Salmo Responsorial 14/15
R. Senhor, quem
morará em vossa casa e no vosso monte santo habitará?
Aquele que caminha sem pecado e pratica a justiça fielmente;
* que pensa a verdade no seu íntimo e
não solta em calúnias sua língua.
Que em nada prejudica o seu irmão nem cobre de insultos seu
vizinho; * que não dá valor algum ao
homem ímpio, mas honra os que respeitam o Senhor.
Não empresta o seu dinheiro com usura, nem se deixa subornar
contra o inocente. * Jamais vacilará
quem vive assim!
II Leitura (Tg 1,17-18.21-22.27): Toda dádiva boa
e todo dom perfeito vêm de cima: descem do Pai das luzes, no qual não há
mudança, nem mesmo aparência de instabilidade. Por sua vontade é que nos gerou
pela palavra da verdade, a fim de que sejamos como que as primícias das suas
criaturas. Rejeitai, pois, toda impureza e todo vestígio de malícia e recebei
com mansidão a palavra em vós semeada, que pode salvar as vossas almas. Sede
cumpridores da palavra e não apenas ouvintes; isto equivaleria a vos enganardes
a vós mesmos. A religião pura e sem mácula aos olhos de Deus e nosso Pai é
esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições, e conservar-se puro da
corrupção deste mundo.
Aleluia. Deus, nosso Pai, nesse seu imenso amor, foi quem gerou-nos com
a palavra da verdade, nós, as primícias do seu gesto criador! Aleluia.
Evangelho (Mc 7,1-8.14-15.21-23): Os fariseus e
alguns escribas vindos de Jerusalém ajuntaram-se em torno de Jesus. Eles
perceberam que alguns dos seus discípulos comiam com as mãos impuras, isto é,
sem lavá-las. Ora, os fariseus e os judeus em geral, apegados à tradição dos
antigos, não comem sem terem lavado as mãos até o cotovelo. Bem assim, chegando
da praça, eles não comem nada sem a lavação ritual. E seguem ainda outros
costumes que receberam por tradição: a maneira certa de lavar copos, jarras,
vasilhas de metal, camas. Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus: «Por
que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas tomam a refeição
com as mãos impuras?». Ele disse: «O profeta Isaías bem profetizou a vosso
respeito, hipócritas, como está escrito: 'Este povo me honra com os lábios, mas
o seu coração está longe de mim. É inútil o culto que me prestam, as doutrinas
que ensinam não passam de preceitos humanos'. Vós abandonais o mandamento de
Deus e vos apegais à tradição humana». Chamando outra vez a multidão, dizia:
«Escutai-me, vós todos, e compreendei! Nada que, de fora, entra na pessoa pode
torná-la impura. O que sai da pessoa é que a torna impura. Pois é de dentro, do
coração humano, que saem as más intenções: imoralidade sexual, roubos,
homicídios, adultérios, ambições desmedidas, perversidades, fraude, devassidão,
inveja, calúnia, orgulho e insensatez. Todas essas coisas saem de dentro, e são
elas que tornam alguém impuro».
«Vós abandonais o mandamento de Deus e vos apegais à tradição humana»
Rev. D. Josep Lluís
SOCÍAS i Bruguera (Badalona, Barcelona, Espanha)
Hoje, a palavra do Senhor ajuda-nos a perceber que acima dos
costumes humanos estão os Mandamentos de Deus. De facto, com o passar do tempo,
é fácil nós distorcermos os conselhos evangélicos e, dando-nos ou não conta,
substituir os Mandamentos ou então afogá-los com uma exagerada meticulosidade:
«chegando da praça, eles não comem nada sem a lavação ritual. E seguem ainda
outros costumes que receberam por tradição: a maneira certa de lavar copos,
jarras, vasilhas de metal?» (Mc 7,4). É por isso que a gente simples, com um
sentimento popular comum, não fez caso dos doutores da lei nem dos fariseus,
que sobrepunham especulações humanas à Palavra de Deus. Jesus aplica a denúncia
profética de Isaías contra os religiosamente hipócritas («O profeta Isaías bem
profetizou a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: «Este povo me honra
com os lábios, mas o seu coração está longe de mim»: (Mc 7,6)).
