Dom Estêvão Bettencourt (OSB)
“Visto
que os antigos frequentemente admitiam o nascimento virginal de seus heróis,
não seria o propalado nascimento virginal de Cristo mero produto da imaginação
de seus discípulos?”
A
resposta apresentará primeiramente os fundamentos bíblicos da crença na
maternidade virginal de Maria; a seguir, examinará as hipóteses que tentam
explicar essa crença qual mito inspirado pelas antigas concepções pagãs; por
fim, proferir-se-á um juízo sobre a questão.
1. Os
fundamentos bíblicos da fé no nascimento virginal de Cristo
a)
É principalmente o texto de Lc 1,34s que interessa ao exegeta no caso. Eis o
que se sucedeu a primeira comunicação feita a Maria, de que daria à luz um
filho (v. 31):
34
“Disse Maria ao anjo; 'Como se fará isso, pois que não conheço varão?'
35
Respondeu-lhe o anjo: 'O Espírito Santo descerá sobre ti e o poder do Altíssimo
te recobrirá com a sua sombra; por isto o menino que de ti nascer, será santo;
será chamado Filho de Deus' ”.
A
pergunta formulada no v. 34 por Maria não significa dúvida a respeito da
promessa de Deus, mas versa sobre a maneira como poderá dar à luz; Maria não
conhece varão. A expressão, no texto grego de S. Lucas, tem sentido
correspondente ao da locução paralela hebraica: designa as relações conjugais
(cf. Gên 19,8; Num 31,17; Jdt 11,39). Maria, portanto, afirma ao anjo que ela
não vive conjugalmente de sorte a poder conceber (é propriamente virgem,
conforme Lc 1,27) e parece ter feito o propósito de permanecer neste estado,
pois não vê como se poderá tornar mãe, embora haja sido dada em casamento a
José (com o qual deverá começar a coabitar em breve). Bons exegetas entendem as
palavras de Maria no v. 34 como reafirmação de um voto de virgindade propriamente
dito (admitida esta sentença, acrescentar-se-á que Maria aceitou o matrimônio
com São José a fim de se eximir de solicitações importunas, tendo naturalmente
entrado em acordo prévio com o futuro esposo).
A
resposta do anjo assegura à Virgem que pode estar tranquila, pois conceberá sem
concurso de varão e, sim, por intervenção direta de Deus: o Espírito Santo
prepararia suas entranhas puríssimas para receber o Filho de Deus, e o poder do
Altíssimo a recobriria com a sua sombra. O «recobrir com a sombra» é expressão
baseada na descrição das solenes intervenções de Deus ou teofanias do Antigo
Testamento (cf. Ex 40,35; Num 9,22; também a narrativa da Transfiguração em Lc
9,34s); significa de maneira delicada a ação de Deus entre as criaturas. Em
resumo, pois, o anjo afirma a Maria, evitando todo antropomorfismo grosseiro,
que ela será preparada a gerar Jesus por ação extraordinária do Todo-Poderoso,
ação que dispensará toda a colaboração marital.
b)
Faz eco a Lc 1,34s o texto de Mt 1,16.18-23.
Em Mt 1,16 o Evangelista rompe o estilo da
série genealógica apresentada, conforme o qual deveria dizer : «Eliud gerou
Eleazar, Eleazar gerou Matã, Matã gerou Jacó, Jacó gerou José, José gerou
Jesus, que é chamado Cristo». Embora a versão síria sinaítica (e esta só,
dentre a multidão dos manuscritos antigos do texto sagrado) dê a ler tal
construção de frase, não há crítico contemporâneo que não reconheça ser esta
uma forma não-autêntica do texto evangélico (explica-se pela variante
encontrada em vários códices gregos: «,. .José, ao qual estava esposada Maria,
que gerou Jesus». A omissão do segundo pronome relativo nesta frase deu origem
à variante singular da versão síria). Pode-se afirmar que S. Mateus
intencionalmente se afastou do esquema estilístico para dizer: «...Matã gerou
Jacó, Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado
Cristo» (Mt 1,18); o Evangelista quis, pois, conscientemente excluir José da
paternidade física em relação a Jesus.
A
seguir, o mesmo autor, como que completando o seu pensamento, acentua que Maria
foi encontrada grávida por obra do Espírito Santo antes que coabitasse com
José; isto surpreendeu e perturbou o esposo, o qual, porém, foi logo
tranquilizado por um mensageiro do céu: «Não receies levar contigo Maria, tua
esposa, pois ela concebeu do Espírito Santo» (1,20).
c)
Ao lado destes dois testemunhos de que Maria foi fecundada de modo
sobrenatural, há outro do qual se depreende que deu à luz sem perder a sua
integridade virginal. S. Lucas, com efeito, atesta que o parto de Maria foi
isento dos incômodos da geração natural, pois foi a própria mãe de Jesus quem,
imediatamente após haver dado à luz, prestou a seu filhinho os primeiros
cuidados de que necessitava: «Gerou seu filho primogênito, envolveu-O em panos e
reclinou-O numa manjedoura» (2,7). — É nestes termos sóbrios que o Evangelista
refere a virgindade de Maria no parto. Cf. «Pergunte e Responderemos» 6/1958,
qu. 7.
d)
A Escritura e a Tradição ensinam outrossim que Maria se conservou virgem por
todo o resto da vida. Veja-se a este respeito o que está dito sobre os «irmãos
de Jesus» em «Pergunte e Responderemos» 3/1957, qu. 13.
