SANTA TERESA DE JESUS
NUM CURSO DE TEOLOGIA ESPIRITUAL
Frei Jesus Castellano Cervera, OCD
Capitulo
I
Dedicamos
uma breve introdução à figura de Santa Teresa de Jesus, enquadrada no contexto
de um curso de teologia espiritual.
Para
compreender a sua figura é preciso lembrar que Teresa de Jesus é:
- uma autora que pertence a história da
espiritualidade,
- uma mística que testemunha o mistério do
Deus vivo,
- uma mestra de vida espiritual cuja
doutrina permanece um marco referencial em alguns temas fundamentais da vida
cristã como a oração, a experiência mística, o dinamismo da santidade cristã, o
cristocentrismo, o serviço eclesial.
Uma melhor compreensão da sua figura deve
acontecer claramente a partir da teologia dos santos e da teologia dos
carismas. Os Santos de fato com sua santidade e doutrina constituem uma fonte
privilegiada da fé e da vida da Igreja. Nos seus carismas exprime-se um
particular desígnio do Espírito, que em cada época enriquece a Igreja com os
seus dons para o bem do Povo de Deus. Deve colher-se em Teresa a relação entre
santidade e teologia, isto é, entre o vivido e a reflexão doutrinal, conforme a
intuição de H. U. Von Balthasar, como se dirá mais adiante, e reconhecer o
sentido carismático, dom para a Igreja, da sua figura e do seu ensinamento; um
carisma reconhecido pela Igreja com a proclamação feita pelo Papa VI em 27 de
setembro de 1970, como primeira mulher Doutora da Igreja.
É, portanto o seu testemunho em favor da fé,
da doutrina evangélica, da verdade e da santidade da Igreja, que constitui o
segredo da doutrina e do magistério teresiano e portanto do seu carisma
eclesial.
1. Três figuras
iconográficas para conhecer Teresa
Procuremos
entrar progressivamente no conhecimento desta autora através da sua iconografia
característica que a apresenta em três tipos iconográficos mais conhecidos e
correspondentes à verdade das coisas, mas também à avaliação da sua figura e da
sua doutrina.
Uma
santa mística.
Teresa
de Jesus é considerada uma santa mística, como aparece na imagem da
“transverberação”, a graça estática que Teresa narra no capítulo 29 da Vida.
João Lourenço Bernini esculpiu esta imagem em branco mármore de Carrara, em
‘647, e fez dessa imagem uma obra prima do barroco. O artista julgava-a, entre
as muitas imagens estáticas por ele esculpidas, a ‘menos pior’. É a imagem que
se encontra na Capela Cornaro da Igreja de Santa Maria da Vitória em Roma.
Trata-se da imagem preferida pelo mundo barroco e pela interpretação barroca da
espiritualidade teresiana: atenção ao maravilhoso, à fenomenologia mística, à
irrupção do divino; com uma acentuação do proprium da experiência mística
teresiana, do mais vistoso, apesar de no caso da transverberação, não se tratar
da experiência mística mais importante da Santa. São superiores a graça do
matrimônio espiritual e as visões trinitárias.
Uma
Santa escritora.
Assim
é proposta na figura da mestra espiritual, na imagem de Filipe della Valle na
Basílica Vaticana, de 1754. A santa aparece como escritora com pena na mão e o
livro aberto. Aos seus pés uma inscrição em latim que inicia coma as palavras
“Spirit Mater”. Uma leitura errada dessas palavras difundiu o título dado à
Santa de ‘Mãe dos espirituais’. Na realidade o título se refere a Teresa em
quanto ‘Mãe espiritual” da nova reforma dos Carmelitas Descalços. Assim aparece
também em outros tipos iconográficos, sentada escrevendo ou em pé, com livro e
pena. Uma figura clássica e bonita, frequentemente adornada com a pomba do
Espírito Santo, sugerindo a ideia da inspiração dos seus escritos, considerados
ela Igreja “celestes”, carismáticos, guiados pelo Espírito Santo, desde o
momento da sua beatificação e canonização.
Uma
santa “andarilha”.
Teresa
foi definida a Santa Andarilha, viajora, fundadora. Assim foi esculpida na
majestosa imagem de bronze de E. Cruz Solís, colocada diante dos muros do
mosteiro da Encarnação de Ávila em 1962, com o cajado na mão e a bolsa nos
ombros; uma figura que exprime também o serviço eclesial, na típica imagem de
Teresa mulher em marcha, uma figura por nós preferida porque além do realismo
da experiência apostólica e do serviço, eclesial torna evidente o sentido da
mística cristã, destinada e aberta ao apostolado.
