“EU VOS DOU A MINHA PAZ” (Jo 14,27)
A paz como dom de Deus em Jesus Cristo
1. Estamos
em paz com Deus!
Se
pudéssemos ouvir o grito mais forte que existe no coração de bilhões de
pessoas, ouviríamos, em todas as línguas do mundo, uma única palavra: paz! A
dolorosa atualidade deste tema, junto com a necessidade de se devolver à
palavra “paz” a riqueza e a profundidade de significado de que ela se reveste
na Bíblia, me levou a dedicar a este tema as meditações de Advento deste ano.
Ela nos ajudará, espero eu, a escutar com ouvidos novos o anúncio natalino,
“Paz na terra aos homens que Deus ama”, e a começar a viver em nosso interior a
mensagem que a Igreja, todos os anos, apresenta ao mundo na jornada mundial da
paz.
Comecemos
ouvindo o anúncio fundamental da paz. São palavras de Paulo na Carta aos
Romanos:
“Justificados,
pois, pela fé, estamos em paz com Deus por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor,
mediante o qual também tivemos, pela fé, o acesso a esta graça em que estamos
firmes; e nos gloriamos na esperança da glória de Deus (Rm 5, 1-2).
Eu
ainda me lembro do que aconteceu no dia em que acabou, para a Itália, a segunda
guerra mundial. Os gritos de “Armistício! Paz!” ribombaram da cidade ao campo,
de casa em casa. Era o fim de um pesadelo: basta de terror, basta de
bombardeios, basta de fome. Parecia que finalmente se voltava a viver. Algo
assim deve ter sido provocado, no coração dos leitores, por aquele anúncio do
Apóstolo: “Nós estamos em paz com Deus! Foi selada a paz! Uma era nova começou
para a humanidade na sua relação com Deus!”. A época deles já foi definida como
“de angústia”[1]. Os homens daquele tempo tinham a impressão (nada infundada,
aliás) de que uma condenação pesava sobre a sua cabeça; Paulo a chamava de
“cólera de Deus que se revela do céu contra toda impiedade” (Rom 1, 18). Daí os
ritos e cultos esotéricos de propiciação que pululavam na sociedade pagã
daquele tempo.
Quando
falamos de paz, somos levados a pensar quase sempre numa paz horizontal: entre
os povos, entre as raças, entre as classes sociais, entre as religiões. A
palavra de Deus nos ensina que a paz primeira e mais essencial é a vertical,
entre o céu e a terra, entre Deus e a humanidade. Dela dependem todas as outras
formas de paz. Isto nós vemos no próprio relato da criação. Enquanto Adão e Eva
estão em paz com Deus, há paz dentro de cada um deles, entre a carne e o
espírito (estavam nus e não se envergonhavam), há paz entre o homem e a mulher
(“carne da minha carne”), entre o ser humano e o resto da criação. Tão logo
eles se rebelam contra Deus, tudo se transforma em luta: a carne contra o
espírito (eles se dão conta de estarem nus), o homem contra a mulher (“a mulher
me seduziu”), a natureza contra o homem, o irmão contra o irmão, Caim contra
Abel.
Por
este motivo, pensei em dedicar esta primeira meditação à paz como dom de Deus
em Cristo Jesus. Na segunda meditação, falaremos da paz como tarefa pela qual
trabalhar e, na terceira, da paz como fruto do Espírito, ou seja, da paz
interior da alma. São os três âmbitos da paz evocados num hino da liturgia das
horas: “Paz entre céu e terra, paz entre todos os povos, paz em nossos
corações”[2].
2. A paz de Deus, prometida e dada
O
anúncio de Paulo, recém-ouvido, pressupõe o acontecimento de algo que mudou o
destino da humanidade. Se agora estamos em paz com Deus, isto quer dizer que
antes não estávamos; se agora “não há mais nenhuma condenação” (Rm 8,1), quer
dizer que antes havia uma condenação. Vejamos o que foi que provocou uma
mudança tão decisiva na relação entre o homem e Deus.
