A Cruz do
Gólgota foi um sinal de infâmia: os homens desonraram Cristo condenando-O à
morte de cruz; mas a Cruz transformou-se numa exaltação, numa glorificação. O
horizonte do Sacrifício da Cruz abraçava não só Jerusalém mas o mundo inteiro e
abria-se para o horizonte da vida eterna: a Cruz ficará para sempre o sinal da
Vida Eterna em Deus.
PRIMEIRA LEITURA: Números 21, 4b-9
O contexto
deste relato é o da longa viagem desde a longa estância no oásis de Cadés até
Moab, em que o povo se cansa com os rodeios para evitar enfrentar Edom (cf. v.
4), revolta-se e protesta contra Moisés. O que aqui se relata pode muito bem
ser referido a um lugar de Arabá, a actual Timná, onde se encontrou uma serpente
de bronze num antigo santuário egípcio. Às serpentes era atribuído um poder
mágico
v.5 «Este alimento miserável».
Referência bem realista ao maná, cuja idealização posterior o considera, pelo
contrário, «pão dos fortes» e «pão dos anjos», pão com todas as delícias e com
todos os sabores ao gosto de cada pessoa (cf. Sab 16, 20-21; Salm 78, 23-25).
v.6 «Serpentes venenosas», à letra, de
fogo, um hebraísmo para dizer serpentes abrasadoras, cuja natureza se ignora.
Há mesmo quem pense em pequenos parasitas, as filárias, que perfuram a pele,
invadem e obstruem os canais linfáticos, causando a morte por filariose.
v.8 «Faz uma serpente de bronze…» O
relato bíblico poderia fazer pensar, à primeira vista, num recurso à magia,
rejeitada em toda a Sagrada Escritura, pois aqui a cura até parece pertencer à
classe da homeopatia mágica: uma imagem do causador do mal teria o poder de o
esconjurar! Talvez por isso o livro da Sabedoria tem o cuidado de atribuir a
cura à misericórdia de Deus: «não em virtude do que via, mas graças a Ti, o
Salvador de todos» (cf. Sab 16, 5-14). Também entre os gregos a serpente era o
animal emblemático de Esculápio e conserva-se como símbolo das nossas
farmácias. Como se pode ver no Evangelho de hoje (Jo 3, 14-15), este relato encerra
um sentido típico visado por Deus: o poste é figura da Cruz, a serpente de
bronze é figura de Cristo Salvador, que salva da morte eterna todos os homens
feridos pela mordedura mortal do pecado, desde que, arrependidos, olhem para
Jesus com fé.
SEGUNDA LEITURA: Filipenses 2, 6-11
A leitura
constitui um admirável hino à humilhação e exaltação de Cristo, que muitos
exegetas pensam ser anterior ao este escrito paulino e a mais antiga confissão
de fé explícita na divindade de Cristo que consta dos escritos do Novo
Testamento.
v.6 «De condição
divina». Literalmente: «existindo em forma de Deus». Ora esta forma (morfê) de
Deus, ainda que não significasse directamente a natureza divina, pelo menos
indicaria a glória e a majestade, atributos especificamente divinos na
linguagem bíblica. De qualquer modo, como bem observa Heinrich Schlier, a
expressão em forma de Deus não quer dizer que Deus tenha uma forma como a têm
os homens, mas significa que Jesus «tinha um ser como Deus, um ser divino».
«Não se
valeu da sua igualdade com Deus». O texto original foi simplificado no texto
litúrgico, pois há diversas possibilidades de tradução desta rica expressão: a)
«Não considerou como um roubo o ser igual a Deus»; b) «Não considerou como algo
a roubar (=algo cobiçado) o ser igual a Deus». No primeiro caso, considera-se o
termo grego harpagmós em sentido activo (roubo); no segundo, em sentido passivo
(coisa cobiçada). A Vulgata, seguida pela Nova Vulgata, traduz: «não considerou
uma usurpação (rapinam) o ser igual a Deus» (sentido activo); a interpretação
dos Padres Gregos, a que se ateve a nossa tradução litúrgica, considera o termo
grego com sentido passivo: «não considerou como algo cobiçado (harpagmón). Há
quem pense que S. Paulo quer fazer ressaltar o contraste entre a atitude
soberba dos primeiros pais que, sendo homens, quiseram vir a ser iguais a Deus
(cf. Gn 3, 5.22) e a atitude humilde de Jesus que, sendo Deus, se quis fazer
«semelhante aos homens» (v. 7).
v.7 «Mas aniquilou-se a si próprio», à
letra, esvaziou-se: Jesus Cristo, ao fazer-se homem, não se despojou da
natureza divina, mas sim da glória ou manifestação sensível da majestade que
Lhe competia em virtude da chamada união hipostática (na pessoa do Filho eterno
de Deus, a natureza humana e a natureza divina unidas numa união misteriosa).