A história tem as suas preferências e
diferenças a respeito desses tipos iconográficos. Mas no conjunto existe uma
forte unidade na descrição da personalidade de Teresa, entre a experiência
mística da imagem do Bernini, a doutrina espiritual (reflexão-pedagogia), que
se inspira obviamente na experiência mística, e o serviço eclesial que é
juntamente o seu testemunho-doutrina para a Igreja e que nasce também da
experiência: uma espiritualidade apostólica ou uma mística apostólica. Santa
Teresa de fato exalta o valor apostólico e eclesial da oração mas também o
valor santificante do apostolado.
Como definir os traços salientes do misticismo de Santa Teresa de Jesus, Doutora da Igreja? Emprestamos de um teresianista algumas notas características.
2. Uma
figura polifacética
Em
síntese, podemos destacar a personalidade de Santa Teresa com algumas claras
notas:
-
é uma mulher (com uma pitada de feminista para os seus tempos);
-
é uma escritora letrada e espiritual, bem colocada e reconhecida na literatura
espiritual e na literatura do século de ouro da Espanha, uma clássica na
linguagem castelhana;
-
é uma mestra-fundadora, na Igreja e na família carmelitana;
-
é uma cristã que viveu até o fim a vocação batismal;
-
é uma mística, testemunha do mistério cristão; este é o seu carisma e função na
Igreja.
Une
dois extremos: o realismo e o humanismo, o forte e ousado testemunho da
espiritualidade, até os píncaros da mística. De fato é conhecida entre o povo
de Deus quer por seu caráter humaníssimo, quer também pela sua alta experiência
das realidades de Deus.
3.
Teresa no seu contexto histórico e eclesial
A.
Contexto histórico
Todo
o santo deve ser visto e compreendido no seu contexto histórico e eclesial. A
sua colocação histórico-eclesial e cultural é essencial para compreender os
seus valores e os seus limites, para colher o sentido da sua mensagem, se todo
o santo é um mensageiro de Deus e é uma palavra dita ao mundo, um fragmento do
Evangelho de Cristo, a ser reordenado também no mosaico da santidade na histórica
da Igreja.
A
vida de Teresa desenvolve-se entre 1515 e 1582, o século de ouro da Espanha,
com as suas conquistas no exterior, guerras, esplendor literário, reforma
religiosa na qual intervêm o Papa e o Rei com notáveis conflitos
jurisdicionais.
É
uma mulher, escritora e letrada, plenamente inserida na história eclesial e
civil, embora seja monja, que sofre os valores e as sombras deste período,
mesmo que reagindo contra esta situação em muitos aspectos: a nível social. nos
temas do feminismo, nas críticas às violências da guerra; também no campo
religioso-espiritual reage contra a mentalidade da época em temas de vida e
doutrina cristãs, como a oração, o valor da humanidade de Cristo.
Mantém
um estrito relacionamento com os teólogos e espirituais do seu tempo,
principalmente com os de Salamanca, Valladolid e Alcalá, que representam o
renascimento teológico da Espanha. Depende das tradições espirituais do Carmelo
e se insere na família Carmelitana com a sua personalidade, as suas obras e a
sua espiritualidade.
Vive
e transcorre a sua vida preferentemente na sua Ávila e na sua Castela, com
alguns lances na Andaluzia. É uma santa tipicamente castelhana, por seu caráter
sincero e nobre. Nas suas fundações chega até Burgos rumo ao norte, até Sevilha
rumo ao sul.
Mas
os horizontes da sua existência se alargam a nível geográfico, histórico e
eclesial para as realidades do seu tempo e a círculos concêntricos sobre a
situação da sua época.
*
Vive a realidade da Europa, dividida pelo protestantismo e lacerada pelas
guerras de religião na França principalmente, mas também na Alemanha e na
Inglaterra. Desta abertura testemunha também o início do Caminho de perfeição
(capítulos 1 e 3), onde Teresa exprime o seu profundo sentido eclesial.
*
Tem consciência de um território que se chama terra de mouros, e descobre o
vasto mundo do Islão que para ela é a África, com todas as conotações que este
tem na consciência da Espanha de 1500. A recente vitória dos Reis católicos e a
conquista de Granada, mas também as novas guerras no norte da África quando
Teresa é uma criança despertam a sua consciência e o desejo de martírio, como
aparece no início da sua vida. No fim, África é o seu sonho missionário para
onde enviará os primeiros Carmelitas missionários.
