1ª Leitura
(Dt 5, 12-15) - Eis o que diz o Senhor: «Guarda o dia de
sábado, para o santificares, como te mandou o Senhor, teu Deus. Trabalharás
durante seis dias e neles farás todas as tuas obras. O sétimo, porém, é o
sábado do Senhor, teu Deus. Não farás nele qualquer trabalho, nem tu, nem o teu
filho, nem a tua filha, nem o teu escravo, nem a tua escrava, nem o teu boi,
nem o teu jumento, nem nenhum dos teus animais, nem o estrangeiro que mora
contigo. Assim, o teu escravo e a tua escrava poderão descansar como tu. Recorda-te
que foste escravo na terra do Egito e que o Senhor, teu Deus, te fez sair de lá
com mão forte e braço estendido. Por isso, o Senhor, teu Deus, te mandou
guardar o dia de sábado».
O
livro do Deuteronômio, mesmo que de redação posterior ao tempo da narração (que
seria o tempo do caminho deserto, sob a guia de Moisés) e com notórias
influências de textos extra bíblicos de culturas vizinhas do Povo de Israel
(nomeadamente dos tratados de vassalagem neo-assírios), é importante para as
reformas de Ezequias (725-697 a.C.; cf. 2Rs 18,4.22) e sobretudo de Josias
(640-609 a.C.; cf. 2Rs 23,4-20), uma vez que as centra no evento fundador de
Israel como Povo, com a celebração da Aliança no Sinai-Horeb. Os elementos
fundamentais que dão corpo às reformas são: o monoteísmo (um só Deus), a
centralidade do curso num só lugar (Jerusalém), a Aliança de Deus-YHWH com o
povo, que faz do Povo propriedade de Deus-YHWH e, portanto, a unidade do povo,
demostrando a insensatez da constituição de dois reinos no período
pós-salomónico e afirmando o ideal de regressar à unidade política das 12
tribos de Israel.
O
livro do Deuteronômio é tradicionalmente dividido em três grandes secções, que
corresponderiam a três grandes discursos de Moisés; o nosso texto situa-se no
início do segundo discurso (cf. Dt 4,44 – 26,19), depois de uma breve
introdução histórica que o situa no contexto da teofania do Sinai-Horeb (Dt
4,44 – 5,5) e é parte da versão deuteronómica do decálogo (Dt 5,6-21). Quanto à
sua forma literária, sendo parte do decálogo (dez mandamentos), é um texto de
carácter legislativo, sem perder, porém, a sua componente didática como se vê
pelo início do discurso de Moisés.
MENSAGEM
Não
é difícil perceber qual a temática que está em foco no texto de Dt 5,12-15:
trata-se do mandamento referente ao sábado, como se percebe até pela repetição
desta palavra por três vezes. Praticamente é a enunciação do mandamento, uma
explicação didática de como se deve praticar esse mandamento e uma
fundamentação teológica para essa mesma prática.
Quanto
à enunciação do mandamento, há que notar que, a par do mandamento de honrar pai
e mãe (cf. Dt 5,16), este é o único que não exprime uma proibição, mas uma
ordem positiva: «Guarda o dia de sábado, para o santificares» (v. 12). Este
enunciado positivo desdobra-se depois em duas explicações, uma positiva
(v.13-14a) e outra em chave de proibição (v.14b): a positiva basicamente
estabelece que o trabalho seja limitado aos primeiros seis dias da semana, de
modo a reservar o sábado para o Senhor-YHWH, mostrando que o «sábado» é um dia
que lhe pertence; já a explicação em chave de proibição centra-se na celebração
do sábado que exclui qualquer possibilidade de trabalho. Esta explicação
negativa, porém, transporta consigo um ideal de justiça para a sociedade que se
baseia na solidariedade, uma vez que é uma espécie de crítica direta a um
sistema social baseado numa lógica de mercado, uma vez que todos, também os
escravos e os estrangeiros, são chamados a guardar o dia de sábado, com
igualdade de direitos em relação às classes médias-altas que teriam a
possibilidade de guardar o sábado exatamente socorrendo-se dos serviços de
escravos e estrangeiros. A terceira parte do texto, o fundamento teológico, é
típico do Deuteronômio, uma vez que, ao contrário do decálogo do livro do Êxodo
que fundamenta o sábado com o repouso de Deus na obra da criação (cf. Ex
20,8-11), o Deuteronômio relaciona a obrigação do sábado com o evento de
libertação do Egito (Dt 5,15); de facto, este último livro do Pentateuco
insiste fortemente sobre a importância da memória da escravatura de Israel no
Egito e sobre a libertação que lhe pôs termo (cf. Dt 4,23; 7,19; 11,2; 26,8).
