quinta-feira, 14 de abril de 2022

SÁBADO SANTO

LEITURA (1Pd 3,19-20) - "Pois também Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados – o Justo pelos injustos – para nos conduzir a Deus. Padeceu a morte em sua carne, mas foi vivificado quanto ao espírito. 19.É nesse mesmo espírito que ele foi pregar aos espíritos que eram detidos no cárcere, àqueles que outrora, nos dias de Noé, ti­nham sido rebeldes,* 20.quando Deus aguardava com paciência, enquanto se edificava a arca, na qual poucas pessoas, isto é, ape­nas oito se salvaram por meio da água."

“Jesus desceu à mansão dos mortos”.

P. Jacques PHILIPPE (Cordes sur Ciel, França)

Hoje, não meditamos nenhum evangelho em particular, dado que é um dia que carece de liturgia. Mas, com Maria, a única que permaneceu firme na fé e na esperança depois da trágica morte de seu Filho, preparamo-nos, no silêncio e na oração, para celebrar a festa da nossa libertação em Cristo, que é o cumprimento do Evangelho.

A coincidência temporal dos acontecimentos entre a morte e a ressurreição do Senhor e a festa judaica anual da Páscoa, memorial da libertação da escravidão no Egipto, permite compreender o sentido libertador da cruz de Jesus, novo cordeiro pascal, cujo sangue nos preserva da morte.

Outra coincidência no tempo, menos assinalada porém sem dúvida muito rica em significado, é a que existe com a festa judaica semanal do “Sabbat”. Esta começa na tarde de sexta-feira, quando a mãe de família acende as luzes em cada casa judia, terminando no sábado de tarde. Recordando que depois do trabalho da criação, depois de ter feito o mundo do nada, Deus descansou no sétimo dia. Ele quis que também o homem descanse no sétimo dia, em acção de graças pela beleza da obra do Criador, e como sinal da aliança de amor entre Deus e Israel, sendo Deus invocado na liturgia judaica do Sabbat como o esposo de Israel. O Sabbat é o dia em que se convida cada um a acolher a paz de Deus, o seu “Shalom”.

Deste modo, depois do doloroso trabalho da cruz, «em que o homem é forjado de novo» segundo a expressão de Catarina de Sena, Jesus entra no seu descanso no mesmo momento em que se acendem as primeiras luzes do Sabbat: “Tudo está realizado” (Jo 19,30). Agora completou-se a obra da nova criação: o homem, antigo prisioneiro do nada do pecado, converte-se numa nova criatura em Cristo. Uma nova aliança entre Deus e a humanidade, que nada poderá jamais romper, acaba de ser selada, já que doravante toda a infidelidade pode ser lavada no sangue e na água que brotam da cruz.

Diz a Carta aos Hebreus: «Por isso, resta um repouso sabático para o povo de Deus» (Heb 4,9). A fé em Cristo a ele nos dá acesso. Que o nosso verdadeiro descanso, a nossa paz profunda, não a de um só dia, mas para toda a vida, seja uma esperança total na infinita misericórdia de Deus, de acordo com o convite do Salmo 16: «A minha carne descansará na esperança, pois tu não entregarás a minha alma ao abismo». Que nos preparemos com um coração novo para celebrar na alegria as bodas do Cordeiro e nos deixemos desposar plenamente pelo amor de Deus manifestado em Cristo.

Pensamentos para o Evangelho de hoje

«Que ideia de Deus tivesse podido ante se formar o homem, que não fosse um ídolo fabricado por seu coração? Era incompreensível e inaccessível, invisível e superior a tudo pensamento humano; mas agora tem querido ser compreendido. De qual jeito? Você se pergunta. Pois estando numa manjedoura, predicando na montanha, passando a noite em oração, o bem colgando da cruz... » (São Bernardo)

“Deus [o Filho] não impediu a morte de separar a alma do corpo, segundo a ordem necessária à natureza, mas os reuniu novamente um ao outro pela Ressurreição, a fim de ser Ele mesmo, em Sua pessoa, o ponto de encontro da morte e da vida, e tornando-se, Ele mesmo, princípio de reunião para as partes separadas” (São Gregório de Nissa).

“Pelo fato de que, na morte de Cristo, a Sua alma tenha sido separada da carne, a única pessoa não foi dividida em duas pessoas, pois o corpo e alma de Jesus existiram da mesma forma desde o início na pessoa do Verbo; e na Morte, embora separados um do outro, ficaram cada um com a mesma e única pessoa do Verbo” (São João Damasceno).

“Depois da deposição de Jesus no sepulcro, Maria é a única que permanece a ter viva a chama da fé, preparando-se para acolher o anúncio jubiloso e surpreendente da ressurreição. A espera vivida no Sábado Santo constitui um dos momentos mais altos da fé da Mãe do Senhor. Na obscuridade que envolve o universo, Ela se entrega plenamente ao Deus da vida e, recordando as palavras do Filho, espera a realização plena das promessas divinas”. (S. João Paulo II)).