*
Participa claramente da nova abertura dos horizontes da Espanha com a
descoberta da América. Muitos de seus irmãos e parentes embarcaram-se como
“conquistadores”. Vários irmãos seus abandonaram a casa à procura de melhor
sorte. América, do México ao Peru e à Argentina, está cheia de pessoas que se
consideram descendentes da família de Teresa ou tem possa de imagens que
remontam aos irmãos da Santas. Da América chega o primeiro dinheiro para o
mosteiro de São José. Posteriormente a Santa terá uma experiência forte e
traumatizante desta realidade. Em 1566 frei Alonso Maldonado OFM, missionário
na Nova Espanha, pertencente à corrente dos missionários franciscanos,
defensores dos índios como o dominicano frei Bartolomeu de las Casas, chega ao
mosteiro de São José de Ávila. A. Maldonado, homem ousado e loquaz, visita a
Madre Teresa. E oferece uma visão que Teresa não conhecia da realidade dos
conquistadores: uma mistura de evangelização e colonização selvagem. Aquela
conversa suscita na Madre uma profunda experiência eclesial, densa de dor e de
sentido apostólico. (Fundações 1).
Encontramos
traços dessa impressão nas suas cartas, especialmente ao seu irmão Lourenço que
vive em Quito; elas demonstram a sua preocupação com as realidades da América e
os abusos dos conquistadores.
*
Não é alheia a sua experiência outra faixa social e religiosa bem presente na
Espanha de outrora: os hebreus convertidos. Muitos não querendo deixar a
Espanha se converteram à força; chamam-se novos cristãos. O seu avô João
Sanchez de Toledo, mercador de roupas, é um deles. Trata-se de uma descoberta
da genealogia de Teresa, que no início teve muita dificuldade para ser aceita,
que manteve em suspensão muitos teresianistas, mas que agora parece
irrefutável, especialmente após os últimos estudos e a edição da documentação
relativa ao “pleito de fidalguia”. Teresa era de ascendência hebraica, por
parte de pai; o nono paterno, acusado de ter sido condenado pela Inquisição e
de ter vestido o ‘sambenito’ amarelo nas procissões, como penitência por ter
recaído nas práticas judaizantes. A Santa, portanto, pertence a uma classe
social e religiosa marginalizada. Mas essa situação social e religiosa foi logo
camuflada com a compra por parte do avô de títulos nobiliários para os seus filhos.
Não
parece claro como tenha sido percebida por Teresa esta sua condição social e
religiosa, mas provavelmente incide em algumas experiências e doutrinas. Não é
portanto uma nobre de antigo casado castelhano. Como por século se ufanava a
hagiografia teresiana, até fazê-la tornar-se a “Santa da raça” espanhola, mas
uma Teresa Sanchez, com um sobrenome bastante plebeu, descendente de uma
família hebreia da parte do avô, neta de um mercante de tecidos de Toledo.
B.
Contexto eclesial
A colocação eclesial de Teresa pode ser
realizada com algumas pinceladas.
*
É uma santa da Igreja Tridentina e da Reforma católica. Possui nítida
consciência dos fermentos de vida cristã na Castela, dos círculos heterodoxos
dos alumbrados, da repressão da Inquisição contra livros, grupos, escritores,
num momento em que se teme pela infiltração do protestantismo na Espanha. Ela
conhece bem a situação, os autos da fé nos quais são levados à morte hereges e
maometanos; sofre por essas expressões extremas de crueldade que terminam na
execução sobre o patíbulo. Ela mesma terá de enfrentar o tribunal da
Inquisição, embora tenha saído indene.
*
Tem plena consciência de viver numa Igreja que celebra um Concílio de Reforma,
o Concílio de Trento. Participa ativamente do movimento da Reforma católica.
Conhece os grandes santos, teólogos, bispos do seu tempo. Ela mesma é fruto
desta comunhão com a Igreja do seu tempo e os melhores protagonistas da
história religiosa da Espanha. Na capela da Santa em Ávila, edificada sobre o lugar
em que ela nasceu, é descrita a sua comunhão espiritual com as Ordens daquele
tempo e o influxo que exercitado por elas.
