quarta-feira, 15 de outubro de 2014

V Centenário Teresiano

SANTA TERESA DE JESUS NUM CURSO DE TEOLOGIA ESPIRITUAL

Frei Jesus Castellano Cervera, OCD
Capitulo I
Dedicamos uma breve introdução à figura de Santa Teresa de Jesus, enquadrada no contexto de um curso de teologia espiritual.

Para compreender a sua figura é preciso lembrar que Teresa de Jesus é:
    - uma autora que pertence a história da espiritualidade,
    - uma mística que testemunha o mistério do Deus vivo,
    - uma mestra de vida espiritual cuja doutrina permanece um marco referencial em alguns temas fundamentais da vida cristã como a oração, a experiência mística, o dinamismo da santidade cristã, o cristocentrismo, o serviço eclesial.

 Uma melhor compreensão da sua figura deve acontecer claramente a partir da teologia dos santos e da teologia dos carismas. Os Santos de fato com sua santidade e doutrina constituem uma fonte privilegiada da fé e da vida da Igreja. Nos seus carismas exprime-se um particular desígnio do Espírito, que em cada época enriquece a Igreja com os seus dons para o bem do Povo de Deus. Deve colher-se em Teresa a relação entre santidade e teologia, isto é, entre o vivido e a reflexão doutrinal, conforme a intuição de H. U. Von Balthasar, como se dirá mais adiante, e reconhecer o sentido carismático, dom para a Igreja, da sua figura e do seu ensinamento; um carisma reconhecido pela Igreja com a proclamação feita pelo Papa VI em 27 de setembro de 1970, como primeira mulher Doutora da Igreja.

 É, portanto o seu testemunho em favor da fé, da doutrina evangélica, da verdade e da santidade da Igreja, que constitui o segredo da doutrina e do magistério teresiano e portanto do seu carisma eclesial. 

1. Três figuras iconográficas para conhecer Teresa

Procuremos entrar progressivamente no conhecimento desta autora através da sua iconografia característica que a apresenta em três tipos iconográficos mais conhecidos e correspondentes à verdade das coisas, mas também à avaliação da sua figura e da sua doutrina.

Uma santa mística.
Teresa de Jesus é considerada uma santa mística, como aparece na imagem da “transverberação”, a graça estática que Teresa narra no capítulo 29 da Vida. João Lourenço Bernini esculpiu esta imagem em branco mármore de Carrara, em ‘647, e fez dessa imagem uma obra prima do barroco. O artista julgava-a, entre as muitas imagens estáticas por ele esculpidas, a ‘menos pior’. É a imagem que se encontra na Capela Cornaro da Igreja de Santa Maria da Vitória em Roma. Trata-se da imagem preferida pelo mundo barroco e pela interpretação barroca da espiritualidade teresiana: atenção ao maravilhoso, à fenomenologia mística, à irrupção do divino; com uma acentuação do proprium da experiência mística teresiana, do mais vistoso, apesar de no caso da transverberação, não se tratar da experiência mística mais importante da Santa. São superiores a graça do matrimônio espiritual e as visões trinitárias.

Uma Santa escritora.
Assim é proposta na figura da mestra espiritual, na imagem de Filipe della Valle na Basílica Vaticana, de 1754. A santa aparece como escritora com pena na mão e o livro aberto. Aos seus pés uma inscrição em latim que inicia coma as palavras “Spirit Mater”. Uma leitura errada dessas palavras difundiu o título dado à Santa de ‘Mãe dos espirituais’. Na realidade o título se refere a Teresa em quanto ‘Mãe espiritual” da nova reforma dos Carmelitas Descalços. Assim aparece também em outros tipos iconográficos, sentada escrevendo ou em pé, com livro e pena. Uma figura clássica e bonita, frequentemente adornada com a pomba do Espírito Santo, sugerindo a ideia da inspiração dos seus escritos, considerados ela Igreja “celestes”, carismáticos, guiados pelo Espírito Santo, desde o momento da sua beatificação e canonização. 

Uma santa “andarilha”.
Teresa foi definida a Santa Andarilha, viajora, fundadora. Assim foi esculpida na majestosa imagem de bronze de E. Cruz Solís, colocada diante dos muros do mosteiro da Encarnação de Ávila em 1962, com o cajado na mão e a bolsa nos ombros; uma figura que exprime também o serviço eclesial, na típica imagem de Teresa mulher em marcha, uma figura por nós preferida porque além do realismo da experiência apostólica e do serviço, eclesial torna evidente o sentido da mística cristã, destinada e aberta ao apostolado.