Diante
da rebelião do homem – o pecado original – Deus não abandona a humanidade ao
seu azar, mas decide um novo plano para reconciliá-la consigo. Uma comparação
trivial, mas útil para entendermos, pode ser feita com os chamados sistemas de
navegação por satélite, instalados hoje nos carros. Se em algum momento o
motorista não segue a indicação do navegador, fazendo uma conversão à esquerda,
por exemplo, em vez de à direita, o navegador em poucos instantes lhe traça uma
nova rota, a partir da posição em que ele está localizado, para chegar ao
destino desejado. Foi isto o que Deus fez em relação ao homem, decidindo,
depois do pecado, o seu plano de redenção.
A
longa preparação começa com as alianças bíblicas. Elas são, por assim dizer,
“acordos de paz separados”. Primeiro com indivíduos: Noé, Abraão, Jacó; depois,
por meio de Moisés, com todo Israel, que se torna o povo da aliança. Essas
alianças, ao contrário das humanas, são sempre alianças de paz, nunca de guerra
contra inimigos.
Mas
Deus é Deus de toda a humanidade: “Acaso Deus é Deus somente dos judeus? Não é
Deus também dos gentios?”, exclama São Paulo (Rm 3, 29). Estas alianças antigas
eram temporárias, destinadas a ser prorrogadas um dia para todo o gênero
humano. De fato, os profetas começaram a falar cada vez mais claramente de uma
“aliança nova e eterna”, de uma “aliança de paz” (Ez 37, 26), que, a partir de
Sião e de Jerusalém, se estenderá a todos os povos (cf. Is 2, 2-5).
Esta
paz universal é apresentada como um retorno à paz inicial do Éden, com imagens
e símbolos que a tradição judaica interpreta em sentido literal e a cristã em
sentido espiritual:
“De
suas espadas forjarão relhas de arados, e de suas lanças, foices. Uma nação não
levantará a espada contra outra, e não se arrastarão mais para a guerra” (Is
2,4). “O lobo habitará com o cordeiro, a pantera se deitará junto ao cabrito; o
bezerro e o leãozinho pastarão juntos e um menino pequeno os guiará” (Is 11,
6-7).
O
Novo Testamento vê realizadas todas essas profecias com a vinda de Jesus. Seu
nascimento é revelado aos pastores com o anúncio: “Paz na terra aos homens que
Deus ama!” (Lc 2, 14). O próprio Jesus diz que veio ao mundo para trazer a paz
de Deus: “Eu vos deixo a paz; eu vos dou a minha paz” (Jo 14, 27). Na noite de
Páscoa, no cenáculo, sabe-se lá com que divinas vibrações, sai da sua boca de
ressuscitado a palavra “shalom!”, “a paz esteja convosco!”. Como no anúncio dos
anjos no Natal, este não é apenas um cumprimento ou um augúrio, mas algo real,
algo que é transmitido. Todo o conteúdo da redenção estava contido naquela
palavra.
A
Igreja apostólica nunca se cansa de proclamar o cumprimento, em Cristo, de
todas as promessas de paz feitas por Deus. Falando do Messias que nasceria em
Belém da Judeia, o profeta Miqueias tinha predito: “Ele será a nossa paz!” (Mi
5,4); exatamente o que a Carta aos Efésios diz de Cristo: “Ele é a nossa paz”
(Ef 2, 14). “O Natal do Senhor”, diz São Leão Magno, “é o natal da paz”[3].
3. A paz,
fruto da cruz de Cristo
Coloquemos
agora uma pergunta mais precisa. Foi com a sua simples vinda à terra que Jesus
restaurou a paz entre o céu e a terra? É realmente o nascimento de Cristo “o
natal da paz” ou é também, e acima de tudo, a sua morte? A resposta se encontra
na palavra de Paulo da qual partimos: “Sendo, pois, justificados pela fé,
estamos em paz com Deus por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 5,1). A paz
vem da justificação pela fé e a justificação vem do sacrifício de Cristo na
cruz (cf. Rm 3, 21-26)!