Em quatro quadros são apresentados as quatro Ordens que deram os
melhores frutos do seu carisma a Teresa: o espírito de oração (carmelitas), o
espírito de pobreza (franciscanos), o espírito da sabedoria e da verdade
(dominicanos, o espírito da religião e o senso da Igreja (jesuítas). Teresa,
mulher de pleno senso eclesial, olha para Roma. Escreve cartas ao Papa São Pio
V. Obtém a aprovação das suas fundações.
*
Mas a sua experiência da Igreja é mais vasta e mais profunda. É a experiência
interior da situação da Igreja, percebida quase misticamente, especialmente nos
labores da sua laceração pelo luteranismo. Desta forte experiência eclesial
brota a sua contribuição à renovação espiritual da Igreja: a vida contemplativa
como renovação interior para servir a Igreja: a vida contemplativa como
renovação interior para servir a Igreja com a oração e a santidade. É
característica teresiana o ‘sentire Ecclesiam’, algo mais, ou diferente do
sentir com a Igreja, que também não está ausente dos seus livros que acabam
sempre com uma profissão de fé na Igreja Católica.
*
É testemunha na sua experiência mística das grandes verdades doutrinais, negadas
por Lutero, afirmadas por Trento: a realidade do pecado mas também a verdade da
justificação como verdadeiro e próprio dom da graça, comunhão pessoal com Deus,
transformação da pessoa e enfim a experiência de ser verdadeiramente salva, com
a afirmação do papel absolutamente necessário da salvação em Cristo; afirma o
valor dos sacramentos, dos sacramentais, das imagens. Teresa é uma mística
carismática que demonstra com o seu apego à Igrejas o sentido vivo da tradição,
à diferença de Lutero. Neste sentido se coloca com uma providencial graça. Um
verdadeiro carisma, para Igreja do seu tempo.
4. Santa
Teresa no âmbito da história da espiritualidade
Teresa
coloca-se no âmbito da espiritualidade moderna pós-tridentina e na escola
espiritual espanhola. Após a ‘devotio moderna’, inserida na renovação
espiritual e mística do seu tempo. Forma um cacho de santidade eclesial ao lado
de outras figuras: Inácio, João da Cruz, Pedro de Alcântara, João de Ávila...
Está portanto marcada na sua doutrina como a escola espanhola, pelo prevalecer
da interioridade como se verifica na espiritualidade da oração; mas permanece
aberta a tantos outros valores e experiências espirituais do seu tempo, nas
quais intervém também de modo polêmico: oração mental, humanidade de Cristo,
contemplação, papel da mulher, humanismo erasmiano, diálogo entre teólogos e
espirituais.
Faz-se
mister perguntar-se sobre que é o lugar da mística teresiana na história e na
atualidade.
Nesta
apresentação podemos oferecer esta síntese histórica através de três palavras
chaves que colocam em luz a situação progressiva da doutrina teresiana e o seu
valor teológico, especialmente no século XX: apoteose, crise, despertar. Uma
apresentação amplamente documentada por ocasião da preparação do Doutorado
teresiano, especialmente com o voto da Pontifícia Faculdade Teológica do
Teresiano.
A.
Apoteose
A
rápida difusão das obras da santa, os louvores do primeiro editor Frei Luís de
León e os reconhecimentos dados à Santa por ocasião da sua canonização em 1622,
abriram caminho a uma marcha triunfal dos escritos teresianos na Igreja a
partir da sua morte e da sua glorificação. Mas tudo foi mais difícil do que se
pensa. Logo que as obras teresianas foram conhecidas, pesadas acusas teológicas
foram enviadas à Santa Inquisição espanhola pedindo a condenação delas pelas
particulares singularidades na doutrina mística.
Posteriormente
a sua doutrina marcou profundamente a história da espiritualidade na Espanha e
alhures (Itália e França): escola francesa, Francisco de Salles, Afonso Maria
de Liguori etc.
Teresa
impôs-se claramente por si mesma a partir do século XVII em duas direções. De
um lado através do influxo externo das suas obras em áreas culturais diversas e
nas novas escolas de espiritualidade, principalmente na Itália, França e
Flandres. Por outro através da formação de uma escola mística
carmelitano-teresiana com eminentes teólogos e comentadores que se inspiraram
continuamente nos livros de Teresa. Assim o influxo foi decisivo na
terminologia mística, nas descrições fenomênicas, na escala das graças místicas
pode dizer-se que, ao lado de João da Cruz, Teresa de Jesus se impôs
universalmente como autoridade na doutrina mística; ponto referencial para a
avaliação de outras experiências místicas no campo da santidade foram os seus
livros; a eles atingiram abundantemente os cultores da teologia mística na
sistematização desta ciência, até determinar a natureza da teologia a partir
não só dos princípios mas também da própria experiência, como Teresa fizera no
Castelo Interior .
Nesta
apoteose teresiana que se estende do século XVII até as primeiras décadas do XX
século, se devem notar alguns inconvenientes.