A história tem as suas preferências e diferenças a respeito desses tipos iconográficos. Mas no conjunto existe uma forte unidade na descrição da personalidade de Teresa, entre a experiência mística da imagem do Bernini, a doutrina espiritual (reflexão-pedagogia), que se inspira obviamente na experiência mística, e o serviço eclesial que é juntamente o seu testemunho-doutrina para a Igreja e que nasce também da experiência: uma espiritualidade apostólica ou uma mística apostólica. Santa Teresa de fato exalta o valor apostólico e eclesial da oração mas também o valor santificante do apostolado.

2. Uma figura polifacética

Em síntese, podemos destacar a personalidade de Santa Teresa com algumas claras notas:
- é uma mulher (com uma pitada de feminista para os seus tempos);
- é uma escritora letrada e espiritual, bem colocada e reconhecida na literatura espiritual e na literatura do século de ouro da Espanha, uma clássica na linguagem castelhana;
- é uma mestra-fundadora, na Igreja e na família carmelitana;
- é uma cristã que viveu até o fim a vocação batismal;
- é uma mística, testemunha do mistério cristão; este é o seu carisma e função na Igreja.

Une dois extremos: o realismo e o humanismo, o forte e ousado testemunho da espiritualidade, até os píncaros da mística. De fato é conhecida entre o povo de Deus quer por seu caráter humaníssimo, quer também pela sua alta experiência das realidades de Deus.    

3. Teresa no seu contexto histórico e eclesial 

A. Contexto histórico

Todo o santo deve ser visto e compreendido no seu contexto histórico e eclesial. A sua colocação histórico-eclesial e cultural é essencial para compreender os seus valores e os seus limites, para colher o sentido da sua mensagem, se todo o santo é um mensageiro de Deus e é uma palavra dita ao mundo, um fragmento do Evangelho de Cristo, a ser reordenado também no mosaico da santidade na histórica da Igreja.

A vida de Teresa desenvolve-se entre 1515 e 1582, o século de ouro da Espanha, com as suas conquistas no exterior, guerras, esplendor literário, reforma religiosa na qual intervêm o Papa e o Rei com notáveis conflitos jurisdicionais.

É uma mulher, escritora e letrada, plenamente inserida na história eclesial e civil, embora seja monja, que sofre os valores e as sombras deste período, mesmo que reagindo contra esta situação em muitos aspectos: a nível social. nos temas do feminismo, nas críticas às violências da guerra; também no campo religioso-espiritual reage contra a mentalidade da época em temas de vida e doutrina cristãs, como a oração, o valor da humanidade de Cristo.

Mantém um estrito relacionamento com os teólogos e espirituais do seu tempo, principalmente com os de Salamanca, Valladolid e Alcalá, que representam o renascimento teológico da Espanha. Depende das tradições espirituais do Carmelo e se insere na família Carmelitana com a sua personalidade, as suas obras e a sua espiritualidade.

Vive e transcorre a sua vida preferentemente na sua Ávila e na sua Castela, com alguns lances na Andaluzia. É uma santa tipicamente castelhana, por seu caráter sincero e nobre. Nas suas fundações chega até Burgos rumo ao norte, até Sevilha rumo ao sul.

Mas os horizontes da sua existência se alargam a nível geográfico, histórico e eclesial para as realidades do seu tempo e a círculos concêntricos sobre a situação da sua época.

* Vive a realidade da Europa, dividida pelo protestantismo e lacerada pelas guerras de religião na França principalmente, mas também na Alemanha e na Inglaterra. Desta abertura testemunha também o início do Caminho de perfeição (capítulos 1 e 3), onde Teresa exprime o seu profundo sentido eclesial.

* Tem consciência de um território que se chama terra de mouros, e descobre o vasto mundo do Islão que para ela é a África, com todas as conotações que este tem na consciência da Espanha de 1500. A recente vitória dos Reis católicos e a conquista de Granada, mas também as novas guerras no norte da África quando Teresa é uma criança despertam a sua consciência e o desejo de martírio, como aparece no início da sua vida. No fim, África é o seu sonho missionário para onde enviará os primeiros Carmelitas missionários.