«Assumindo a condição de servo», o que não significa a condição social de
escravo, mas a «forma» (morfê) de se conduzir própria de um ser pobre e
dependente, cumprindo a figura do «servo de Yahwéh», a que se refere a primeira
leitura de hoje; «tornou-se semelhante aos homens, aparecendo como homem», não
apenas, como queria a heresia doceta, nas aparências (skhêmati), mas no sentido
em que o homem é «semelhante» (en homoiômati) dos outros homens, em tudo igual
excepto no pecado (cf. Hebr 4, 15).
v.8 «Humilhou-se ainda mais, obedecendo
até à morte e morte de cruz». Note-se como é posta em relevo esta obediência e
aniquilamento – a kénosis – de Cristo, num sublime crescendo de humilhação em
humilhação: feito homem, assume a condição de escravo, Ele obedece, e com uma
obediência que vai até à morte, e não uma morte qualquer, mas a dum malfeitor,
a morte de cruz – homem, escravo, malfeitor!
v.9-10 Mas este aniquilamento – o tremendo
escândalo da Cruz – não foi uma derrota, o desfecho duma história trágica com que
tudo acabou. Estamos perante o sublime paradoxo da sua «exaltação»: foi «por
isso» mesmo que «Deus» (não Ele próprio, mas o Pai, ho Theós com artigo) «O
exaltou» de modo singularíssimo (à letra, acima de tudo o que existe, tendo na
devida conta a preposição hypér na composição do verbo grego, corresponde a:
Deus soberanamente O exaltou), o que se deu na glorificação da humanidade de
Jesus com a sua Ressurreição e Ascensão. A esta exaltação corresponde o «nome»
que Lhe é dado por Deus, o mesmo nome com que passa a ser invocado pela
multidão de todos os crentes de todos os tempos; já não se trata simplesmente
do nome usado na sua vida terrena e que consta da sentença que o condenou à
morte de cruz, Jesus, mas trata-se do mesmo nome com que o próprio Deus é designado
para traduzir o nome divino «Yahwéh» – «Senhor».
v.11 A todos pertence proclamar e
reconhecer a divindade de Jesus – «toda a língua proclame que Jesus Cristo é
Senhor» (mais expressivo Senhor sem artigo, como no original grego) e o seu
domínio sobre toda a criação – «no céu, na terra e nos abismos, para glória de
Deus Pai» (A tradução da velha Vulgata neste ponto era pouco expressiva e
deficiente, ao traduzir: «proclame que o Senhor Jesus Cristo está na glória de
Deus Pai»).
Independentemente
da discussão acerca do aniquilamento de que aqui se fala, se ele visa ou não
directamente o mistério da Incarnação, fica bem claro que Jesus não é um
simples servo do Senhor que vem a ser exaltado por Deus, pois Ele é Deus que se
abaixa e depois vem a ser exaltado. Também fica patente que a fé na divindade
de Jesus não é o fruto duma elaboração teológica tardia, pois a epístola é,
quando muito, do ano 62, se não é mesmo de cerca de 56 (como hoje pensa a
generalidade dos estudiosos), e, como dissemos, estes versículos já fariam
parte dum hino litúrgico a Cristo, anterior à epístola.
EVANGELHO: São João 3, 13-17
O texto é
tirado do «discurso» de Jesus a Nicodemos. Não é fácil distinguir nos discursos
de Jesus em S. João, quando é que o evangelista apresenta as próprias palavras
de Jesus de quando apresenta a sua reflexão divinamente inspirada sobre elas.
Aqui costuma-se considerar a meditação do evangelista a partir do v. 13,
meditação que, do v. 16 ao 21, é o chamado kérigma joanino.
v.13 «Filho do Homem» tem em S. João um
sentido glorioso, indicando a origem divina de Jesus, o Filho de Deus
pré-existente enviado ao mundo para salvar os homens e que «subiu ao Céu», uma
realidade que pertence às coisas do Céu (v. 12); nos Sinópticos conserva mais o
sentido da literatura apocalíptica (cf. Dn 7, 13; 4 Esd; Henoc Etiópico),
indicando o Messias, o salvador do povo que virá no fim dos tempos e também o
Messias-sofredor. Mas expressão na Filho do homem nem sempre fica bem claro o
título cristológico, pois por vezes poderia não passar de um mero asteísmo, uma
figura de linguagem (asteísmo) para Jesus se referir discretamente à sua
pessoa: este homem = eu. J. Ratzinger/Bento XVI encara com grande profundidade
esta afirmação de Jesus acerca de si mesmo (Jesus de Nazaré, cap. X)
v.14 «Elevado», na Cruz, entenda-se. Mas
S. João joga com os dois sentidos da elevação: na Cruz e na glória. E isto não
é um simples artifício literário, mas encerra um mistério profundo, pois é na
Paixão que se manifesta todo o amor de Jesus (cf. Jo 13, 1), todo o seu poder
divino salvífico de dar o Espírito e a vida eterna (cf. 7, 38; 12, 23-24; 17,
1.2.19), numa palavra, a sua glória, que culmina na Ressurreição (cf. 12, 16).