Além
disso, a paz é o próprio conteúdo da justificação. Esta não consiste apenas na
remissão (ou, de acordo com Lutero, na não imputação) dos pecados, isto é, em
algo puramente negativo, um “remover” algo que havia; ela envolve também e
acima de tudo um elemento positivo, uma colocação de algo que não havia: o
Espírito Santo e, com Ele, a graça e a paz.
Uma
coisa é clara: não se entende a mudança radical ocorrida no relacionamento com
Deus se não se entende o que aconteceu na morte de Cristo. Oriente e Ocidente
são unânimes em descrever a situação da humanidade antes de Cristo e fora de
Cristo. Por um lado, havia os homens que, pecando, tinham contraído com Deus
uma dívida e precisavam lutar contra o demônio que os mantinha escravos:
situações, estas, que eles não podiam resolver, sendo a dívida infinita e eles
prisioneiros de Satanás, de quem tinham de se livrar. Por outro lado, Deus
podia expiar o pecado e vencer Satanás, mas não devia fazê-lo, não era obrigado
a fazê-lo, já que não era Ele o devedor. Tinha de ser alguém que unificasse em
si mesmo o combatente e o capaz de vencer: é o caso de Cristo, Deus e homem.
Assim se expressam, com termos muito parecidos, Nicolau Cabasilas, entre os
gregos, e Santo Anselmo de Aosta, entre os latinos[4].
A
morte de Jesus na cruz é o momento em que o Redentor cumpre a obra da redenção,
destruindo o pecado e derrotando Satanás. Como homem, aquilo que Ele realiza
nos pertence: “Cristo Jesus foi feito por Deus, para nós, sabedoria, justiça,
santificação e redenção” (1 Cor 1, 30); para nós! Por outro lado, como Deus, o
que Ele realiza tem valor infinito e pode salvar “todos aqueles que recorrem a
Ele” (Hb 7,25).
Em
tempos recentes, tem-se repensado profundamente no sentido do sacrifício de
Cristo. Em 1972, o pensador francês René Girard lançou a tese que considerava
que “a violência é o coração e a alma secreta do sagrado”[5]. Na origem, de
fato, e no centro de toda religião, incluída a hebraica, está o sacrifício, o
rito do bode expiatório que sempre envolve destruição e morte. Já antes dessa
data, porém, aquele estudioso tinha se reaproximado do cristianismo e, na
Páscoa de 1959, tinha tornado pública a sua “conversão”, declarando-se crente e
retornando à Igreja.
Isto
lhe permitiu não ficar apenas, em seus estudos posteriores, na análise do
mecanismo da violência, mas salientar também a forma de sair dele. A seu ver,
Jesus desmascara e despedaça o mecanismo que sacraliza a violência tornando-se
o voluntário “bode expiatório” da humanidade, a vítima inocente de toda a
violência. Cristo, já dizia a Carta aos Hebreus (Hb 9, 11-14), não veio com o
sangue dos outros, mas com o próprio. Não fez vítimas, mas fez-se vítima. Não
colocou os seus pecados sobre os ombros dos outros, homens ou animais; colocou,
sim, os pecados dos outros sobre os próprios ombros: “Ele tomou sobre si os
nossos pecados no madeiro da cruz” (1 Pd 2, 24).
Pode-se
então continuar falando sobre o “sacrifício” da cruz e, por conseguinte, da
missa como sacrifício? Durante muito tempo, o estudioso mencionado rejeitou
este conceito, considerando-o marcado demais pela ideia de violência, mas,
depois, com toda a tradição cristã, acabou admitindo a sua legitimidade, desde
que, afirma ele, se veja no de Cristo um novo tipo de sacrifício e se perceba
nesta mudança de significado “o fato central da história religiosa da
humanidade”[6].