* Participa claramente da nova abertura dos horizontes da Espanha com a descoberta da América. Muitos de seus irmãos e parentes embarcaram-se como “conquistadores”. Vários irmãos seus abandonaram a casa à procura de melhor sorte. América, do México ao Peru e à Argentina, está cheia de pessoas que se consideram descendentes da família de Teresa ou tem possa de imagens que remontam aos irmãos da Santas. Da América chega o primeiro dinheiro para o mosteiro de São José. Posteriormente a Santa terá uma experiência forte e traumatizante desta realidade. Em 1566 frei Alonso Maldonado OFM, missionário na Nova Espanha, pertencente à corrente dos missionários franciscanos, defensores dos índios como o dominicano frei Bartolomeu de las Casas, chega ao mosteiro de São José de Ávila. A. Maldonado, homem ousado e loquaz, visita a Madre Teresa. E oferece uma visão que Teresa não conhecia da realidade dos conquistadores: uma mistura de evangelização e colonização selvagem. Aquela conversa suscita na Madre uma profunda experiência eclesial, densa de dor e de sentido apostólico. (Fundações 1).

Encontramos traços dessa impressão nas suas cartas, especialmente ao seu irmão Lourenço que vive em Quito; elas demonstram a sua preocupação com as realidades da América e os abusos dos conquistadores.

* Não é alheia a sua experiência outra faixa social e religiosa bem presente na Espanha de outrora: os hebreus convertidos. Muitos não querendo deixar a Espanha se converteram à força; chamam-se novos cristãos. O seu avô João Sanchez de Toledo, mercador de roupas, é um deles. Trata-se de uma descoberta da genealogia de Teresa, que no início teve muita dificuldade para ser aceita, que manteve em suspensão muitos teresianistas, mas que agora parece irrefutável, especialmente após os últimos estudos e a edição da documentação relativa ao “pleito de fidalguia”. Teresa era de ascendência hebraica, por parte de pai; o nono paterno, acusado de ter sido condenado pela Inquisição e de ter vestido o ‘sambenito’ amarelo nas procissões, como penitência por ter recaído nas práticas judaizantes. A Santa, portanto, pertence a uma classe social e religiosa marginalizada. Mas essa situação social e religiosa foi logo camuflada com a compra por parte do avô de títulos nobiliários para os seus filhos.

Não parece claro como tenha sido percebida por Teresa esta sua condição social e religiosa, mas provavelmente incide em algumas experiências e doutrinas. Não é portanto uma nobre de antigo casado castelhano. Como por século se ufanava a hagiografia teresiana, até fazê-la tornar-se a “Santa da raça” espanhola, mas uma Teresa Sanchez, com um sobrenome bastante plebeu, descendente de uma família hebreia da parte do avô, neta de um mercante de tecidos de Toledo. 

B. Contexto eclesial

 A colocação eclesial de Teresa pode ser realizada com algumas pinceladas.

* É uma santa da Igreja Tridentina e da Reforma católica. Possui nítida consciência dos fermentos de vida cristã na Castela, dos círculos heterodoxos dos alumbrados, da repressão da Inquisição contra livros, grupos, escritores, num momento em que se teme pela infiltração do protestantismo na Espanha. Ela conhece bem a situação, os autos da fé nos quais são levados à morte hereges e maometanos; sofre por essas expressões extremas de crueldade que terminam na execução sobre o patíbulo. Ela mesma terá de enfrentar o tribunal da Inquisição, embora tenha saído indene.

* Tem plena consciência de viver numa Igreja que celebra um Concílio de Reforma, o Concílio de Trento. Participa ativamente do movimento da Reforma católica. Conhece os grandes santos, teólogos, bispos do seu tempo. Ela mesma é fruto desta comunhão com a Igreja do seu tempo e os melhores protagonistas da história religiosa da Espanha. Na capela da Santa em Ávila, edificada sobre o lugar em que ela nasceu, é descrita a sua comunhão espiritual com as Ordens daquele tempo e o influxo que exercitado por elas.  Em quatro quadros são apresentados as quatro Ordens que deram os melhores frutos do seu carisma a Teresa: o espírito de oração (carmelitas), o espírito de pobreza (franciscanos), o espírito da sabedoria e da verdade (dominicanos, o espírito da religião e o senso da Igreja (jesuítas). Teresa, mulher de pleno senso eclesial, olha para Roma. Escreve cartas ao Papa São Pio V. Obtém a aprovação das suas fundações.