Nos últimos anos, São João Paulo II, ao pedir perdão em nome
da Igreja por todas as coisas negativas que os seus filhos tinham feito ao
longo da história, manifestou-o no sentido de que «nos tínhamos separado do
Evangelho».
«Nada que, de fora, entra na pessoa pode torná-la impura. O
que sai da pessoa é que a torna impura» (Mc 7,15), diz-nos Jesus. Só o que sai
do coração do homem, desde a interioridade consciente da pessoa humana, nos
pode fazer mal. Esta malícia é que causa dano a toda a Humanidade e a cada um.
A religiosidade não consiste precisamente em lavar as mãos (recordemos Pilatos
que entrega Jesus Cristo à morte!), mas em manter puro o coração.
Dito de uma maneira positiva, é o que nos diz santa Teresa
do Menino Jesus nos seus Manuscritos biográficos: «Quando contemplava o corpo
místico de Cristo (?) compreendi que a Igreja tem um coração (?) entusiasmado
de amor». De um coração que ama surgem as obras bem feitas que ajudam em
concreto a quem precisa («Porque tive fome, e me destes de comer?» (Mt 25,35).
“Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim.
De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são
preceitos humanos” (Mc 7,6).
Para entendermos melhor o Evangelho deste domingo devemos
recordar inicialmente que os povos antigos em geral e os judeus em particular,
sentiam um grande desconforto quando tinham de lidar com certas realidades
desconhecidas e misteriosas, que não podiam controlar nem dominar. Criaram,
então, um conjunto de regras e normas, com a finalidade de se protegerem diante
de cadáveres, sangue e lepra, por exemplo. No contexto judaico, quem infringia
essas regras se colocava numa situação de marginalidade e indignidade, que o
impedia de se aproximar do Templo, do culto e de se integrar à comunidade do
Povo de Deus. Dizia-se então que a pessoa ficava “impura”. Para readquirir o
estado de “pureza” e poder reintegrar a comunidade do Povo santo, o crente
necessitava realizar um rito de “purificação”, cuidadosamente estipulado pela
Lei.
Na época de Jesus, as regras da “pureza” tinham sido
ampliadas pelos doutores da Lei e existia uma lista imensa de atividades que
tornavam o homem “impuro” e o afastavam da comunidade do Povo santo de Deus.
Daí a obsessão com os rituais de “purificação”, que deviam ser cumpridos a cada
passo da vida diária. Sobressaem assim
os questionamentos sobre como se libertar da impureza que separa o homem de
Deus. Por esta razão, nas diversas religiões, foram introduzidos ritos
purificadores, como caminhos de purificação interior e exterior.
No Evangelho, observa-se que, por esta razão, na perspectiva
dos doutores da Lei, a purificação das mãos antes das refeições não era uma
questão de higiene, mas uma questão religiosa.
Os fariseus vindos de Jerusalém observavam como os discípulos de Jesus
comiam sem realizar o gesto ritual de purificação das mãos e ficavam escandalizados. Tudo indica que o fato serviu aos fariseus
para sondar e para averiguar a ortodoxia de Jesus e o seu respeito pela
tradição dos antigos.
Contudo, para Jesus, a obsessão dos fariseus para com os
ritos externos de purificação é sintoma de uma grave deficiência quanto à forma
de ver e de viver a religião; por isso, ele responde aos fariseus com certa
dureza. E tendo como base a própria Palavra de Deus, denuncia essa vivência
religiosa sintetizada apenas na repetição de práticas externas e formalistas. Por
isso, ele diz: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de
mim” (v. 6).
Em seguida, Jesus aproveita a ocasião para catequizar os
seus discípulos, dizendo: “O que torna impuro o homem não é o que entra nele
vindo de fora, mas o que sai do seu interior” (v. 15). Este princípio geral, à
primeira vista, passível de várias interpretações, será explicado mais à
frente: “Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções,
imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades,
fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. Todas estas
coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem” (v. 22-23).