Primeiro:
prevaleceu a atenção barroca pelas coisas extraordinárias, e extrapolação dos
fenômenos místicos de seu contexto continuístico, a forma literária inflada com
que frequentemente foi apresentada a doutrina de Teresa.
Segundo:
os grandes comentadores da mística teresiana deram livre curso à fantasia ao
procurarem fazer uma apresentação sistemático-escolástica com a pretensão de
fazer quadrar perfeitamente as descrições teresianas com os raciocínios da
teologia escolástica de Santo Tomás de Aquino e dos seus discípulos.
É
o caso de dizer, emprestando a frase de von Balthasar, que a leve borboleta
teve de suportar a pesada couraça de chumbo. As límpidas, diretas e imediatas
descrições teresianas sofreram a deformação de um escolasticismo que em tempos
de pobreza bíblica, patrística, litúrgica não apreciaram os valores
substanciais postos em luz por Teresa.
B. A
crise
Teresa
de Jesus chega ao século XX com toda a sua autoridade no campo da mística,
quando existem fermentos válidos no interior desta ciência, se trabalha numa
proposta válida da teologia ascética e mística e torna-se preponderante o
discurso sobre o problema místico com discussões bem animadas.
Encontramo-nos
diante da mudança de um renovamento muito mais drástico em campo bíblico,
litúrgico, teológico, patrístico. O retorno às fontes para arrastar
polemicamente toda a herança da idade média e especialmente o período
pós-tridentino com os seus autores, as metodologias escolásticas, até com seus
autores preferidos, as escolas de espiritualidade que marcaram os séculos
posteriores.
As
primeiras críticas com A. Stolz sobre a teologia da mística, tornar-se-ão em
seguida lugar comum: a mística teresiana é descritiva, psicológica; sem
conteúdos teológicos e inspiração bíblica; permanece bem distante das grandes
linhas da mística bíblica e das fontes litúrgicas. A voz influente de von Balthasar
encarece a dose de críticas na mesma linha. Biblistas e liturgistas repetem
acriticamente as mesmas lamúrias, como se tivessem prazer doentio em atingir um
gigante ferido. Uma intervenção pouco acertada de Jacques e Raïssa Maritain a
propósito do tema “liturgia e contemplação” parece colocar Teresa de Jesus no
grupo dos inimigos da liturgia. Para a grande maioria dos teólogos renovadores
parece que a sua presença na espiritualidade e na mística deva ser bastante
redimensionada.
Em
capo teresiano, porém, não se oferecem respostas válidas. Os estudos sobre
Teresa são ainda pouco científicos. G. Etchegoyen tinha utilizado um novo
método de análise com o seu livro sobre as fontes teresianas. Faltam estudos
sérios a nível teológico diante de certa abundância de estudos literários,
psicológicos e doutrinais. O confronto com as objeções e a sensibilidade da
nova época da Igreja falta completamente entre os teresianistas, com alguma
rara exceção.
C. O
despertar
No
ano de 1962, um estudo do frei Tomás Alvares marca o início de uma nova época
no campo dos estudos teresianos. Teresa de Jesus é apresentada como mística,
como contemplativa na Igreja. Com uma graça específica e uma mensagem própria,
situada na sua época mas com perene validade. É testemunha da vida
sobrenatural, do mistério de Deus revelado em Cristo. O estudo traça um amplo e
documentado balanço dos “conteúdos da experiência mística teresiana”. Pela
primeira vez, é colocado o acento sobre os conteúdos da teologia, sobre os
mistérios revelados que foram concedidos a Teresa como objeto de contemplação e
de experiência. Será o primeiro de muitos outros trabalhos que até os nossos
dias procuraram estudar em profundidade, pornograficamente, estes grandes sujeitos
da revelação cristã, vividos por Teresa a nível místico: Deus, Cristo, a
Trindade, o Igreja, o homem, o pecado.
Já
T. Álvarez tinha indicado no seu estudo o valor primário da Palavra de Deus na
experiência mística teresiana, com confronto de verdade mas também como objeto
de contemplação e de penetração mística. Encontrar-se-á outro veio
característico: o estudo das fontes, com especial atenção à Bíblia e à
Liturgia.
O
Concílio Vaticano II, entre outras coisas, confirma a função da experiência mística
no enriquecimento e aprofundamento do depósito da fé (Dei Verbum 8). Com a
valorização dos carismas na Igreja, são também postos em realce os valores dos
místicos que são testemunhas carismáticas, para a Igreja, do vivido cristão.
Retoma cota o tema da experiência espiritual e portanto da mística teresiana.