* Mas a sua experiência da Igreja é mais vasta e mais profunda. É a experiência interior da situação da Igreja, percebida quase misticamente, especialmente nos labores da sua laceração pelo luteranismo. Desta forte experiência eclesial brota a sua contribuição à renovação espiritual da Igreja: a vida contemplativa como renovação interior para servir a Igreja: a vida contemplativa como renovação interior para servir a Igreja com a oração e a santidade. É característica teresiana o ‘sentire Ecclesiam’, algo mais, ou diferente do sentir com a Igreja, que também não está ausente dos seus livros que acabam sempre com uma profissão de fé na Igreja Católica.

* É testemunha na sua experiência mística das grandes verdades doutrinais, negadas por Lutero, afirmadas por Trento: a realidade do pecado mas também a verdade da justificação como verdadeiro e próprio dom da graça, comunhão pessoal com Deus, transformação da pessoa e enfim a experiência de ser verdadeiramente salva, com a afirmação do papel absolutamente necessário da salvação em Cristo; afirma o valor dos sacramentos, dos sacramentais, das imagens. Teresa é uma mística carismática que demonstra com o seu apego à Igrejas o sentido vivo da tradição, à diferença de Lutero. Neste sentido se coloca com uma providencial graça. Um verdadeiro carisma, para Igreja do seu tempo. 

4. Santa Teresa no âmbito da história da espiritualidade

Teresa coloca-se no âmbito da espiritualidade moderna pós-tridentina e na escola espiritual espanhola. Após a ‘devotio moderna’, inserida na renovação espiritual e mística do seu tempo. Forma um cacho de santidade eclesial ao lado de outras figuras: Inácio, João da Cruz, Pedro de Alcântara, João de Ávila... Está portanto marcada na sua doutrina como a escola espanhola, pelo prevalecer da interioridade como se verifica na espiritualidade da oração; mas permanece aberta a tantos outros valores e experiências espirituais do seu tempo, nas quais intervém também de modo polêmico: oração mental, humanidade de Cristo, contemplação, papel da mulher, humanismo erasmiano, diálogo entre teólogos e espirituais.  

Faz-se mister perguntar-se sobre que é o lugar da mística teresiana na história e na atualidade.

Nesta apresentação podemos oferecer esta síntese histórica através de três palavras chaves que colocam em luz a situação progressiva da doutrina teresiana e o seu valor teológico, especialmente no século XX: apoteose, crise, despertar. Uma apresentação amplamente documentada por ocasião da preparação do Doutorado teresiano, especialmente com o voto da Pontifícia Faculdade Teológica do Teresiano. 

A. Apoteose

A rápida difusão das obras da santa, os louvores do primeiro editor Frei Luís de León e os reconhecimentos dados à Santa por ocasião da sua canonização em 1622, abriram caminho a uma marcha triunfal dos escritos teresianos na Igreja a partir da sua morte e da sua glorificação. Mas tudo foi mais difícil do que se pensa. Logo que as obras teresianas foram conhecidas, pesadas acusas teológicas foram enviadas à Santa Inquisição espanhola pedindo a condenação delas pelas particulares singularidades na doutrina mística. 

Posteriormente a sua doutrina marcou profundamente a história da espiritualidade na Espanha e alhures (Itália e França): escola francesa, Francisco de Salles, Afonso Maria de Liguori etc.

Teresa impôs-se claramente por si mesma a partir do século XVII em duas direções. De um lado através do influxo externo das suas obras em áreas culturais diversas e nas novas escolas de espiritualidade, principalmente na Itália, França e Flandres. Por outro através da formação de uma escola mística carmelitano-teresiana com eminentes teólogos e comentadores que se inspiraram continuamente nos livros de Teresa. Assim o influxo foi decisivo na terminologia mística, nas descrições fenomênicas, na escala das graças místicas pode dizer-se que, ao lado de João da Cruz, Teresa de Jesus se impôs universalmente como autoridade na doutrina mística; ponto referencial para a avaliação de outras experiências místicas no campo da santidade foram os seus livros; a eles atingiram abundantemente os cultores da teologia mística na sistematização desta ciência, até determinar a natureza da teologia a partir não só dos princípios mas também da própria experiência, como Teresa fizera no Castelo Interior .
Nesta apoteose teresiana que se estende do século XVII até as primeiras décadas do XX século, se devem notar alguns inconvenientes.
Primeiro: prevaleceu a atenção barroca pelas coisas extraordinárias, e extrapolação dos fenômenos místicos de seu contexto continuístico, a forma literária inflada com que frequentemente foi apresentada a doutrina de Teresa.
Segundo: os grandes comentadores da mística teresiana deram livre curso à fantasia ao procurarem fazer uma apresentação sistemático-escolástica com a pretensão de fazer quadrar perfeitamente as descrições teresianas com os raciocínios da teologia escolástica de Santo Tomás de Aquino e dos seus discípulos.