Hoje
em dia a crítica reconhece que os Evangelhos de Mt, Mc e Lc foram redigidos
poucos decênios após a Ascensão (por volta de 50/63) na base de fontes, orais e
escritas, anteriores. Donde se deduz que a crença no nascimento milagroso de
Cristo foi desde a primeira geração de cristãos professada na Igreja; é, pois,
antiquíssima (vão seria dizer que as secções concernentes à virgindade de Maria
foram tardiamente interpoladas no texto dos Evangelhos, pois em absoluto não há
indicio disto na tradição dos manuscritos).
Sendo
assim, pergunta-se: a fé no nascimento milagroso de Jesus corresponderá à
autêntica realidade histórica ou será mera expressão da fantasia dos primeiros
cristãos, inspirada por antigos mitos pagãos?
2. As
tentativas de explicação por influências não cristãs
A
partir do século passado, autores liberais mais e mais têm chamado a atenção
para o fato de que «o mito da Virgem Mãe» não é raro nas crenças religiosas e
na mística da antiguidade. Assim dizia-se que Perseu, o herói grego, nasceu da
virgem Danaé, depois que Júpiter, sob a forma de uma chuva de ouro, a quis
fecundar. Referia-se que os filósofos Pitágoras, Platão, os Imperadores
Alexandre Magno e Augusto eram filhos dos deuses, concebidos e gerados por via
milagrosa. Na base destas observações, perguntam os críticos se a crença no
nascimento virginal de Cristo não vem a ser senão a forma judaico-cristã do antigo
mito.»
Em
resposta, observar-se-á quanto segue:
2.1)
É relativamente fácil estabelecer paralelos entre certas realidades históricas,
de um lado, e mitos ou lendas, de outro lado. Basta às vezes considerar
isoladamente um traço da realidade que se estuda, para se verificar que,
separado do conjunto, lembra um mito ou uma lenda inteira. Assim já houve quem
asseverasse que a vida do Imperador Napoleão (por muito próxima que esteja dos
nossos tempos) não é senão a expressão de um mito solar!...
No
terreno da crítica científica, para se poder afirmar dependência doutrinária,
não basta verificar semelhança de traços entre os episódios que se comparam,
mas é preciso averiguar se há ou não afinidade de mentalidade ou ideologia
entre duas narrativas (um mito e um suposto mito). Ora entre a mentalidade
pressuposta pela fé no nascimento virginal de Cristo e a mentalidade que
inspira os mitos ou as lendas aparentemente congêneres da Ásia ou do Império
greco-romano, verifica-se que não somente não há convergência, mas existe mesmo
incompatibilidade radical.
2.2)
Com efeito; duas das características que mais chamam a atenção nas narrativas
evangélicas são:
a)
a parcimônia de pormenores e
b)
o elevado nível moral em que versam.
A
conceição e o nascimento virginal são expressos em termos breves, cheios de
reverência, quase com timidez por parte dos Evangelistas; não se mencionam
milagres que acompanhem o nascimento do Menino-Deus, ao passo que na quarta
Écloga de Virgílio, por exemplo, as circunstâncias que cercam o nascimento do
Menino maravilhoso são idealizadas em alto grau: a terra treme, a vegetação se
torna exuberante, as flores cercam o berço do recém-nascido; perecem animais e
vegetais venenosos; algo de semelhante se observa na história do nascimento de Alexandre
Magno. Ao contrário, a narrativa do Evangelho é toda subordinada a reais
circunstâncias históricas: José e Maria sobem a Belém para cumprir um decreto
de recenseamento de César Augusto; a viagem deve ter sido penosa; mas não
aparece anjo para facilitá-la nem para garantir um lugar côngruo para o casal
em um albergue; é paradoxalmente numa gruta ou manjedoura que se dá o
nascimento estupendo (como o Evangelista se importa pouco com a acentuação do
prodígio!); os anjos que entram em cena, dirigem-se aos pastores, mas silenciam
precisamente o parto virginal, e indicam como sinais distintivos do Salvador a
manjedoura e os respectivos panos; após o nascimento, a criança e sua mãe se
sujeitam às leis judaicas da circuncisão e da purificação. O divino, o transcendente
assim aparecem muito «encarnados» na realidade histórica, na humildade humana,
a ponto de se julgar difícil que os traços milagrosos de tais narrativas hajam
sido forjados à semelhança dos mitos antigos.
Observa-se
outrossim, na descrição evangélica, preocupação com pureza de costumes; não há
aí vestígio do amor erótico ou apaixonado que nos mitos move a Divindade em
demanda da virgem (em geral, pode-se dizer que o erotismo e a concupiscência
costumam inspirar as aventuras de que nos fala a literatura mitológica pagã).