«A treva divina desse dia, deste século, que se converte cada vez mais num sábado santo, fala a nossas consciências. Tem em si algo consolador porque a morte de Deus em Jesus Cristo é, ao mesmo tempo, expressão de sua solidariedade radical conosco. O mistério mais obscuro da fé é, simultaneamente, a sinal mais brilhante duma esperança sem fronteiras» (Bento XVI)

«A morte de Cristo foi uma verdadeira morte, na medida em que pôs fim a sua existência humana terrena. Mas por causa da união que a Pessoa do Filho manteve com o seu corpo, este não se torneou um despojo mortal como os outros, porque “não era possível que Ele ficasse sob o domínio” da morte (Act 2,24) (...). A ressurreição de Jesus “ao terceiro dia” (1 Cor 15, 4) era disso sinal, até porque se julgava que a corrupção começava a manifestar-se a partir do quarto dia» (Catecismo da Igreja Católica, n° 627)

Cristo desceu aos Infernos

O Catecismo da Igreja nos ensina que:

§632 – As frequentes afirmações do Novo Testamento segundo as quais Jesus “ressuscitou dentre os mortos” (1Cor 15,20) pressupõem, anteriormente à ressurreição, que este tenha ficado na Morada dos Mortos. Este é o sentido primeiro que a pregação apostólica deu à descida de Jesus aos Infernos: Jesus conheceu a morte como todos os seres humanos e com sua alma esteve com eles na Morada dos Mortos. Mas para lá  foi como Salvador, proclamando a boa notícia aos espíritos que ali estavam aprisionados.

§633 – A Escritura denomina a Morada dos Mortos, para a qual Cristo morto desceu, de os Infernos, o Sheol ou o Hades. Visto que os que lá se encontram estão privados da visão de Deus. Este é, com efeito, o estado de todos os mortos, maus ou justos, à espera do Redentor que não significa que a sorte deles seja idêntica, como mostra Jesus na parábola do pobre Lázaro recebido no “seio de Abraão”. “São precisamente essas almas santas, que esperavam seu Libertador no seio de Abraão, que Jesus libertou ao descer aos Infernos”. Jesus não desceu aos Infernos para ali libertar os condenados nem para destruir o Inferno da condenação, mas para libertar os justos que o haviam precedido.

§634 – “A Boa Nova foi igualmente anunciada aos mortos…” (1Pd 4,6). A descida aos Infernos é o cumprimento, até sua plenitude, do anúncio evangélico da salvação. É a fase última da missão messiânica de Jesus, fase condensada no tempo, mas imensamente vasta em sua significação real de extensão da obra redentora a todos os homens de todos os tempos e de todos os lugares, pois todos os que são salvos se tomaram participantes da Redenção.

§635 – Cristo desceu, portanto, no seio da terra, a fim de que “os mortos ouçam a voz do Filho de Deus e os que a ouvirem vivam” (Jo 5,25). Jesus, “o Príncipe da vida”, “destruiu pela morte o dominador da morte, isto é, O Diabo, e libertou os que passaram toda a vida em estado de servidão, pelo temor da morte” (Hb 2,5). A partir de agora, Cristo ressuscitado “detém a chave da morte e do Hades” (Ap 1,18), e “ao nome de Jesus todo joelho se dobra no Céu, na Terra e nos Infernos” (Fl 2,10).

A esperança ilumina o Sábado Santo.

O SÁBADO SANTO pode ser para nós “o dia do Tríduo pascal que mais descuidemos, ansiosos por passar da cruz da sexta feira à aleluia do domingo”[1]. Para que isto não nos aconteça, podemos prestar atenção nas mulheres que acompanharam a Virgem Maria o tempo todo. “Para elas, como para nós, era a hora mais obscura. Naquela situação, porém, as mulheres não ficaram paralisadas, não cederam às forças obscuras dos lamentos e do remorso, não se fecharam no pessimismo, não fugiram da realidade. Fizeram algo simples e extraordinário: prepararam em suas casas os aromas para o corpo de Jesus. (...) Sem consciência disso, essas mulheres estavam preparando na escuridão daquele sábado o amanhecer do ‘primeiro dia da semana’, o dia que mudaria a história”[2].

Hoje Jesus Cristo repousa no sepulcro. Mãos amigas, com carinho, colocaram-no naquele lugar, propriedade de José de Arimateia, perto do Calvário. Onde estão os apóstolos? Os evangelhos não dizem nada, mas no entardecer daquele sábado talvez estivessem indo um a um até o Cenáculo, onde dias antes tinham se reunido com o Mestre. Quanto desânimo em suas conversas! Traíram a Jesus. A tal ponto deve ter chegado o desalento que talvez tenham tido a ideia de deixar tudo e voltar às coisas de antes, como se os últimos três anos tivessem sido apenas um sonho. No entanto, “no silêncio que envolve o Sábado Santo, embargados pelo amor ilimitado de Deus, vivemos à espera do alvorecer do terceiro dia, o alvorecer do triunfo do amor de Deus, o surgimento da luz que permite aos olhos do coração ver de modo novo a vida, as dificuldades, o sofrimento. A esperança ilumina os nossos fracassos, nossas desilusões, nossas amarguras, que parecem marcar o desmoronamento de tudo”[3].

