos no “cânon” bíblico, num total de 46
livros do Antigo Testamento e 27 do Novo Testamento, que constituem a Bíblia,
livro sagrado para judeus e cristãos. A propósito, a palavra “Bíblia” vem do
grego e significa literalmente “
livros”, correspondendo ao fato de que é “um” livro constituído de muitos, uma
pequena biblioteca. Os inúmeros outros livros, quer cristãos, quer judeus, quer
de outras religiões e culturas, cujo conteúdo o senso comum reconhece como bom
e verdadeiro, são também, a seu modo, “inspirados”, isto é, produzidos sob a
ação do Espírito de Deus que renova todas as coisas (Sl 104,30) e que,
“abrangendo todo o universo, tem conhecimento de cada som” (Sb 1,7). E o
documento conciliar Nostra Aetate, sobre o diálogo interreligioso, reconhece
que, as doutrinas e ritos de outras religiões
– portanto, também, seus livros sacros – “não raro refletem lampejos
daquela Verdade que ilumina todos os homens” (NA 2).
2.
O fato da Inspiração
Depois de relembrar que “as coisas
divinamente reveladas” que estão na Bíblia “foram consignadas sob a inspiração
do Espírito Santo”, a Dei Verbum explica: “Pois a Santa Mãe Igreja, segundo a
fé apostólica, tem como sagrados e canônicos os livros completos, tanto do
Antigo como do Novo Testamento, com todas as suas partes, porque, escritos sob
a inspiração do Espírito Santo, têm a Deus por autor e, nesta sua qualidade,
foram confiados à mesma Igreja” (DV 11, 1ª alínea). Por que é que o Concílio fala
em “livros completos”, “com todas as suas partes”? É porque desde a Reforma, no
século XVI, os protestantes passaram a excluir 7 livros do Antigo Testamento,
os chamados “dêutero-canônicos”, que não se encontram na Bíblia judaica, assim
como “partes” de Daniel e de Ester, pelo mesmo motivo. Os mencionados 7 livros
são os seguintes: Tobias, Judite, 1º e 2º Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico,
Baruc. Entretanto, esses livros haviam sido reconhecidos pela cristandade
inteira, até a Reforma, porque faziam parte do texto integral da Bíblia grega.
Ora, foi esta o texto reconhecido pelos autores do Novo Testamento, todo ele
escrito em grego.
3.
Deus, “autor”; homens, “autores”
Se Deus é o “autor” da Bíblia, como
é que seres humanos são, também, “autores”? Responde-nos o Concílio: “Na
redação dos livros sagrados Deus escolheu homens, dos quais se serviu
fazendo-os usar suas próprias faculdades e capacidades, a fim de que, agindo Ele
próprio neles e por eles, escrevessem, como verdadeiros autores, tudo e só
aquilo que Ele próprio quisesse” (DV 11, 1ª alínea). A afirmação de que Deus é
o “autor” da Bíblia não implica, porém, que ela tenha sido ditada por ele, como
os muçulmanos creem a respeito da sua “Bíblia”, o Alcorão, nem muito menos que
ela tenha sido trazida do céu, como o livro dos mórmons. Deus é o “autor” no
sentido de que foi Ele quem escolheu e inspirou os autores humanos, verdadeiros
autores literários, como que acomodando-se às “faculdades e capacidades” de
cada um deles. Além disso, esses autores não eram “ilhas”, mas membros de uma
comunidade, inseridos em determinado ambiente cultural e linguístico, sendo de
certo modo portavozes desse ambiente e dessa comunidade. Assim inseridos é que
eles escreveram, “tudo e só aquilo” que Deus quis que escrevessem.
4.
A Bíblia não erra?
Se Deus é o “autor” da Bíblia,
segue-se, logicamente, que a Bíblia é um livro “verdadeiro”, ou mesmo,
“inerrante”, “infalível”. Acontece que seus autores, como seres humanos, mesmo
inspirados, não são “infalíveis”… Ou são? De que maneira? Respondem-nos os
Padres conciliares: “Já que tudo, o que os autores inspirados afirmam, deve ser
tido como afirmado pelo Espírito Santo, deve-se professar que os livros da
Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro, a verdade que Deus em
vista da nossa salvação quis que fosse consignada nas Sagradas Escrituras”. E,
logo a seguir, citam a palavra de Paulo a seu discípulo Timóteo: “Toda a
Escritura é divinamente inspirada e útil para ensinar, para argumentar, para
corrigir, para instruir na justiça…” (2Tm 3,16; DV 11, 2ª alínea). Portanto,
sendo “divinamente inspirada”, a Bíblia
é, sim, segundo a constante fé da Igreja, “infalível” ou “inerrante”. Segundo o
Concílio, porém, não o é em cada afirmação isolada. Ela nos ensina “sem erro” a
“verdade de salvação”, isto é, aquela verdade “que Deus quis que fosse
consignada na Escritura em vista da nossa salvação”. Aqui, então, cabe a
pergunta: Qual é essa “verdade”? Como identificá-la?
5.
A verdade da Bíblia
Nesse ponto da “verdade da Bíblia”,
ou seja, a “verdade salvífica”, o Concílio deu um passo de enorme importância,
e que custou muitos debates, acesas discussões, chegando ao consenso apenas na
última sessão. Superou-se o conceito da “inerrância absoluta”, que tanta
dificuldade causava, e causa ainda, diante das inexatidões históricas e
científicas, e das narrativas violentas que permeiam o texto bíblico.
Percebeu-se que a “inspiração” não preserva a linguagem humana das suas
limitações, mas estas fazem parte da encarnação da Palavra (cf Jo 1,14), que se
fez semelhante a nós em tudo, menos no pecado. É a humildade da palavra de Deus
que se fez palavra humana, marcada pelas nossas inexatidões, menos pela falsidade.
Mas esse assunto será retomado no próximo artigo, quando comentarmos DV 12,
sobre a interpretação da Escritura.
Para
refletir:
1. O que é a “inspiração”, num
sentido amplo? E a inspiração escriturística?
2. Que é o “cânon” bíblico? Quantos
livros o compõem?
3. Como entender que Deus é o
“autor” da Bíblia, se os seus autores históricos, os escritores bíblicos, são
seres humanos?
4. Segundo o Concílio, em que é que
a Bíblia “não erra”?
5. A “inspiração” preserva a
linguagem humana das suas limitações?