Uma
releitura do texto do decálogo na versão do Deuteronômio (5,6-21) permite notar
que o mandamento referente ao sábado é central a vários títulos no contexto do
mesmo decálogo e, portanto, de importância cabal para a identidade hebraica:
numa divisão tripartida do decálogo deuteronómico (vv. 6-11; vv. 12-15; vv.
16-21), o sábado ocupa a posição central; além disso, no contexto do decálogo menciona-se
o evento libertador do Egito por duas vezes, a primeira no título que encabeça
todo o decálogo (Dt 5,6) e no mandamento do sábado (Dt 5,15). Centrado assim na
experiência libertadora do Êxodo, que é constitutiva para Israel, este
mandamento funciona como um símbolo dos deveres para com o Senhor-YHWH, Deus
libertador (Dt 5,6.15) e para com o próximo, que também fez a experiência da
libertação (Dt 5,14.21).
ATUALIZAÇÃO
•
Uma compreensão anárquica da realidade poderia relativizar os preceitos do
Decálogo do Deuteronômio e, mais concretamente, de «guardar o dia de sábado
para o santificar». Há que ter em conta que a Lei é sobretudo instrução
paternal de Deus, uma oferta para o seu Povo, para regular as relações em
sociedade. O texto da primeira leitura convida-nos a regressar aos fundamentos
da celebração do Dia do Senhor, tomando a sério o valor do verbo «santificar».
•
Destacámos para o sábado e podemos fazê-lo para o domingo cristão as duas
fundamentações teológicas expressas no livro do Êxodo e do Deuteronômio,
respetivamente, fazendo memória do repouso do Senhor, depois da obra da
criação, e da sua obra de libertação da escravidão do Egito. É importante
voltar aos fundamentos da celebração do Dia do Senhor, vivendo-o como memorial
da libertação do Pecado na Páscoa de Cristo que atualiza a obra libertadora de
Deus da escravidão do Egito.
•
Notámos que a celebração do Dia do Senhor – sábado para os judeus e domingo
para os cristãos – tem uma grande dimensão social, sendo dia de descanso para
todos, garantindo esse direito sobretudo aos pobres que se veem assim
protegidos pela Lei divina. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica: «O agir
de Deus é o modelo do agir humano. Se Deus “descansou” no sétimo dia, o homem
deve também “descansar” e deixar que os outros, sobretudo os pobres, “tomem
fôlego”. O sábado faz cessar os trabalhos quotidianos e concede uma folga. É um
dia de protesto contra as servidões do trabalho e o culto do dinheiro» (n.
2172).
•
O texto do Deuteronômio socorre-se de uma tradição antiga, que está na origem
de Israel como Povo, para redefinir a própria identidade em tempo de crise,
concretamente no tempo do exílio e pós-exílio. A celebração do Dia do Senhor
pode ser um bom recurso para recuperar a identidade cristã. De facto, se no
passado irmãos nossos deram a vida para defender o domingo («Não podemos passar
sem o domingo», diziam diante do cônsul que os condenaria à morte, como quem
diz, «sem nos reunirmos em assembleia ao domingo para celebrar a Eucaristia não
podemos viver»). Como ensinou Bento XVI, a experiência dos mártires de Abitene
pode ser paradigmática para nós cristãos do séc. XXI: «Precisamos do pão da
vida para enfrentar as fadigas e o cansaço da viagem. O Domingo, Dia do Senhor,
é a ocasião propícia para haurir a força d’Ele, que é o Senhor da vida. Por
conseguinte, o preceito festivo não é um dever imposto pelo exterior, um peso
sobre os nossos ombros. Ao contrário, participar na Celebração dominical,
alimentar-se do Pão eucarístico e experimentar a comunhão dos irmãos e irmãs em
Cristo é uma necessidade para o cristão, é uma alegria, e assim pode encontrar
a energia necessária para o caminho que devemos percorrer todas as semanas. Um
caminho, aliás, não arbitrário: a via que Deus nos indica na sua Palavra vai na
direção inscrita na própria essência do homem, a Palavra de Deus e a razão
caminham juntas. Seguir a Palavra de Deus e caminhar com Cristo significa para
o homem realizar-se a si mesmo; perdê-la equivale a perder-se a si próprio.»