Dois
eventos eclesiais das últimas décadas do século passado deram início a plena
recuperação dos valores místicos de Teresa. Em 1970, num dos momentos mais
baixos da cotação teológica teresiana, em plena contestação pós-conciliar,
Teresa de Ávila é proclamada Doutor da Igreja e é confirmada a sua autoridade
em matéria mística. Os estudos teológicos que prepararam a declaração de Paulo
VI acertaram em cheio a dimensão teológica da experiência teresiana. Em 1982
celebrou-se o IV Centenário da morte da Santa. O clima eclesial era diverso;
estamos em tempo de escuta das testemunhas mais do que dos que se dão ares de
mestres. A voz de Teresa é novamente amplamente escutada.
Entretanto,
desenvolveram-se na Igreja tendências mais favoráveis ao dado da experiência
mística. Está-se à procura de uma teologia vital, narrativa, da experiência;
fala-se de uma teodramática do encontro entre Deus e o homem; procura-se uma
teologia simbólica que abra canais às sucessivas conceitualizações. Um novo
interesse religioso eleva as cotações da mística a nível comparativo nas
diversas religiões e no campo específico do misticismo cristão.
Nesse
contexto, a recuperação de valor da mística teresiana é evidente. Estamos
diante da valorização de quatro dimensões convergentes que podem oferecer uma
visão completa dos misticismos teresiano em si mesmo:
a) a linha dos conteúdos mistéricos retamente
cristãos vividos pela Santa Teresa garante a ortodoxia e a densidade teológica
da sua mística;
b) o estudo das fontes objetivas do
misticismo na Bíblia e na liturgia insere Teresa no objetivismo da revelação e
da doação sacramental do mistério cristão;
c) a análise da experiência psicológica
cristã e humana de Teresa repropõe a riqueza, a precisão, a força antecipadora
de muitas pesquisas atuais no campo da psicologia religiosa ou não religiosa;
d) o sereno realismo com que Teresa reconduz
a mística ao fato fundamental da transformação do homem, à habilitação para o
serviço eclesial, à corajosa doação para o serviço dos outros, liberta a
mística das suspeitas de introspecção subjetiva ou de perigosos subjetivismos;
da mística surge o homem novo em Cristo, com uma síntese de valores de
maturidade cristã e psicológica que resplandece no místico santo, na
“divina-humanidade” que tem por modelo Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro
homem. Ademais a mística teresiana é uma mística soteriológica, uma experiência
e um testemunho de valor salvífico da mística enquanto redenção e salvação,
transformação da pessoa humana a contato vivo com a graça de Cristo.
Essas
quatro linhas parecem-me essenciais para poder mover-se num estudo
interdisciplinar que não seja redutivo e que leve a sério todos os dados da
mística teresiana. No campo da psicologia da mística parece que se encontram os
vazios bibliográficos mais vistosos entre os estudos teresianos.
Outro
campo permanece aberto: o do confronto com as místicas de outras religiões.
Existem pontos de convergência na linguagem e no simbolismo, em algumas
metodologias e em certas ressonâncias psicológicas; mas o misticismo teresiano
toda a carga original do misticismo cristão onde emerge a força da salvação
como graça de Deus que confere o perdão e redime, salva e transforma.
O
confronto pode e deve ser reconduzido para dentro da igreja de hoje. Existem
novos misticismos que merecem atenção, estudo e discernimento. Sem pretender
esgotar tudo na mística teresiana, os livros teresianos permanecem valioso
ponto de referência; não raramente os novos místicos e os novos misticismos se
dirigem de bom grado aos escritos teresianos em busca de luz e de guia. Teresa
indica, na complexidade da sua experiência, o discernimento de verdade e de
vida que deve ser feito.
Pelo
bem da verdade, o remetimento obrigatório é à Igreja e à teologia, sem medos.
Para a vida, são frutos de santidade que garantem que estamos na presença de
experiências nas quais age e se doa Deus em Cristo e no Espírito. As quatro
dimensões da mística teresiana acima indicadas constituem uma válida
metodologia para o exame ou ‘autoexame” das novas místicas cristãs.
5.Quais
os traços essenciais da sua mensagem espiritual?
Resumindo
algumas características da mensagem espiritual teresiana podemos sintetizar
alguns traços essenciais.
Interioridade. Atenção aos valores interiores da
pessoa: vida interior, oração, profundo senso agostiniano da vida e da
experiência. A capacidade da pessoa de conversar com Deus, a afirmação da
realidade da graça como comunhão pessoal e transformante. A oração com a
síntese da vida cristã. Conhecer a si mesmos e conhecer a Deus como movimento
essencial do chamado “socratismo” teresiano.
