O
ESCAPULÁRIO E SEUS PRIVILÉGIOS
Dom Estêvão
Bettencourt, OSB
«Como se explicam as promessas
anexas ao escapulário do Carmo? A Justiça Divina poderia, simplesmente em
atenção a essa insígnia, permitir que um pecador endurecido não seja
condenado?»
Dividiremos a resposta em três
etapas:
1) origem do escapulário como tal;
2) privilégios anexos ao
escapulário do Carmo;
3) valor histórico e significado
religioso dos mesmos.
1. Origem do
escapulário
O escapulário (do latim scapula,
espádua) é uma longa peça de pano que das espáduas desce sobre o peito e as
costas de quem a traja, recobrindo a respectiva túnica. Inicialmente servia de
avental durante o trabalho manual. Muito usado entre os monges, tornou-se uma
das insígnias características das Ordens monásticas e religiosas em geral.
Na Idade Média as Ordens Religiosas
propriamente ditas foram criando em torno de si o que se chama «as Ordens
Terceiras» (ou as famílias de «Oblatos» e «Oblatas»), compostas de pessoas
seculares desejosas de viver em contato assíduo com os mosteiros e conventos (a
«Ordem Segunda» era o ramo feminino, enclausurado, de uma Ordem masculina dita
Primeira»). Os terciários e Oblatos receberam, como distintivo de seu estado,
o escapulário. Aos poucos, este foi sendo adotado até pelas Confrarias,
associações remotamente veiculadas a determinada Ordem. Então, para facilitar
o uso da insígnia, os Superiores religiosos resolveram admitir, ao lado do
escapulário grande, o escapulário pequeno, que consta de dois retângulos de
pano de lã ligados entre si por duas fitas, de sorte a poder ser trazidos pelos
irmãos dia e noite sobre o peito e as costas. É esta a forma hoje em dia mais
comumente adotada pelos fiéis que vivem no mundo.
Distinguem-se atualmente vários
tipos de escapulários segundo as diversas Ordens Religiosas e modalidades da
piedade cristã: o mais famoso é o escapulário marron ou negro, da Ordem do
Carmo, ao lado do qual se podem citar: o escapulário branco, da SSma. Trindade,
propagado a partir de 1200; o escapulário negro, das Sete Dores de Maria,
devido aos Servitas, a partir de 1255; o escapulário azul, da Imaculada
Conceição, concedido em 1691 e 1710 aos Teatinos; o escapulário vermelho,
dedicado à Paixão do Senhor, difundido pelos Lazaristas e aprovado em 1847.
O uso do escapulário não visa
apenas ornamentar o respectivo portador. Ao contrário, tem valor religioso
digno de nota: significando a filiação a uma Ordem ou Confraria, implica, em
quem o traz, o desejo sincero de praticar os conselhos evangélicos (cf. Mt
19,21), na medida em que são aplicáveis à vida no século. Além disto, significa
participação nos bens espirituais de que goza a respectiva família religiosa;
costuma ser bento e entregue aos fiéis segundo determinado ritual, tornando-se
assim um sacramental, ou seja, objeto que comunica a graça em quem o usa com
fé e caridade. Vê-se, por conseguinte, que, embora sejam múltiplos os tipos de
escapulário, têm todos a mesma finalidade: significar e, ao mesmo tempo,
fomentar o serviço aprimorado de Deus, que é a grande devoção de todos os
cristãos.
2. Os privilégios
anexos ao escapulário do Carmo
Dentre os favores espirituais outorgados
ao uso do escapulário, sobressaem os que se prendem ao da Ordem do Carmo. Quais
são precisamente?
Enunciam-se dois:
a) o privilégio de uma boa morte;
b) a pronta libertação do
purgatório.
a) A graça da boa morte teria sido
prometida pela SSma. Virgem numa aparição a S. Simão Stock, sexto Superior
Geral dos Carmelitas (1242-1265), em Cambridge, aos 16 de julho de 1251.