Salmo
Responsorial – Salmo 80 (81), 3-4,5-6ab.6c.8a.10-11b
R: Exultai em Deus, que
é o nosso auxílio.
Aclamai
a Deus, nossa força, aplaudi ao Deus de Jacob.
Fazei
ressoar a trombeta na lua nova e na lua cheia, dia da nossa festa.
É
uma obrigação para Israel, é um preceito do Deus de Jacob,
lei
que Ele impôs a José, quando saiu da terra do Egito.
Ouço
uma língua desconhecida: «Aliviei os teus ombros do fardo
e
soltei as tuas mãos dos cestos; gritaste na angústia e Eu te libertei.
Não
terás contigo um deus alheio, nem adorarás divindades estranhas.
Eu,
o Senhor, sou o teu Deus, Que te fiz sair da terra do Egito».
2ª Leitura
(2Cor 4,6-11) - Irmãos: Deus que disse: «Das trevas
brilhará a luz» fez brilhar a luz em nossos corações, para que se conheça em
todo o seu esplendor a glória de Deus, que se reflete no rosto de Cristo. Nós
trazemos em vasos de barro o tesouro do nosso ministério, para que se reconheça
que um poder tão sublime vem de Deus e não de nós. Em tudo somos oprimidos, mas
não esmagados; andamos perplexos, mas não desesperados; perseguidos, mas não
abandonados; abatidos, mas não aniquilados. Levamos sempre e em toda a parte no
nosso corpo os sofrimentos da morte de Jesus, a fim de que se manifeste também
no nosso corpo a vida de Jesus. Porque, estando ainda vivos, somos
constantemente entregues à morte por causa de Jesus, para que se manifeste
também na nossa carne mortal a vida de Jesus.
A
relação de Paulo com as comunidades cristãs por ele fundadas ou pelo menos
solidificadas é semelhante à de um pai que se ocupa da educação dos filhos: ao
verificar comportamentos pouco condizentes com a fé cristã, Paulo intervém
indicando o caminho a seguir. Esta atitude não será certamente estranha a quem
conhece a Primeira Carta aos Coríntios, em que o apóstolo das gentes individua
vários comportamentos reprováveis e mostra o caminho a seguir, oferecendo
também, normalmente, um fundamento teológico. A Segunda Carta de São Paulo aos
Coríntios insere-se nestas relações paternas de Paulo com aquela comunidade,
que se fazem através de visitas presenciais e de correspondência epistolar. Uma
vez que o seu ministério apostólico é posto em causa, muito provavelmente pelo
grupo dos “Homens Espirituais” a que se refere a Primeira Carta aos Coríntios
(cf. 2,6-16; 4,8-10) e nem sequer os seus cristãos vêm em sua defesa, Paulo faz
a sua apologia, uma espécie de defesa do seu ministério apostólico, mostrando
que nele se verificam os critérios que permitem identificar um verdadeiro
apóstolo.
É
neste contexto que se insere este texto proposto pela liturgia, que se esforça
por demonstrar que o ministério apostólico de Paulo é condizente com o mistério
de Cristo e, sobretudo, não o ofusca com pretensões de protagonismo, uma vez
que é o conteúdo da mensagem transmitida por Paulo que assume o verdadeiro
papel de protagonista na sua missão apostólica.
MENSAGEM
No
centro do nosso texto, temos uma descrição autobiográfica de situações limite
(vv. 8-9) vividas pelo apóstolo Paulo e possivelmente pelos seus companheiros
que, porém, não põem termo à sua vida, mas que demonstram bem como a vida
humana do apóstolo é frágil, não imortal. Estes factos autobiográficos,
conjugados com a imagem simbólica dos «vasos de barro» – a fragilidade e a
limitação humana – que transportam o «tesouro do ministério» apostólico, ou
seja, o Evangelho, enquanto conteúdo da mensagem que o apóstolo anuncia (v. 7).