Humanismo
cristão.
Sensibilidade por todos
os valores da pessoa humana, do humanismo cristão, das realidades da criação,
das virtudes humanas e evangélicas, sociais; valor teologal da pessoa humana,
imagem e semelhança de Deus; apologia e valor da amizade, da comunhão
espiritual; finalização da vida de oração e da experiência mística ao serviço
apostólico.
Misticismo. Teresa é testemunha do mistério,
dos mistérios. Testemunha da irrupção sobrenatural de Deus na pessoa com a
graça e com as graças. Todos os seus livros estão cheios de experiências
místicas. Apresenta em suas obras a plenitude da vida em Cristo. Ilustra a
junção com os grandes mistérios. Mística não oposta à ação, não em contradição
com a ascese; de fato o horizonte teresiano não é meramente ascético; a ascese
é antes de tudo coerência ética e teologal que exige virtudes sólidas, mas em
definitiva disponibilidade para que Deus possa agir na pessoa. Mística não de
mensagens sobrenaturais, mas da mensagem cristã. A fenomenologia mística
testemunhada não é fim a si mesma: é em função da certificação da verdade
experimentada e da vida ou da santidade que transforma e torna dinâmica a
existência. É mística também na força convencedora da experiência fenomenológica
para poder dar testemunho do que foi percebido e contemplado.
Unidade
entre experiência e doutrina. A sua fonte primária é a experiência cristã, que
procura re-expressar em doutrina assim como teve a inteligência, embora
partindo de uma preparação doutrinal inadequada. Menos decisivos são os
influxos dos outros autores, ou já se tornaram influxos personalizados. Mais
determinante é a sua experiência vivida. Não oferece uma teologia dedutiva, mas
um testemunho indutivo. É original e pessoal na sua exposição, nos seus
recursos. Oferece-nos um testemunho do mistério mais do que uma exposição do
mistério. Mesmo que nisso seja ajudada pela grande capacidade de intuir o
triplo momento da graça: precede o momento da experiência (experimentar), segue
o momento da inteligência (compreender), e se tem finalmente a graça de poder
dizer aos outros o que se experimentou (comunicar) (Vida 17,5). Mas também
neste caso trata-se de comunicar para fazer os outros entrarem com adequada
pedagogia na mesma experiência de Deus.
É
portanto notável o sentido característico da “teologia mística e mistagógica
teresiana” que supõe a experiência, como fonte primária, a doutrina ou reflexão
doutrinal como ponto de confrontação e referimento às verdades da fé, a
pedagogia ou mistagogia que supõe um convite à experiência do mistério cristão
através da oração como via total de amizade, comunicação, transformação.
6. Senso
deste magistério na Igreja
Teresa
é uma mística. É o seu carisma. É testemunha de uma experiência cristã.
Experiência examinada pelo discernimento da verdade e da vida.
A
sua figura coloca-se no centro do grande tema da relação experiência e teologia,
e da relação entre teologia e santidade, expressa com lucidez por H. U. Von
Balthasar. Deve ser considerada como testemunha mais do que como teórica da
espiritualidade, mesmo não lhe faltando ousadia ao escrever um “tratado”: o
Castelo interior.
À
luz do Vaticano II o seu carisma emerge com uma luz própria na linha de alguns
ensinamentos do Concílio:
- LG 4 sobre a ação do Espírito através dos
carismas;
- LG 12 sobre os carismas na Igreja ao seu
serviço e para o seu bem;
- DV 8, sobre o aprofundamento da revelação à
luz da experiência mística.
Mas
se pode reportar o seu ensinamento à GS 19, sobre a vocação da pessoa humana à
oração e à comunhão com Deus.
Essa
é a função de Teresa no seu tempo e no nosso: testemunhar a partir da sua
experiência que a vida é uma maravilhosa história de salvação onde Deus age e
pode conduzir do limite do pecado até os píncaros da santidade e da comunhão
trinitária.
Neste
sentido se pode ter em consideração a tese do Frei Tomás Álvarez (No segredo do
Castelo. Teresa di Ávila, pág. 151).
Coincidem
de fato:
* As realidades experimentadas por Teresa, em
sintonia com as verdades da Igreja Católica
* as verdades negadas por Lutero,
* as verdades afirmadas por Trento.
No
nosso tempo. O testemunho teresiano resta válido. Além das perenes mensagens de
vida cristã e de doutrina espiritual, num tempo em que se escuta de bom grado
as testemunhas mais do que os mestres, Teresa é testemunha de vida e mestra de
experiência.