Jesus se refere, naturalmente, a dois “circuitos” diversos: o do estômago, onde
entram os alimentos que se ingerem; e o do coração, de onde saem os
pensamentos, os sentimentos e as ações.
Na antropologia judaica, o “coração” é o “interior do homem”
em sentido amplo; ele é a sede dos sentimentos, dos desejos, dos pensamentos,
dos projetos e das decisões do homem. É nesse “centro vital” de onde tudo parte
que é preciso atuar. É no interior do
homem que se definem as suas opções, os seus valores e as suas ações. Cabe a ele buscar na Palavra de Deus o
caminho que o leva à purificação interna. Por isso mesmo o Salmo 118 nos diz:
“A palavra de Deus é uma lâmpada para os meus pés, e luz para o meu caminho”.
Jesus não muda a Lei, ele não muda os mandamentos. A observância dos mandamentos continua sendo
a condição para entrar na terra prometida: “Se queres entrar na vida eterna,
observa os mandamentos” (Mt 19,17).
Fazer a vontade do Pai, colocar em prática os seus mandamentos, é um dos
temas constantes do Evangelho. Mas a
novidade está que Jesus desloca todo o sentido da lei do exterior para o
interior, da boca para o coração, de “fora” do homem para “dentro” do homem. E
Jesus, no sermão das bem-aventuranças, dirá: “Os puros de coração verão a Deus”
(Mt 5,8), ou seja, os que têm um interior puro.
A Lei, como palavra de amor, é uma renovação a partir de
dentro, mediante a amizade com Deus. Algo semelhante se manifesta quando Jesus,
no sermão sobre a videira, diz aos discípulos: “Vós já estais puros, devido à
palavra que vos tenho dirigido” (Jo 15,3). Na medida em que nos deixamos tocar
por Ele e pela sua palavra, também somos purificados.
Que o Senhor venha em nosso auxílio e converta o nosso interior, o nosso coração, assim como aconteceu com muitos santos, para que a nossa vida pessoal, familiar e profissional, seja pautada pelo Evangelho. Que possamos tender sempre para a plenitude da Verdade e do Amor, que é Cristo, o único que pode saciar os profundos desejos do coração humano; e que possamos difundir no mundo a sua luz, a sua pureza e a sua bondade. Assim seja.
Reflexão
1) A lei de Deus
(para os judeus, expressa na Torah) é santa: “Agora, Israel, ouve as leis e
os decretos que eu vos ensino a cumprir… Nada acrescentareis, nada tirareis à
palavra que vos digo, mas guardai os mandamentos do Senhor vosso Deus…” (1a.
leitura). Ora, o zelo dos fariseus e dos escribas eram tais e com uma
mentalidade de tanto apego à letra pela letra, que se tornaram extremamente
legalistas. Eles diziam: “Façamos uma cerca em torno da Lei”, ou seja, criaram
pouco a pouco um número enorme de preceitos para evitar qualquer desobediência,
ao menos remota, à lei. Preceitos humanos que foram obscurecendo a pureza da
lei de Deus e sua característica de ser sinal de amor. Por exemplo: (a) A Lei
dizia que o castigo não poderia ultrapassar as quarenta varadas. Os fariseus
permitam somente trinta e nove, para evitar qualquer perigo de ultrapassar a
conta da lei. (b) A lei proibia o trabalho no sábado. Os escribas e fariseus
insistiam que até carregar o instrumento de trabalho no sábado era já um
pecado: o alfaiate não poderia carregar sua agulha no sábado. (c) A lei
prescrevia abluções (banhos rituais para o culto) só para os sacerdotes. Os
fariseus queriam impô-las a todo o povo. A intenção era boa…. mas o resultado,
não: tornava a religião algo pesado, legalista e apegado a tantos detalhes que
fazia esquecer o essencial: o amor a Deus e ao irmão! Os preceitos humanos
obscureciam a intenção divina!