Há, portanto, uma desproporção de valor entre os «vasos de barro» e o «tesouro»
que eles transportam e isso será visível no contraste que se estabelece entre
as situações de fragilidade descritas nos vv. 8-9 e a mensagem que essas
situações podem transmitir (v. 10), isto é, que a vida e a morte de Cristo
estão presentes nas várias situações existenciais, mesmo nas tribulações do
apóstolo. Este é um ponto assente na teologia e na vivência de fé de Paulo,
como se pode verificar ao comparar 2Cor 4,8-10 com Gl 2,19-20 («Estou
crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim»);
e ainda na Carta aos Gálatas, o apóstolo quisera demonstrar que o Evangelho por
ele pregado não tinha origem na vontade humana, mas é fruto da revelação divina
(cf. Gl 1,11-12: «O Evangelho por mim anunciado, não o conheci à maneira
humana; pois eu não o recebi nem aprendi de homem algum, mas por uma revelação
de Jesus Cristo»).
Não
podemos esquecer que este texto se situa num ambiente apologético, de defesa do
apóstolo diante de quem denigre o seu ministério. De facto, a grande mensagem
do nosso texto está nas frases de abertura e de conclusão que servem de moldura
a esta descrição autobiográfica de Paulo: ele não se anuncia a si mesmo (v. 5),
mas anuncia «a glória de Deus, que se reflete no rosto de Cristo» (v. 6), e que
Deus, autor da luz na criação do mundo, fez brilhar como luz no seu coração,
talvez numa alusão, também autobiográfica, ao episódio da estrada de Damasco,
do encontro com Cristo, quando «uma grande luz o envolveu» (At 9,4). O objetivo
de Paulo é demonstrar que Cristo está vivo no seu ministério apostólico, mesmo
a partir da fragilidade que se manifesta na forma como é perseguido e entregue
à morte em nome de Cristo (v. 11).
•
São Paulo é um modelo de servidor do Evangelho para todos os que, na Igreja, se
posicionam ao serviço humilde do Povo de Deus. Dele aprendemos que a grande
característica do apostolado, mais que as ações pastorais inovadoras ou não, é
a relação com Cristo, a ponto de trazer na própria vida as marcas dessa união,
seja nas tribulações que se sofre por causa de Cristo e do Evangelho, seja
porque se incarna na própria vida aquilo que se ensina.
•
Para se exercer um serviço na Igreja, mais concretamente ao serviço do anúncio
e da evangelização, sem excluir nenhum dos outros serviços e ministérios, é
necessário pôr de parte todo e qualquer desejo de ser protagonista, para dar
protagonismo ao Evangelho, verdadeiro «tesouro» que transportamos «em vasos de
barro», frágeis, da nossa fragilidade humana. Mesmo quando o Senhor fortalece a
nossa fragilidade, é importante que seja claro para nós, como era para Paulo,
que o verdadeiro tesouro é o Evangelho que não depende de nós, mas de Deus que
no-lo deu a conhecer na pessoa de Jesus Cristo.
•
A vida do evangelizador deve conformar-se cada vez mais à vida de Cristo a
ponto de se tornar um espelho de Cristo, um livro aberto do Evangelho, onde se
pode ler os sinais da vida oferecida de Jesus. Só uma grande intimidade com
Jesus Cristo, como a que teve Paulo, poderá dar-nos a possibilidade de sermos
pessoas identificadas com o Evangelho que anunciamos.
Aleluia. Aleluia. A vossa
palavra, Senhor, é a verdade; santificai-nos na verdade.