É o caso de dizer, emprestando a frase de von Balthasar, que a leve borboleta teve de suportar a pesada couraça de chumbo. As límpidas, diretas e imediatas descrições teresianas sofreram a deformação de um escolasticismo que em tempos de pobreza bíblica, patrística, litúrgica não apreciaram os valores substanciais postos em luz por Teresa. 

B. A crise

Teresa de Jesus chega ao século XX com toda a sua autoridade no campo da mística, quando existem fermentos válidos no interior desta ciência, se trabalha numa proposta válida da teologia ascética e mística e torna-se preponderante o discurso sobre o problema místico com discussões bem animadas.

Encontramo-nos diante da mudança de um renovamento muito mais drástico em campo bíblico, litúrgico, teológico, patrístico. O retorno às fontes para arrastar polemicamente toda a herança da idade média e especialmente o período pós-tridentino com os seus autores, as metodologias escolásticas, até com seus autores preferidos, as escolas de espiritualidade que marcaram os séculos posteriores.

As primeiras críticas com A. Stolz sobre a teologia da mística, tornar-se-ão em seguida lugar comum: a mística teresiana é descritiva, psicológica; sem conteúdos teológicos e inspiração bíblica; permanece bem distante das grandes linhas da mística bíblica e das fontes litúrgicas. A voz influente de von Balthasar encarece a dose de críticas na mesma linha. Biblistas e liturgistas repetem acriticamente as mesmas lamúrias, como se tivessem prazer doentio em atingir um gigante ferido. Uma intervenção pouco acertada de Jacques e Raïssa Maritain a propósito do tema “liturgia e contemplação” parece colocar Teresa de Jesus no grupo dos inimigos da liturgia. Para a grande maioria dos teólogos renovadores parece que a sua presença na espiritualidade e na mística deva ser bastante redimensionada.

Em capo teresiano, porém, não se oferecem respostas válidas. Os estudos sobre Teresa são ainda pouco científicos. G. Etchegoyen tinha utilizado um novo método de análise com o seu livro sobre as fontes teresianas. Faltam estudos sérios a nível teológico diante de certa abundância de estudos literários, psicológicos e doutrinais. O confronto com as objeções e a sensibilidade da nova época da Igreja falta completamente entre os teresianistas, com alguma rara exceção. 

C. O despertar

No ano de 1962, um estudo do frei Tomás Alvares marca o início de uma nova época no campo dos estudos teresianos. Teresa de Jesus é apresentada como mística, como contemplativa na Igreja. Com uma graça específica e uma mensagem própria, situada na sua época mas com perene validade. É testemunha da vida sobrenatural, do mistério de Deus revelado em Cristo. O estudo traça um amplo e documentado balanço dos “conteúdos da experiência mística teresiana”. Pela primeira vez, é colocado o acento sobre os conteúdos da teologia, sobre os mistérios revelados que foram concedidos a Teresa como objeto de contemplação e de experiência. Será o primeiro de muitos outros trabalhos que até os nossos dias procuraram estudar em profundidade, pornograficamente, estes grandes sujeitos da revelação cristã, vividos por Teresa a nível místico: Deus, Cristo, a Trindade, o Igreja, o homem, o pecado.

Já T. Álvarez tinha indicado no seu estudo o valor primário da Palavra de Deus na experiência mística teresiana, com confronto de verdade mas também como objeto de contemplação e de penetração mística. Encontrar-se-á outro veio característico: o estudo das fontes, com especial atenção à Bíblia e à Liturgia.

O Concílio Vaticano II, entre outras coisas, confirma a função da experiência mística no enriquecimento e aprofundamento do depósito da fé (Dei Verbum 8). Com a valorização dos carismas na Igreja, são também postos em realce os valores dos místicos que são testemunhas carismáticas, para a Igreja, do vivido cristão. Retoma cota o tema da experiência espiritual e portanto da mística teresiana.