Diz a lenda grega, por exemplo, que Alexandre Magno se gloriava de haver
nascido de sua mãe Olímpia fecundada por Júpiter; ao que Olímpia, tida
consequentemente como prevaricadora, respondia: «Alexandre não quer deixar de
me caluniar junto a Hera (a esposa de Júpiter na mitologia)!», Alexandre, filho
de Júpiter, haveria sido filho da paixão desregrada do grande Deus... De outro
lado, é óbvio que não teria cabimento falar de amor sexual entre o Altíssimo e
a Virgem Maria no Evangelho; esta responde precisamente ao mensageiro do alto :
«Eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1,38).
2.3)
Ademais será preciso levar em conta que tanto os judeus como os cristãos faziam
questão de guardar puras as suas crenças, preservando-as de qualquer
contaminação paganizante. É demasiado conhecida a mentalidade fechada dos
judeus da Palestina para que nela aqui insistamos. Quanto aos cristãos,
verifica-se que durante três séculos foram perseguidos a título de «inimigos do
gênero humano», «réus de lesa-pátria e lesa-majestade», justamente porque não
queriam tomar parte nas instituições, domésticas ou públicas, que tivessem o
mínimo sabor de paganismo; incompatibilizavam-se com os próximos familiares e
com as autoridades do governo justamente para afirmar absoluto repúdio da
mentalidade politeísta (Tertuliano narra, por exemplo, em 211 o caso do soldado
cristão que, tendo vencido uma competição, rejeitou trazer a respectiva coroa
de louros na cabeça, porque era tida como símbolo religioso pagão; cf. «De
corona militis»). Sendo assim, não se entenderia que os discípulos de Cristo,
já na sua primeira geração, tenham aceito dos pagãos um mito: o mito da
«Virgem-Mãe». Donde se conclui que, se professaram a crença no nascimento virginal
de Jesus, esta não pode ter sido importada como elemento heterogêneo, mas deve
ter pertencido, desde o início do Cristianismo, ao patrimônio da fé revelada.
3. A
harmonia das Escrituras Sagradas
O
bom senso leva finalmente a concluir que mais absurdo é recorrer a alguma das
explicações racionalistas para explicar o pretenso «mito» do nascimento
virginal de Jesus do que aceitar simplesmente a realidade sobrenatural que um
tal nascimento implica.
Este
resultado é robustecido por um novo dado de exegese bíblica. A Escritura
Sagrada, desde as suas páginas mais antigas, parece preparar a idéia da
natividade maravilhosa do Messias, fazendo que esta apareça ao leitor moderno
como genuíno fruto do depósito religioso judaico-cristão. Sim; o texto bíblico
refere como alguns dos homens de Deus foram dados ao mundo em circunstâncias
que excediam todas as expectativas humanas, prefigurando assim a vinda virginal
de Cristo.
1) Isaque, um dos remotos antepassados
de Jesus, nasceu de mãe estéril, à qual Deus quis dar prole maravilhosamente
abençoada (cf. Gên 21,1-8).
2) Sansão, um dos «salvadores» (Juízes)
antigos do povo de Deus, nasceu de Manué e sua mulher infecunda, aos quais
Deus, por meio de um anjo, quis anunciar a próxima conceição (cf. Jz 13,1-25).
3) Samuel, outro dos grandes chefes de
Israel, foi igualmente fruto de ventre estéril. Ana, ao receber tal prole,
reconheceu num cântico (que é o arquétipo do de Maria, em Lc 1,46-55) a
intervenção soberana de Deus, prenúncio da restauração messiânica (cf. 1 Sam
1,1-2,10).
4) No fim da história antiga, nasceu
João Batista, preconizado pelo arcanjo Gabriel a seu pai Zacarias, que a
princípio não quis crer na possibilidade do portento (cf. Lc 1,5-25).
5) É a todos esses casos que se sobrepõe
a natividade do Messias; anunciado a Maria pelo mesmo arcanjo, foi
virginalmente concebido e gerado (cf. Lc 1,26-38; 2,1-7). Tão estupendo
nascimento vinha bem credenciado pelos episódios semelhantes que, segundo
harmoniosa disposição da Providência, o haviam precedido.
São,
por conseguinte, esses quadros paralelos do Antigo Testamento, sujeitos a um
plano de Deus sábio e retilíneo, que devem ser evocados para ilustrar o sentido
do parto virginal de Maria. Poder-se-á contudo reconhecer que a Providência
Divina, permitindo a formulação de certos mitos entre os pagãos, tenha,
intencionado suscitar no mundo politeísta o anelo de um Personagem
extraordinário, assinalado como tal desde o seu nascimento; por tais fábulas
exprimia-se infantilmente um prenúncio do Cristo Jesus, prenúncio que preparava
os povos a receber finalmente a mensagem do Evangelho (haja vista
principalmente a quarta Écloga de Virgílio, redigida por cerca de 41/40 a.C.).
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