Tudo
isto nos permite entender melhor em que sentido aconteceu na cruz a
reconciliação entre Deus e os homens. Em geral, o sacrifício de expiação servia
para aplacar um Deus enfurecido com o pecado. O homem, oferecendo a Deus um
sacrifício, pede à divindade a reconciliação e o perdão. No sacrifício de
Cristo, a perspectiva é invertida. Não é o homem quem exerce uma influência
sobre Deus para que Ele se aplaque. Antes, é Deus quem age para que o homem
desista da própria inimizade com Ele. “A salvação não começa com o pedido de
reconciliação do homem, mas com o pedido de Deus de nos reconciliarmos com
Ele”[7]. Neste sentido, entende-se a afirmação do Apóstolo: “É Deus quem
reconciliou consigo o mundo em Cristo” (cf. 2 Cor 5, 19), e ainda: “Sendo
inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho” (Rm
5,10).
4.
“Recebei o Espírito Santo!”
A
paz que Cristo nos mereceu com a sua morte na cruz se torna ativa e operante em
nós mediante o Espírito Santo. Por isto, no cenáculo, depois de ter dito aos
apóstolos “Paz a vós”, Ele soprou sobre eles e acrescentou, como de um só
fôlego: “Recebei o Espírito Santo!” (Jo 20, 22).
Em
realidade, a paz vem, sim, da cruz de Cristo, mas não nasce dela. Nasce de mais
longe. Na cruz, Jesus destruiu o muro do pecado e da inimizade que impedia a
paz de Deus de se difundir entre os homens. A fonte suprema da paz é a
Trindade. “Ó Trindade beata, oceano de paz!”, exclama a liturgia em um dos seus
hinos. Segundo Dionísio Areopagita, “Paz” é um dos nomes próprios de Deus[8].
Ele é paz em si mesmo, como é também amor e luz.
Quase
todas as religiões politeístas falam de divindades em permanente estado de
rivalidade e de guerra entre si. A mitologia grega é o exemplo mais conhecido.
A rigor, não se pode falar de Deus como fonte e modelo de paz, nem mesmo no
contexto de um monoteísmo absoluto e numérico. A paz, assim como o amor, não
pode existir a não ser entre duas pessoas. Ela consiste em relações de beleza,
em relações de amor, e a Santíssima Trindade é precisamente essa beleza e
perfeição de relações. O mais impressionante, quando contemplamos o ícone da
Trindade de Rublev, é a sensação de paz sobre-humana que emana dele.
Quando
Jesus diz “shalom” e “Recebei o Espírito Santo”, Ele comunica aos discípulos
algo da “paz de Deus que excede todo entendimento” (Fl 4,7). Neste sentido, a
paz é quase um sinônimo de graça e, de fato, os dois termos são usados em
conjunto, como uma espécie de binômio, no início das cartas apostólicas: “Graça
e paz a vós da parte de Deus e de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 1, 7; 1 Tes 1,
1). Quando se proclama na missa “A paz esteja convosco”, “Cordeiro de Deus, que
tirais os pecados do mundo, dai-nos a paz” e, no final, “Ide em paz”, é desta
paz, como dom de Deus, que se está falando.
5.
“Reconciliai-vos com Deus!”
Gostaria
de destacar agora como este dom da paz, recebido ontologicamente e de direito
por meio do batismo, deve mudar pouco a pouco, também de fato e
psicologicamente, a nossa relação com Deus. O premente apelo de Paulo,
“Suplicamo-vos em nome de Cristo: deixai-vos reconciliar com Deus” (2 Cor 5,
20), é dirigido aos cristãos batizados que vivem há tempos na comunidade. Não
se refere, portanto, à primeira reconciliação, nem, evidentemente, ao que
chamamos de “sacramento da reconciliação”. Neste sentido atual e existencial,
ele é dirigido também a cada um de nós, que tentamos entender em que ele
consiste.