Dois eventos eclesiais das últimas décadas do século passado deram início a plena recuperação dos valores místicos de Teresa. Em 1970, num dos momentos mais baixos da cotação teológica teresiana, em plena contestação pós-conciliar, Teresa de Ávila é proclamada Doutor da Igreja e é confirmada a sua autoridade em matéria mística. Os estudos teológicos que prepararam a declaração de Paulo VI acertaram em cheio a dimensão teológica da experiência teresiana. Em 1982 celebrou-se o IV Centenário da morte da Santa. O clima eclesial era diverso; estamos em tempo de escuta das testemunhas mais do que dos que se dão ares de mestres. A voz de Teresa é novamente amplamente escutada.

Entretanto, desenvolveram-se na Igreja tendências mais favoráveis ao dado da experiência mística. Está-se à procura de uma teologia vital, narrativa, da experiência; fala-se de uma teodramática do encontro entre Deus e o homem; procura-se uma teologia simbólica que abra canais às sucessivas conceitualizações. Um novo interesse religioso eleva as cotações da mística a nível comparativo nas diversas religiões e no campo específico do misticismo cristão.

Nesse contexto, a recuperação de valor da mística teresiana é evidente. Estamos diante da valorização de quatro dimensões convergentes que podem oferecer uma visão completa dos misticismos teresiano em si mesmo: 
a) a linha dos conteúdos mistéricos retamente cristãos vividos pela Santa Teresa garante a ortodoxia e a densidade teológica da sua mística;
b) o estudo das fontes objetivas do misticismo na Bíblia e na liturgia insere Teresa no objetivismo da revelação e da doação sacramental do mistério cristão;
c) a análise da experiência psicológica cristã e humana de Teresa repropõe a riqueza, a precisão, a força antecipadora de muitas pesquisas atuais no campo da psicologia religiosa ou não religiosa;
d) o sereno realismo com que Teresa reconduz a mística ao fato fundamental da transformação do homem, à habilitação para o serviço eclesial, à corajosa doação para o serviço dos outros, liberta a mística das suspeitas de introspecção subjetiva ou de perigosos subjetivismos; da mística surge o homem novo em Cristo, com uma síntese de valores de maturidade cristã e psicológica que resplandece no místico santo, na “divina-humanidade” que tem por modelo Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Ademais a mística teresiana é uma mística soteriológica, uma experiência e um testemunho de valor salvífico da mística enquanto redenção e salvação, transformação da pessoa humana a contato vivo com a graça de Cristo.  

Essas quatro linhas parecem-me essenciais para poder mover-se num estudo interdisciplinar que não seja redutivo e que leve a sério todos os dados da mística teresiana. No campo da psicologia da mística parece que se encontram os vazios bibliográficos mais vistosos entre os estudos teresianos.

Outro campo permanece aberto: o do confronto com as místicas de outras religiões. Existem pontos de convergência na linguagem e no simbolismo, em algumas metodologias e em certas ressonâncias psicológicas; mas o misticismo teresiano toda a carga original do misticismo cristão onde emerge a força da salvação como graça de Deus que confere o perdão e redime, salva e transforma. 

O confronto pode e deve ser reconduzido para dentro da igreja de hoje. Existem novos misticismos que merecem atenção, estudo e discernimento. Sem pretender esgotar tudo na mística teresiana, os livros teresianos permanecem valioso ponto de referência; não raramente os novos místicos e os novos misticismos se dirigem de bom grado aos escritos teresianos em busca de luz e de guia. Teresa indica, na complexidade da sua experiência, o discernimento de verdade e de vida que deve ser feito.

Pelo bem da verdade, o remetimento obrigatório é à Igreja e à teologia, sem medos. Para a vida, são frutos de santidade que garantem que estamos na presença de experiências nas quais age e se doa Deus em Cristo e no Espírito. As quatro dimensões da mística teresiana acima indicadas constituem uma válida metodologia para o exame ou ‘autoexame” das novas místicas cristãs. 

5.Quais os traços essenciais da sua mensagem espiritual?

Resumindo algumas características da mensagem espiritual teresiana podemos sintetizar alguns traços essenciais.

Interioridade. Atenção aos valores interiores da pessoa: vida interior, oração, profundo senso agostiniano da vida e da experiência. A capacidade da pessoa de conversar com Deus, a afirmação da realidade da graça como comunhão pessoal e transformante. A oração com a síntese da vida cristã. Conhecer a si mesmos e conhecer a Deus como movimento essencial do chamado “socratismo” teresiano.