2) A Lei não fora
dada para ser um fardo que tira a liberdade e entristece a vida, mas como sinal
do amor de Deus, que orienta e indica o caminho com ternura: “Vós os
guardareis… porque neles está a vossa sabedoria e inteligência… Ouve as leis
que vos ensino a cumprir para que vivais e entreis na posse da terra prometido
pelo Senhor Deus” (1a. leitura). A lei e toda prática religiosa devem ser
caminho de vida, e não um fardo insuportável e asfixiante, tornando a religião
algo tristonho e pesado, como se fosse obra de um Deus ciumento e invejoso da
nossa felicidade! Jesus critica os fariseus e os escribas por isso: tornaram a
religião um fardo pesado e triste, ao invés de ser primeiramente um
relacionamento com Deus, íntimo, feliz e amoroso!
3) Jesus censura
também os escribas e fariseus pela incapacidade de distinguir entre o essencial
e o secundário; em discernir o que vem Deus e o que é meramente prática e
tradição humanas, talvez boas e louváveis, mas não essenciais. Em matéria de
religião, nem tudo tem igual valor, nem tudo tem a mesma importância. A medida
de tudo é o amor: o amor é a plenitude da lei (Rm 13,10); só o amor dá sentido
a todas as coisas!
Outro motivo de crítica é que uma religião assim, apegada a
preceitos exteriores, torna-se desatenta do coração, sem olhar a intenção com
que se faz e se vive. Cai-se na hipocrisia (a palavra hipócrita vem de
hypokrités = ator teatral): uma religião meramente exterior, sem aquelas
atitudes interiores, que são as que importam realmente: “Este povo me honra com
os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam!”
(Evangelho). É sério: a atitude exterior (lábios) não combina com o interior
(coração)! As práticas externas valem quando são sinal de um compromisso
interior de amor e conversão em relação a Deus. É importante observar que Jesus
não condena as práticas exteriores, mas a sua supervalorização e a sua atuação
sem sinceridade: “Importava praticar estas coisas, mas sem omitir aquelas” (Mt
23,23).
4) Há também o perigo
da autossuficiência: a pessoa sente-se segura de si mesma por causa de suas
práticas: “Ah, eu vou à missa todo domingo, rezo o terço e dou esmola! Estou em
dia com Deus!” O homem nunca está em dia com Deus. Pensar assim, é deixar de
perceber que tudo é graça e que jamais mereceremos o amor que Deus nos tem
gratuitamente. Sem contar que tal atitude nos leva, muitas vezes, a nos julgar
melhores que os outros, desprezando os que julgamos mais fracos ou imperfeitos!
Era exatamente o que ocorria com os fariseus: “Este povo que não conhece a lei
são uns malditos!” (Jo 7,49); “Tu nasceste todo no pecado e nos ensinas?” (Jo
9,34); “Ó Deus, eu te dou graças porque não sou como o resto dos homens,
ladrões, injustos, adúlteros, nem como este publicano!” (Lc 18,11). É
interessante comparar estas atitudes com as que São Paulo recomenda aos
cristãos em Rm 12,3-13.
5) Jesus convida a ir
ao essencial: vigiar as intenções e atitudes do nosso coração, pois “o que
torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu
interior” (evangelho). Com um coração puro, poderemos reconhecer que tudo de bom
que temos é dom de Deus (“Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto;
descem do Pai das luzes!” – 2a. leitura) e que, diante dele, somos sempre
pobres e pecadores, necessitados de sua misericórdia. Isto nos abre de verdade
para o amor aos outros e para a compaixão: somos todos pobres diante de Deus:
“A religião pura e sem mancha diante de Deus Pai é esta: assistir os órfãos e
as viúvas em suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo”.
Concluindo:
Como vai nossa prática religiosa, pessoal e
comunitariamente? Buscamos um relacionamento amoroso, íntimo e pessoal com o
Senhor ou nos contentamos com uma prática meramente exterior? Julgamo-nos
melhores que os outros diante de Deus? Às vezes dizemos: “Eu não merecia este
mal…” – julgando-nos credores de Deus! Dizemos também: “Há tanta gente pior que
eu; por que aconteceu comigo?” – julgando-nos melhores que os outros!
O que é mais importante na nossa vida de fé? E na nossa vida
em comunidade? O salmo de meditação da missa de hoje dá ótimas pistas para uma
exame de consciência.
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