S. Carlos Luanga e companheiros, mártires |
Evangelho (Marcos
2, 23-3,6)
- Passava Jesus através das searas, num dia de sábado, e os discípulos,
enquanto caminhavam, começaram a apanhar espigas. Disseram-Lhe então os
fariseus: «Vê como eles fazem ao sábado o que não é permitido». Respondeu-lhes
Jesus: «Nunca lestes o que fez David, quando ele e os seus companheiros tiveram
necessidade e sentiram fome? Entrou na casa de Deus, no tempo do sumo sacerdote
Abiatar, e comeu dos pães da proposição, que só os sacerdotes podiam comer, e
os deu também aos companheiros». E acrescentou: «O sábado foi feito para o
homem e não o homem para o sábado. Por isso, o Filho do homem é também Senhor
do sábado». Jesus entrou de novo na sinagoga, onde estava um homem com uma das
mãos atrofiada. Os fariseus observavam Jesus, para verem se Ele ia curá-lo ao
sábado e poderem assim acusá-lo. Jesus disse ao homem que tinha a mão
atrofiada: «Levanta-te e vem aqui para o meio». Depois perguntou-lhes: «Será
permitido ao sábado fazer bem ou fazer mal, salvar a vida ou tirá-la?». Mas
eles ficaram calados. Então, olhando-os com indignação e entristecido com a
dureza dos corações, disse ao homem: «Estende a mão». Ele estendeu-a e a mão
ficou curada. Os fariseus, porém, logo que saíram dali, reuniram-se com os
herodianos para deliberarem como haviam de acabar com Ele.
O
texto evangélico deste domingo conclui a primeira secção do Evangelho de
Marcos, que descreve a fase inicial do ministério de Jesus (cf. 1,14-3,6), e é
a última das controvérsias de Jesus com os seus opositores acerca de algumas
práticas rituais judaicos, no caso sobre o sábado judaico. É de notar que estes
dois textos que formam Mc 1,23 – 3,6 são os únicos dois textos de Marcos em que
Jesus se contrapõe ao sábado; no resto do Evangelho, tanto Jesus como quem está
com Ele observam as práticas judaicas a respeito do mandamento de guardar o
sábado. Recapitulando, Jesus tinha-se já confrontado com os escribas a respeito
do perdão dos pecados ao paralítico (cf. 2,1-13), do estar à mesa com os
publicamos e pecadores (cf. 2,14-17); depois, com os discípulos de João Batista
e os fariseus sobre as práticas do jejum, não observado pelos discípulos de
Jesus (cf. 2,18-22); confronta-se agora com os fariseus sobre o respeito pelo
dia de sábado em dois episódios (2,23-28; 3,1-6), sendo que, neste último
episódio, pela primeira vez os seus opositores se reuniam com os herodianos
para encontrar maneira de condenar Jesus à morte (3,6), funcionando esta
decisão como conclusão de todos os confrontos.
Será
bom ter em conta o objetivo desta primeira secção do Evangelho de Marcos; o
evangelista pretende mostrar a novidade trazida pelo movimento de Jesus, bem
diferente do ambiente judaico e rabínico, mostrando o amor de Deus pelos que
estavam marginalizados (os publicamos e pecadores), uma mensagem que toma corpo
no perdão dos pecados (na cura do paralítico) e a total rejeição de leituras
rigoristas da Lei de Moisés, demonstrando que o formalismo pode aniquilar a
experiência de fé, que deve estar sempre orientada para o bem do outro. Como se
verá o critério que Jesus deixa para interpretar o sábado judaico, mas também
outros preceitos é o amor ao outro.
MENSAGEM
O
nosso texto é composto por dois episódios que colocam Jesus em confronto com a
instituição do sábado judaico: os discípulos a colher espigas para comer e um
homem com uma mão atrofiada que nos coloca, com Jesus e os seus interlocutores,
diante do dilema de curar ou não esse homem; ambos os episódios em dia de
sábado. No que ao primeiro episódio diz respeito, o problema de colher espigas
talvez seja o problema de se entender como colheita.
De
qualquer forma, Marcos convida-nos a centrar-nos nas palavras de Jesus que ajudam
a interpretar a sua liberdade diante da instituição do sábado judaico: «O
sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. Por isso, o Filho do
homem é também Senhor do sábado» (Mc 2,27-28); «Será permitido ao sábado fazer
bem ou fazer mal, salvar a vida ou tirá-la?» (Mc 3,4). Estas palavras de Jesus
dão a interpretação dos episódios, bem como da forma como Jesus se posiciona
diante da instituição de sábado em geral.
Já
na controvérsia de Mc 2,1-12 sobre o perdão dos pecados, a questão era do
«poder» ou «autoridade» para o fazer. Da mesma forma, agora apenas nas palavras
de Jesus, a relação de Jesus com o sábado exprime-se em chave de poder e
autoridade, uma vez que Ele, «o Filho do homem, é também Senhor do sábado» (Mc
2,28).