Trazendo em mão o hábito da Ordem, teria dito a excelsa Senhora: «Eis o privilégio
que dou a ti e a todos os filhos do Carmelo: todo aquele que morrer, revestido
por este hábito, será salvo».
b) O privilégio «sabatino» afirma
que a Virgem SSma. liberta do purgatório os irmãos filiados à Ordem do Carmelo
no primeiro sábado após a morte de cada um. Este favor, dizem, foi revelado
pela própria Mãe de Deus ao Papa João XXII, provavelmente na véspera de sua
eleição. O mesmo Pontífice terá anunciado aos fiéis tal graça e várias outras
concedidas à Ordem do Carmo mediante a bula «Sacratissimo uti culmine» de 3 de
março de 1317.
3. Valor histórico e
significado religioso de tais privilégios
a) Os documentos sobre os quais se
baseia a afirmação dos dois privilégios têm despertado a atenção dos
estudiosos, levando-os a perguntar se são fontes históricas de todo
fidedignas.
Examinemos o que consta.
O primeiro documento que refere a
aparição da Bem-aventurada Virgem a S. Simão Stock, data do ano de 1430
aproximadamente: é o chamado «Viridarium» do Prior Geral Carmelita João Grossi
(cf. Daniel a S. Virg. Maria, Speculum Carmelitarum I. Antverpia 1680,131). Entre
o ano em que se terá dado a visão (1251) e a data acima, a história não
apresenta documento algum que relate o caso.
No ano de 1642 apareceu pela
primeira vez em público, por iniciativa do Pe. Provincial João Chéron O. C, uma
carta circular de Simão Stock aos religiosos de sua Ordem, carta em que o Prior
Geral referia a aparição e as palavras de Maria. Este documento teria sido
ditado pelo Santo a seu secretário, Pe. Swanyngton. Denegam fé a esse
instrumento os historiadores modernos, inclusive os Carmelitas (cf. Annales
Ord. Carm. 1927 e 1929).
Quanto ao privilégio «sabatino»,
desde o séc. XVII contesta-se a autenticidade da bula de João XXII que o
anuncia ao mundo cristão. Entre a data que este documento traz (1317) e o ano
de 1461 não há menção da bula na tradição. O primeiro autor que a deu a
conhecer foi o Carmelita Balduíno Leersius (†1483). Hoje em dia não há quem
afirme a autenticidade de tal documento. O próprio Pe. Zimmermann na sua
coleção de documentos referentes à Ordem do Carmo (Monumenta histórica
Carmelitana 1356-1363) renunciou a defendê-la. — No texto mesmo da bula paira
dúvida sobre uma das passagens principais: lê-se no original latino que a
Virgem SSma. libertará do purgatório súbito (em breve, sem demora) ou, conforme
outros códigos, sabbato, no sábado seguinte à morte, as almas dos seus fiéis.
Ademais notam os historiadores que
até o séc. XV os membros da Ordem do Carmo não atribuíam maior importância ao
uso do escapulário do que os filhos de outras Ordens.
Eis o que, do ponto de vista
historiográfico, se poderia dizer sobre as promessas anexas ao escapulário do
Carmo
Deve-se reconhecer que uma série de
Papas, a partir do séc XVI, tem favorecido o uso do escapulário do Carmo,
enriquecendo-o com novas indulgências e permitindo sejam anunciadas aos fiéis
as duas promessas acima. Ao fazer isso, porém, nenhum Pontífice intencionou dar
definição dogmática cobre o assunto; os Papas apenas quiseram fazer da piedosa
crença vigente um estímulo para a piedade dos fiéis. As promessas anexas ao
escapulário do Carmo, por conseguinte, ficam pertencendo ao setor das
revelações particulares, que cada cristão é livre de admitir ou não, seguindo
os critérios que lhe pareçam mais fidedignos.
Observe-se, porém, que o privilégio
da boa morte (a primeira das duas promessas) jamais poderá ser entendido em
sentido mecânico, como se o uso mesmo do escapulário, independentemente do teor
de vida moral do cristão, fosse suficiente para garantir a salvação eterna.
Não; o portador do escapulário deverá cultivar as virtudes cristãs para que a
dita insígnia lhe possa valer como penhor de especial tutela de Maria SSma. na hora
da morte. Foi o que o Papa Leão XIII quis inculcar, quando, ao aprovar o Ofício
de S. Simão Stock para os católicos ingleses, mandou inserir no texto
respectivo uma palavrinha que não se achava no original apresentado a S.