Em
síntese: podemos colher em Santa Teresa hoje estes traços:
*
Oferece-nos um ensinamento sobre a vocação cristã em objetiva comunhão com Deus
e o seu mistério, e em dinamismos de interioridade, de transformação da pessoa
e da sua ação apostólica.
*
Apresenta o seu serviço magisterial-doutoral em função da igreja do seu tempo
mas de perene atualidade: o mistério de salvação, a história da salvação que
cada um deve viver; testemunho mais forte do ensinamento dos teólogos, embora
não em contradição com a doutrina teológica, melhor testemunhando a sua verdade
a partir do conhecimento experimental e místico. Já no seu tempo Frei Garcia de
Toledo OP dizia que Teresa podia ensinar a oração como outros ensinam nas
nossas faculdades; podia ser mestra de teologia em Salamanca(!).
*
O seu ensinamento, a partir da experiência e voltado para a experiência,
fazendo apelo sobre o desejo de reativá-la no leitor; escreve para contagiar,
‘para engulosinar”, para encorajar, a partir da sua própria vida.
Concluindo:
Como definir os traços salientes do misticismo de Santa Teresa de Jesus, Doutora da Igreja? Emprestamos de um teresianista algumas notas características.
É
uma mística histórica e narrativa que parte da experiência de salvação vivida,
que se enlaça com a história universal da salvação e a confirma.
É
uma mística rica e complexa com dimensões de altura, largura e profundidade no
seu processo linear. Não podemos reduzi-la sem empobrecer o mistério que é rico
e complexo e sem mutilar a ressonância humana que também é complexa e rica.
É
uma mística personalística ou interpessoal, onde emergem além dos fenômenos, o
Deus pessoal que se revela em Cristo e se doa no Espírito Santo e o homem na
sua personalidade que é recriada e realizada na comunhão.
É uma mística mistagógica, mística
do mistério (mística mistérica), que anuncia e provoca esta possibilidade de
viver o mistério cristão; uma mística que faz apostolado da mística. Teresa faz
isso em primeira pessoa com cada leitor seu que esteja atento às intenções da
autora que visa “engulosá-lo”, a torná-lo participante da roda dos amigos de
Deus.
É
uma mística com mensagem, mais do que mensagens; a mensagem é a do próprio Deus
e da história da salvação; o chamado à “koinonia”, a redescoberta que Deus mora
no homem, que nos quer à sua imagem e semelhança. Por isso a mística teresiana
é experiência das grandes realidades da economia cristã: da Trindade à
humanidade, dos sacramentos à Igreja. Ela tem como mensagem central a
proclamação de Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, mediador da salvação,
modelo da transformação mística, mestre da verdade.
No
interior da mística, Teresa se coloca claramente nesta tripla categoria:
- É testemunha, porque nela tudo parte da
experiência vivida.
- É mestra, porque procurou oferecer da sua experiência uma válida apresentação doutrinal.
- É mestra, porque procurou oferecer da sua experiência uma válida apresentação doutrinal.
- É mistagoga, porque a sua experiência e a sua
doutrina tendem à pedagogia, ou mistagogia: introduzir os cristãos nas
insondáveis riquezas do mistério de Cristo.
Bibliografia
Para uma visão sintética dos temas tratados
aqui confere:
T.
ALVAREZ , Santa Teresa y la Iglesia , Burgos, Monte Carmelo 1980
J.
CASTELLANO , Espiritualidade teresiana , em AA.VV. Introducción a la lectura de
Santa Teresa , 187- 201.
Id.
Teresa di Gesù nel suo ambiente spirituale , em AA.VV. Teresa de Avila , Napoli
1982, 45-77.
Id.
Presencia de Santa Teresa de Jesús em la teología e en la espiritualidade
actual. Balance e perspectivas , em “Teresianum” 33(1982) 181-232.
T
EGIDO , Ambiente histórico , em Introducción a la lectura .., 43-103.
Id.
El linaje judeo-converso de Santa Teresa , Madrid EDE, 1986.
Sobre o doutorado teresiano e a sua
atualidade:
A.
BALLESTRERO , Il magistero de Teresa di Gesù , dottore della chiesa, em
“Rivista de Vita Spirituale” 49(1955) 667-682.
J.
CASTELLANO , Nel XXV anniversário del Dottorato di Santa Teresa. Memoria
storica e attualità ecclesiale , Ibid. 683-704
Id., “ Eminens doctrina”. Um requisito
necessario para ser Doctor de la Iglesia , in Teresianum 46(1995) 3-21.
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