A
segunda linha de argumentação é a da total precedência das necessidades
humanas, mesmo em relação ao sagrado: isto vale para a fome dos discípulos
diante do sábado que é sagrado, como valeu para a fome de David e dos seus
homens diante dos pães sagrados da proposição (pelo menos na forma como Mc
2,25-26 nos conta o episódio com algumas nuances em relação a 1Sm 21,1-7) e
valerá também para a cura do homem com a mão atrofiada diante da instituição de
sábado. Diante do poder de Jesus e das necessidades humanas, as coisas sagradas
não têm um valor próprio (nem o pão do santuário, no caso de David, nem o
sábado, no caso dos discípulos de Jesus ou do homem com a mão atrofiada), mas
existem para o bem da humanidade (os pães da proposição para alimentar David e
os seus homens, o sábado para o homem e para Jesus); na interpretação de Jesus,
é fundamental que o que é sagrado esteja ao serviço do homem. A par deste
critério, se partirmos da formulação da pergunta retórica de Mc 3,4, na perspectiva
de Jesus não há um agir neutro e ainda menos decisivas são as instituições: a
lei é a da atenção ao outro, a quem sou chamado a fazer bem, salvando-lhe a
vida, ou então posiciono-me diante dele para lhe fazer mal, causando-lhe a
morte. Em ambos os momentos, Jesus escolheu fazer o bem e colocar-se ao serviço
das necessidades humanas, satisfazendo-as, mesmo se isso lhe acarreta a decisão
do conluio das autoridades políticas e religiosas contra Ele, para o condenarem
à morte.
É
importante ter em conta que Jesus não retira qualquer importância ao sábado,
enquanto dia consagrado a Deus, mas redireciona-o de modo a voltar à intuição
inicial da Lei de Moisés, uma vez que «o sábado foi feito para o homem e não o
homem para o sábado» (2,27). Não está em causa uma interpretação libertina ou
relativista do sábado, mas fazer dele o dia da relação com Deus que vem em
auxílio de quem está em necessidade. Uma boa interpretação lê todos estes
aforismos de Jesus em relação entre eles, de modo que o sábado esteja sempre ao
serviço do homem, para fazer bem e salvar a vida; se, de facto, Jesus é o
senhor do sábado, é para o recolocar ao serviço do homem e da salvação da vida.
ATUALIZAÇÃO
•
Jesus ensina-nos a posicionar-nos com verdadeira liberdade diante da Lei de
Moisés, ou melhor, diante da Lei de Deus, que nos chegou por Moisés, sem perder
nunca de vista o seu objetivo de regular a nossa vida em sociedade e em Igreja,
protegendo os mais frágeis e evitando toda e qualquer opressão por parte de
quem exerce o poder. Interpretações rigoristas da Lei – como são as dos
fariseus no nosso texto – cegam e não deixam ver as necessidades humanas que,
na perspectiva de Jesus, são o verdadeiro critério para manter uma atitude
livre diante da Lei.
•
O nosso texto não coloca em causa a celebração do culto no dia de sábado, mas
reposiciona-a de modo a que possa coabitar com o serviço dos necessitados, na
pessoa dos discípulos com fome e de uma pessoa com uma mão atrofiada. A
celebração do Dia do Senhor, ao domingo, pode ser cada vez mais expressão desta
dupla faceta do sábado reinterpretado com Jesus que, em dia de sábado entra na
sinagoga, lugar onde se realiza o culto, mas não pactua com a necessidade de
quem sofre, indo em seu auxílio, dando conforto e, no caso, mesmo a cura. Se o
cristão prolonga na existência a vida de Cristo, é importante que no dia maior,
a Ele consagrado, não se perca de vista aqueles que foram os seus prediletos.
•
A regra hermenêutica que Jesus dá para saber o que se pode fazer ou não ao
domingo pode ser transposta para outros campos da nossa vida: é importante
saber que queremos estar ao serviço do bem e da salvação da vida humana, em
linha com o desejo de Deus, tal como se manifesta na vida e mensagem de Jesus;
a par disso, sabemos que as instituições, sejam elas religiosas ou civis, devem
estar ao serviço da vida humana, para que possam realizar a missão para a qual
nasceram.
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