Humanismo cristão. Sensibilidade por todos os valores da pessoa humana, do humanismo cristão, das realidades da criação, das virtudes humanas e evangélicas, sociais; valor teologal da pessoa humana, imagem e semelhança de Deus; apologia e valor da amizade, da comunhão espiritual; finalização da vida de oração e da experiência mística ao serviço apostólico. 

Misticismo. Teresa é testemunha do mistério, dos mistérios. Testemunha da irrupção sobrenatural de Deus na pessoa com a graça e com as graças. Todos os seus livros estão cheios de experiências místicas. Apresenta em suas obras a plenitude da vida em Cristo. Ilustra a junção com os grandes mistérios. Mística não oposta à ação, não em contradição com a ascese; de fato o horizonte teresiano não é meramente ascético; a ascese é antes de tudo coerência ética e teologal que exige virtudes sólidas, mas em definitiva disponibilidade para que Deus possa agir na pessoa. Mística não de mensagens sobrenaturais, mas da mensagem cristã. A fenomenologia mística testemunhada não é fim a si mesma: é em função da certificação da verdade experimentada e da vida ou da santidade que transforma e torna dinâmica a existência. É mística também na força convencedora da experiência fenomenológica para poder dar testemunho do que foi percebido e contemplado.

Unidade entre experiência e doutrina. A sua fonte primária é a experiência cristã, que procura re-expressar em doutrina assim como teve a inteligência, embora partindo de uma preparação doutrinal inadequada. Menos decisivos são os influxos dos outros autores, ou já se tornaram influxos personalizados. Mais determinante é a sua experiência vivida. Não oferece uma teologia dedutiva, mas um testemunho indutivo. É original e pessoal na sua exposição, nos seus recursos. Oferece-nos um testemunho do mistério mais do que uma exposição do mistério. Mesmo que nisso seja ajudada pela grande capacidade de intuir o triplo momento da graça: precede o momento da experiência (experimentar), segue o momento da inteligência (compreender), e se tem finalmente a graça de poder dizer aos outros o que se experimentou (comunicar) (Vida 17,5). Mas também neste caso trata-se de comunicar para fazer os outros entrarem com adequada pedagogia na mesma experiência de Deus.

É portanto notável o sentido característico da “teologia mística e mistagógica teresiana” que supõe a experiência, como fonte primária, a doutrina ou reflexão doutrinal como ponto de confrontação e referimento às verdades da fé, a pedagogia ou mistagogia que supõe um convite à experiência do mistério cristão através da oração como via total de amizade, comunicação, transformação. 

6. Senso deste magistério na Igreja

Teresa é uma mística. É o seu carisma. É testemunha de uma experiência cristã. Experiência examinada pelo discernimento da verdade e da vida.

A sua figura coloca-se no centro do grande tema da relação experiência e teologia, e da relação entre teologia e santidade, expressa com lucidez por H. U. Von Balthasar. Deve ser considerada como testemunha mais do que como teórica da espiritualidade, mesmo não lhe faltando ousadia ao escrever um “tratado”: o Castelo interior.  

À luz do Vaticano II o seu carisma emerge com uma luz própria na linha de alguns ensinamentos do Concílio:
 - LG 4 sobre a ação do Espírito através dos carismas;
 - LG 12 sobre os carismas na Igreja ao seu serviço e para o seu bem;
 - DV 8, sobre o aprofundamento da revelação à luz da experiência mística.

Mas se pode reportar o seu ensinamento à GS 19, sobre a vocação da pessoa humana à oração e à comunhão com Deus.

Essa é a função de Teresa no seu tempo e no nosso: testemunhar a partir da sua experiência que a vida é uma maravilhosa história de salvação onde Deus age e pode conduzir do limite do pecado até os píncaros da santidade e da comunhão trinitária.

Neste sentido se pode ter em consideração a tese do Frei Tomás Álvarez (No segredo do Castelo. Teresa di Ávila, pág. 151).

Coincidem de fato:
 * As realidades experimentadas por Teresa, em sintonia com as verdades da Igreja Católica
 * as verdades negadas por Lutero,
 * as verdades afirmadas por Trento.

No nosso tempo. O testemunho teresiano resta válido. Além das perenes mensagens de vida cristã e de doutrina espiritual, num tempo em que se escuta de bom grado as testemunhas mais do que os mestres, Teresa é testemunha de vida e mestra de experiência.