Para a alusão à serpente de bronze, ver Nm 21, 4-9 (1ª leitura de hoje); Sab
16, 5-15 e o Targum que fala mesmo dum lugar elevado onde Moisés a colocou.
v.16 «Deus… entregou o seu Filho
Unigénito». Parece haver aqui uma alusão ao sacrifício de Isaac (cf. Gn 22,
1-12), que os Padres consideravam uma figura de Cristo, até por aquele pormenor
de Isaac subir o monte Moriá com a lenha às costas, como Jesus subindo o monte
Calvário carregando a Cruz.
v.17 «Não… para condenar o mundo, mas
para que o mundo seja salvo». Jesus contraria as ideias judaicas da época, que
imaginavam o Messias como um juiz que antes de mais vinha para julgar e
condenar todos os que ficavam fora do Reino de Deus, ou se lhe opunham.
A CRUZ DA SALVAÇÃO
«Assim como Moisés
elevou a serpente no deserto, também o Filho do homem será elevado» (Jo 13,
14).
O Senhor
recorda-nos, uma vez mais, que o nosso caminho é de Cruz, cruz que temos de
amar, cruz que temos de contemplar a exemplo dos israelitas no deserto, pois só
nela está a Salvação. O mistério da Cruz é um mistério luminoso que dá sentido
a tudo o que nós chamamos absurdo, fracasso, contradições. Contemplando os
mistérios dolorosos do santo rosário, chegaremos a contemplar o rosto doloroso,
de Jesus Cristo e prostrar-nos-emos em adoração: “Para transmitir ao homem o
rosto do Pai, Jesus teve de assumir não apenas o rosto do homem, mas também o
“rosto” do pecado. «Aquele que não havia conhecido pecado, Deus o fez pecado
por nós para que nos tornássemos n’Ele justiça de Deus» (2 Cor. 5, 21). Só Ele
que vê o Pai…avalia até ao fundo o que significa resistir com o pecado ao seu
amor” (Beato João Paulo II, No Início do Novo Milénio, nº 26).
CIÊNCIA DA CRUZ
«Quando tiverdes
levantado o Filho do Homem, então conhecereis que Eu sou» (Jo 8, 28)
Contemplando
Jesus Cristo Crucificado, aprenderemos a verdadeira ciência da Cruz. Esta
ciência não consiste simplesmente em suportar mas em compreender profundamente
os caminhos dolorosos, muitas vezes incompreensíveis, através dos quais Cristo
triunfa e salva. Os sofrimentos da Paixão e morte de Cristo situam-nos diante do
núcleo do plano divino da nossa redenção: a destruição do pecado, em virtude do
amor infinito de Deus, que se manifesta numa entrega total.
“O Senhor
sofreu tanto e foi tão feliz por sofrer a condenação à morte, que padeceria mil
vezes mais, se isso fosse necessário, para nos salvar de uma condenação mil
vezes pior do que aquela: a da separação eterna de Deus”(Cfr. Hugo de Azevedo,
a Psicologia da Cruz, Cel. Lit. 2, Ano B-1993/94).
AMAR A CRUZ
«Quando for levantado
da terra atrairei todos a Mim» (Jo 12, 32)
Naturalmente
não gostamos da cruz, nem da dor, nem do sofrimento, nem da morte. Não foi Deus
que fez a cruz, nem a dor, nem foi Deus que desejou a morte. Tudo isso foi obra
nossa. A dor entrou no mundo pelo pecado dos homens. Jesus veio ao nosso encontro
com a nossa dor, com o nosso sofrimento. Não teve outra linguagem senão a
linguagem da cruz, para se fazer entender. A partir do seu Sacrifício no
Calvário, temos de amar a Cruz como Jesus a amou. “Longe de mim gloriar-me
senão na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo”- dirá S. Paulo. Será pela porta
estreita da Cruz de Nosso Senhor que todos teremos de entrar, se desejamos
verdadeiramente a sabedoria divina e conseguir a salvação.
Que Deus
nos conceda a graça de amarmos a Cruz, de descansar na cruz, de “alegrar-nos”
nos sofrimentos suportados pelos nossos irmãos, a exemplo de S. Paulo (Cfr. Col
1, 24). Encontrar a cruz é encontrar Cristo e com Ele haverá sempre alegria,
mesmo diante de injustiças, mesmo mo meio de penas abundantes, de amarguras sem
conta: “ter a cruz é identificar-se com Cristo, é ser Cristo, e, por isso, ser
filho de Deus” (S. Josemaria Escrivá).
“O amor
verdadeiro exige sair de si mesmo, entregar-se. O autêntico amor traz consigo a
alegria: uma alegria que tem as suas raízes com forma de cruz” (Forja, 28).
“Maria
Santíssima, de pé junto da Cruz de seu filho, completou verdadeiramente na sua
carne – no dizer de S. Paulo – como igualmente no seu coração – aquilo que
faltava aos sofrimentos de Cristo”( Cfr. Beato João Paulo II, Carta Apostólica
“Salvifici Doloris”, nº 25).
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