Santidade: «Todo aquele que morrer piedosamente trajando esse hábito, não
sofrerá as chamas do inferno». Conseqüentemente comenta J.B. Terrien:
«Certamente os antigos consideravam
o escapulário como penhor de predestinação, mas não chegavam, como penso, ao
ponto de dizer que não restem dúvidas justificadas a respeito da salvação de um
pecador que na hora da morte rejeita o amparo da religião, embora tenha trazido
até o último suspiro a veste sagrada de Maria» (La Mère de Dieu et la Mère des
hommes IV 304).
As boas disposições espirituais são
também exigidas por um comentário do privilégio, comentário atribuído a S.
Simão Stock:
«Conservando, meus irmãos, esta
palavra em vossos corações, esforçai-vos por assegurar vossa eleição mediante
boas obras e por jamais desfalecer; vigiai em ação de graças por tão grande
beneficio; orai incessantemente a fim de que a promessa a mim comunicada se
cumpra para a glória da SSma. Trindade... e da Virgem sempre bendita» (cf.
Bento XIV, De festis B. V. c. VI §§ 7-8).
No tocante ao segundo privilégio, devem-se observar os termos precisos segundo os quais a Santa Sé se tem referido a ele. Um decreto do S. Ofício datado de 15 de fevereiro de 1615 (sob o Papa Paulo V) e renovado pela S. Congregação das Indulgências a 1° de dezembro de 1885 assinala a atitude definitiva do magistério da Igreja sobre o assunto: sem proferir palavra acerca da autenticidade da controvertida bula de João XXII, admite que a Virgem Maria recobrirá com a sua proteção materna, principalmente no sábado (fórmula devida à ambigüidade do texto acima referido: súbito... sabbato...?), dia consagrado ao seu culto, as almas daqueles que na terra tiverem sido seus fiéis servos.
No tocante ao segundo privilégio, devem-se observar os termos precisos segundo os quais a Santa Sé se tem referido a ele. Um decreto do S. Ofício datado de 15 de fevereiro de 1615 (sob o Papa Paulo V) e renovado pela S. Congregação das Indulgências a 1° de dezembro de 1885 assinala a atitude definitiva do magistério da Igreja sobre o assunto: sem proferir palavra acerca da autenticidade da controvertida bula de João XXII, admite que a Virgem Maria recobrirá com a sua proteção materna, principalmente no sábado (fórmula devida à ambigüidade do texto acima referido: súbito... sabbato...?), dia consagrado ao seu culto, as almas daqueles que na terra tiverem sido seus fiéis servos.
Aos 4 de julho de 1908, a S.
Congregação aprovou uma Súmula de indulgências e privilégios concedidos à
Confraria do Escapulário do Carmo, em que se lê verbalmente o seguinte:
Neste documento chama a nossa
atenção, de um lado, o fato de não serem mencionadas nem a aparição da SSma.
Virgem nem a bula de João XXII «Sacratissimo uti culmine»; de outro lado,
verifica-se que, independentemente desses tópicos, a Santa Sé aprecia a
fidelidade ao escapulário do Carmo, mencionando especial proteção de Maria para
os verdadeiros devotos do mesmo (o que certamente exclui o porte meramente mecânico
de tal insígnia); o documento, porém, não fala de libertação do purgatório no
primeiro sábado após a morte, preferindo a fórmula mais geral: «especial
proteção». — Como quer que seja, a idéia de sábado no purgatório teria que ser
entendida em sentido largo ou translato, visto que a sucessão de dias da semana
só pode ser critério na terra, onde o tempo é medido pelo movimento dos corpos;
no purgatório há apenas almas separadas de seus corpos.
As considerações e conclusões acima
talvez causem surpresa em um ou outro dos nossos leitores. Foram contudo
ditadas pela objetividade dos documentos e fatos. Não acarretam, de modo algum,
detrimento para a piedade. Muito ao contrário; esta tanto mais forte e frutuosa
é quanto mais alicerçada sobre a verdade e o «sentire cum Ecclesia», sobre as
normas e declarações da Esposa de Cristo. A cada cristão fica a liberdade de se
santificar dando fé às promessas anexas ao escapulário do Carmo. A finalidade
destas linhas era apenas a de remover qualquer concepção teologicamente errônea
a respeito da tradicional devoção.
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