Uma
das razões, talvez a principal, da alienação da religião e da fé por parte do
homem moderno é a imagem distorcida que ele tem de Deus. Esta é também a causa
de um cristianismo apagado, sem impulso e sem alegria, vivido mais como um
dever do que como um presente. Eu penso no quanto era grandiosa a imagem de
Deus Pai na Capela Sistina quando a vi pela primeira vez, toda recoberta por
uma pátina escura, e como é agora, após a restauração, com as cores vivazes e
os contornos nítidos com que tinha saído do pincel de Michelangelo. Uma
restauração mais urgente da imagem de Deus Pai deve acontecer no coração dos
homens, incluídos nós, os crentes.
Qual
é a imagem “predefinida” de Deus (na linguagem dos computadores, de funcionar
como um padrão) no inconsciente coletivo humano? Basta, para descobrirmos,
perguntar a nós mesmos e aos outros: “Que ideias, que palavras, que realidades
surgem espontaneamente em mim, antes de qualquer reflexão, quando digo ‘Pai
nosso, que estais no céu... Seja feita a vossa vontade’”? Inconscientemente,
associamos a vontade de Deus a tudo o que é desagradável, doloroso, àquilo que,
de uma forma ou de outra, pode ser visto como uma mutilação da liberdade e do
desenvolvimento individual. É como se Deus, de certa forma, fosse o inimigo de
toda festa, alegria, prazer.
Outra
pergunta reveladora: o que é que sugere para nós a invocação “Kyrie eleison”,
“Senhor, tende piedade de nós”, que pontua a oração cristã e, em algumas
liturgias, acompanha a missa do início ao fim? Ela acabou se tornando apenas o
pedido de perdão da criatura que vê Deus sempre no processo (e no direito) de
puni-la. A palavra “piedade” foi tão aviltada a ponto de ser usada
frequentemente em sentido negativo, como algo mesquinho e desprezível: “causar
piedade” como sinônimo de “dar pena”, “causar vergonha alheia”. De acordo com a
Bíblia, “Kyrie eleison” deve ser traduzido como “Senhor, cobri-nos com a vossa
ternura!”. Basta ler como Deus fala do seu povo em Jeremias: “Meu coração se
comove com ele e sinto por ele uma profunda ternura" (eleos) (Jr 31, 20).
Quando os doentes, os leprosos e os cegos gritam para Jesus, como em Mateus 9,
27, “Senhor, tem piedade (eleeson) de mim!”, eles não querem dizer “Perdoa-me”,
e sim “Tem compaixão de mim”.
Deus
é visto, geralmente, como o Ser Supremo, o Todo-Poderoso, o Senhor do tempo e
da história, ou seja, como uma entidade que se impõe ao indivíduo a partir de
fora; nenhum detalhe da vida humana lhe escapa. A transgressão da sua lei
introduz inexoravelmente uma desordem que exige reparação. Não podendo, esta
reparação, ser jamais considerada adequada, surge a angústia da morte e do
julgamento divino.
Eu
confesso que quase estremeço ao ler as palavras que o grande Bossuet dirige a
Jesus na cruz, num discurso da Sexta-Feira Santa: “Lanças-te, Jesus, nos braços
do Pai, e te sentes rejeitado; sentes que é Ele próprio quem te persegue, quem
te golpeia, quem te abandona; que é Ele próprio que te esmaga sob o peso enorme
e insuportável da sua vingança... A cólera de um Deus enfurecido: Jesus reza e
o Pai, irado, não o escuta; é a justiça de um Deus vingador perante as ofensas
recebidas; Jesus sofre e o Pai não se aplaca!”[9]. Se assim falava um orador do
alto nível de Bossuet, podemos imaginar a que tipo de coisa se abandonavam os
pregadores populares daquele tempo. Entende-se, assim, como foi se formando
aquela imagem “predefinida” de Deus no coração do homem.