Em síntese: podemos colher em Santa Teresa hoje estes traços:

* Oferece-nos um ensinamento sobre a vocação cristã em objetiva comunhão com Deus e o seu mistério, e em dinamismos de interioridade, de transformação da pessoa e da sua ação apostólica.

* Apresenta o seu serviço magisterial-doutoral em função da igreja do seu tempo mas de perene atualidade: o mistério de salvação, a história da salvação que cada um deve viver; testemunho mais forte do ensinamento dos teólogos, embora não em contradição com a doutrina teológica, melhor testemunhando a sua verdade a partir do conhecimento experimental e místico. Já no seu tempo Frei Garcia de Toledo OP dizia que Teresa podia ensinar a oração como outros ensinam nas nossas faculdades; podia ser mestra de teologia em Salamanca(!).

* O seu ensinamento, a partir da experiência e voltado para a experiência, fazendo apelo sobre o desejo de reativá-la no leitor; escreve para contagiar, ‘para engulosinar”, para encorajar, a partir da sua própria vida. 

Concluindo:

Como definir os traços salientes do misticismo de Santa Teresa de Jesus, Doutora da Igreja? Emprestamos de um teresianista algumas notas características.

É uma mística histórica e narrativa que parte da experiência de salvação vivida, que se enlaça com a história universal da salvação e a confirma.

É uma mística rica e complexa com dimensões de altura, largura e profundidade no seu processo linear. Não podemos reduzi-la sem empobrecer o mistério que é rico e complexo e sem mutilar a ressonância humana que também é complexa e rica.

É uma mística personalística ou interpessoal, onde emergem além dos fenômenos, o Deus pessoal que se revela em Cristo e se doa no Espírito Santo e o homem na sua personalidade que é recriada e realizada na comunhão.

É uma mística mistagógica, mística do mistério (mística mistérica), que anuncia e provoca esta possibilidade de viver o mistério cristão; uma mística que faz apostolado da mística. Teresa faz isso em primeira pessoa com cada leitor seu que esteja atento às intenções da autora que visa “engulosá-lo”, a torná-lo participante da roda dos amigos de Deus.

É uma mística com mensagem, mais do que mensagens; a mensagem é a do próprio Deus e da história da salvação; o chamado à “koinonia”, a redescoberta que Deus mora no homem, que nos quer à sua imagem e semelhança. Por isso a mística teresiana é experiência das grandes realidades da economia cristã: da Trindade à humanidade, dos sacramentos à Igreja. Ela tem como mensagem central a proclamação de Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, mediador da salvação, modelo da transformação mística, mestre da verdade.

No interior da mística, Teresa se coloca claramente nesta tripla categoria:
- É testemunha, porque nela tudo parte da experiência vivida.
- É mestra, porque procurou oferecer da sua experiência uma válida apresentação doutrinal.
- É mistagoga, porque a sua experiência e a sua doutrina tendem à pedagogia, ou mistagogia: introduzir os cristãos nas insondáveis riquezas do mistério de Cristo. 

Bibliografia
Para uma visão sintética dos temas tratados aqui confere:  
 T. ALVAREZ , Santa Teresa y la Iglesia , Burgos, Monte Carmelo 1980
  J. CASTELLANO , Espiritualidade teresiana , em AA.VV. Introducción a la lectura de Santa Teresa , 187- 201. 
 Id. Teresa di Gesù nel suo ambiente spirituale , em AA.VV. Teresa de Avila , Napoli 1982, 45-77.
 Id. Presencia de Santa Teresa de Jesús em la teología e en la espiritualidade actual. Balance e perspectivas , em “Teresianum” 33(1982) 181-232.
  T EGIDO , Ambiente histórico , em Introducción a la lectura .., 43-103. 
 Id. El linaje judeo-converso de Santa Teresa , Madrid EDE, 1986.   
 Sobre o doutorado teresiano e a sua atualidade:
 A. BALLESTRERO , Il magistero de Teresa di Gesù , dottore della chiesa, em “Rivista de Vita Spirituale” 49(1955) 667-682.
 J. CASTELLANO , Nel XXV anniversário del Dottorato di Santa Teresa. Memoria storica e attualità ecclesiale , Ibid. 683-704 
Id., “ Eminens doctrina”. Um requisito necessario para ser Doctor de la Iglesia , in Teresianum 46(1995) 3-21.

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