HÁ ALGO diferente nas santas mulheres: foram fiéis até o último momento. Observaram atentamente como tudo ficara para, depois do repouso do sábado, poder voltar e terminar de embalsamar Jesus. Explica-se o desalento deles e delas: ainda não haviam testemunhado, nem os apóstolos e nem elas a ressurreição de Cristo. Apesar de tudo, não querem deixar de prestar esse serviço. O seu carinho é mais forte que a morte. Gostaríamos também, por outro lado, de ser tão valentes quanto José de Arimateia e Nicodemos, que “na hora da soledade, do abandono total e do desprezo...expõem-se(...). Eu subirei com eles até junto da Cruz, apertar-me-ei ao Corpo frio, cadáver de cristo, com o fogo do meu amor..., despregá-lo-ei com os meus desagravos e mortificações..., envolvê-lo-ei com o lençol novo da minha vida limpa, e o enterrarei em meu peito de rocha viva, donde ninguém mo poderá arrancar”[4]. Quando já quase ninguém espera nada de Cristo, esses personagens da Escritura não encolhem os ombros. Não têm nada a ganhar, podem perder tudo, mas querem igualmente demonstrar o seu carinho a Jesus.

Por outro lado, o Sábado Santo não pode ter sido para a Virgem um dia triste, embora doloroso. A fé, a esperança, e o amor mais terno por seu divino filho dar-lhe-iam paz, fá-la-iam aguardar a ressurreição com uma ânsia serena. Recordaria, entretanto, as últimas palavras de Jesus: “Mulher, eis aí teu filho” (Jo 19,26); começaria já a exercer a sua maternidade sobre aqueles homens e aquelas mulheres que haviam seguido Cristo desde os primeiros tempos. Maria procuraria reanimar a fé e a esperança dos apóstolos, recordando-lhes as palavras que tinham ouvido pouco antes dos lábios do Senhor: “Escarnecerão dele, cuspirão nele, açoitá-lo-ão, e hão de matá-lo; mas ao terceiro dia ele ressurgirá” (Mc 10, 34). O Senhor tinha falado bem claro para que, quando viessem momentos de dificuldades, soubessem segurar-se com fé em sua palavra. Junto à recordação dolorosa dos sofrimentos padecidos por Jesus Cristo, um alívio grande apoderar-se-ia de seu coração de Mãe ao pensar que tudo tinha passado: “Agora tudo passou. Concluiu-se a obra da nossa Redenção. Já somos filhos de Deus, porque Jesus morreu por nós e a sua morte nos resgatou”[5].

JUNTO DA VIRGEM
, à luz de sua esperança, os seus corações se inflamariam. “E se tudo aquilo fosse verdade?”, pensavam talvez os apóstolos. “E se Jesus Cristo ressuscitasse de verdade como havia prometido?” Como em outros tempos tinham estado todos juntos em volta do Filho, gostariam agora de estar perto da Mãe. Maria enviou certamente alguns para procurar os que talvez ainda não tivessem aparecido. É possível que ela esperasse encontrar Tomé para consolar o seu coração atemorizado. No momento da prova, souberam recorrer a Maria, e “com Ela, que fácil!”[6].

Queremos apoiar a nossa fé na dela: sobretudo quando as coisas custam, quando chegam dificuldades e momentos de escuridão. São Bernardo havia-o experimentado bem: “Quando se levantam os ventos das tentações, quando tropeças nos escolhos das tribulações, olha a Estrela, chama a Maria”[7]. Deus quer que ela seja para nós advogada, mãe, caminho seguro para encontrar outra vez a luz nos momentos de escuridão.

Quem recorre à poderosa intercessão de Santa Maria sabe que nunca se ouviu dizer que alguém que tenha confiado em Nossa Senhora tenha ficado desamparado, por mais que o momento fosse duro e grande a confusão da alma. Podemos dizer a Jesus: “Apesar da tristeza que possamos albergar, sentiremos que devemos esperar, porque contigo a cruz floresce em ressurreição, porque tu estás conosco na escuridão de nossas noites, és certeza em nossas incertezas, palavras em nossos silêncios e nada poderá roubar jamais o amor que nos tens”[8]. Junto de Maria, mãe da esperança, voltará a crescer a nossa fé nos méritos de seu filho Jesus.

[1] Francisco, Homilia, 11 de abril de 2020.
[2] Ibid.
[3] Bento XVI, Palavras no fim da Via Sacra, 2-IV-2010.
[4] São Josemaria, Via Sacra, 14ª estação, n. 1.
[5] São Josemaria, Via Sacra, 14ª estação.
[6] São Josemaria, Caminho, n. 5l3.
[7] São Bernardo, Homiliae super “Missus est”, 2, 17.
[8] Francisco, Homilia, 11 de abril de 2020.

 

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