É
claro que nunca se ignorou a misericórdia de Deus! Mas a ela foi confiada
apenas a tarefa de moderar os irrenunciáveis rigores da justiça. Aliás, na
prática, fez-se com que o amor e o perdão de Deus dependessem do amor e do
perdão que damos ao próximo: se perdoarmos a quem nos ofendeu, então Deus
poderá, por sua vez, nos perdoar também. Criou-se com Deus um relacionamento de
barganha. Não se diz que é preciso acumular méritos para ganhar o Paraíso? E
não se atribui grande importância aos esforços a ser feitos, às missas a mandar
rezar, às velas a ser acesas, às novenas a realizar?
Tudo
isso, que permitiu no passado a muita gente demonstrar a Deus o próprio amor,
não pode ser jogado fora: deve ser respeitado. Deus faz desabrocharem as suas
flores – e os seus santos – em qualquer clima. Não há como negar, porém, o
risco de se cair numa religião utilitária, no “do ut des”, “dou para que dês”.
Por trás de tudo está o pressuposto de que a relação com Deus depende do homem.
Ele não pode se apresentar diante de Deus de mãos vazias: deve ter sempre algo
a lhe dar. E é verdade que Deus diz a Moisés: “Ninguém se apresentará diante de
mim com as mãos vazias” (Ex 23,15; 34, 20), mas este é o Deus da lei, não ainda
o Deus da graça. No reino da graça, o homem deve se apresentar diante de Deus
justamente “de mãos vazias”; a única coisa que ele precisa trazer “nas mãos”,
ao se apresentar a Ele, é o seu Filho Jesus.
Vejamos
como o Espírito Santo, quando nos abrimos a Ele, transforma esta situação. Ele
nos ensina a olhar para Deus com olhos novos: como o Deus da lei, é claro, mas,
ainda mais, como o Deus do amor e da graça, como o Deus “misericordioso e
compassivo; lento à ira e grande no amor” (Ex 34, 6). Ele nos revela Deus como
um aliado e amigo, como quem “não poupou o próprio Filho, mas o entregou por
todos nós” (é assim que deve ser entendida a passagem de Rm 8, 32!); em suma,
como um Pai de imensa ternura. Aflora então o sentimento filial que se traduz
espontaneamente no grito: “Abba, Pai!”. Como quem diz: “Eu não te conhecia, ou
só te conhecia por ouvir dizer; agora te conheço, sei quem és; sei que me amas
de verdade e que me és propício”. O filho tomou o lugar do escravo; o amor, o
lugar do medo. É assim que se chega verdadeiramente à reconciliação com Deus,
inclusive no âmbito subjetivo e existencial.
Repitamos
nós também, de tanto em tanto, com a íntima alegria e a jubilosa certeza do
Apóstolo: “Justificados pela fé, estamos em paz com Deus!”.
[1]
E. R. Dodds, Pagani e cristiani in un'epoca di angoscia. Aspetti
dell'esperienza religiosa da Marco Aurelio a Costantino, Florença, La Nuova
Italia 1993.
[2]
Hino de louvor do III domingo do tempo comum.
[3]
São Leão Magno, In Nativitate Domini, XXXVI, 5 (PL 54, 215).
[4]
N. Cabasilas, Vita in Cristo, I, 5 (PG 150, 313); Cf. Anselmo, Cur Deus homo?,
II, 18.20; Tomás de Aquino, Summa theologiae, III, q. 46, art. 1, ad 3.
[5]
Cf. R. Girard, La violence et le sacré, Grasset, Paris 1972.
[6]
Cf. R. Girard, Il sacrificio, Milão 2004.
[7]
G. Theissen - A. Merz; Il Gesú storico, Queriniana, Brescia 2003, pág. 573.
[8]
Pseudo-Dionísio Areopagita, Nomes divinos, XI, 1 s (PG 3, 948 s).
[9] J.B. Bossuet, Œuvres complètes, IV, Paris
1836, pág. 365
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