quarta-feira, 2 de abril de 2014

São José de Anchieta, rogai por nós!

Reflexões do Cardeal Dom Orani João Tempesta, O. Cist., Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ

No dia 2 abril, o apóstolo do Brasil é canonizado! Um homem de Deus que soube acolher o chamado vocacional e viver nos inícios do Brasil protagonizando a fundação de colégios, cidades, entre as quais a do Rio de Janeiro. O Papa Francisco nos dá esse belo presente!

São dias de alegria indizível estes em que, de corações agradecidos, vivemos a canonização do Beato José de Anchieta (1534-1597), sacerdote jesuíta que, tanto no campo material quanto no espiritual, muito trabalhou pelo Brasil e, por esta razão, recebeu com carinho e justiça o codinome de “Apóstolo do Brasil”.

Antes de penetrarmos diretamente na vida desse grande homem de Deus, atentemo-nos para o rico significado catequético do momento em que estamos celebrando: uma canonização. Daí a questão: qual é, na Igreja, o real significado dos verbos beatificar e canonizar?

Beatificar é celebrar, em Roma ou fora dela, um ato solene no qual o Papa, pessoalmente ou através de um legado seu, declara que o (a) Servo(a) de Deus pode ser venerado(a) como Bem-Aventurado(a) ou Beato(a) por meio de uma festa em lugares delimitados como, por exemplo, as cidades em que viveu, atuou, morreu.

Canonizar é a ação pela qual o Papa declara que o(a) Bem-Aventurado(a) é Santo(a) ao inscrevê-lo no cânon (catálogo) dos santos, por isso se fala em canonização, termo utilizado pela primeira vez no século XII, em uma carta de Udalrico, Bispo de Constança, ao Papa Calixto II (1119-1124).

Tanto a beatificação quanto a canonização são funções reservadas ao Santo Padre – especialmente, de modo formal, a partir do século XII, com o Papa Alexandre III (1159-1181) –, embora as cerimônias correspondentes possam ser oficiadas por um delegado papal. Requer-se, para se declarar que alguém é beato(a) ou santo(a), a comprovação das virtudes heróicas do(a) candidato(a) nesta vida, de modo que ele(ela) mereça, por graça divina, gozar, atualmente, da visão de Deus face a face no céu. De lá, pode ser invocado oficialmente para interceder por nós e nos servir de modelo enquanto caminhamos nesta Terra rumo à Pátria definitiva.

Via de regra, são exigidos dois milagres – geralmente de recuperação completa da saúde –, como sinais comprobatórios da santidade do(a) Servo(a) de Deus em questão: um para a beatificação e outro para a canonização. Todavia, pode acontecer – como é o caso de Anchieta – o que chamamos de “canonização equipolente ou equivalente” e, para que ela ocorra, devem ser preenchidos três requisitos básicos:
1) a prova do culto antigo ao candidato a santo;
2) o atestado histórico incontestável da fé católica e das virtudes do candidato;
3)  a fama ininterrupta de milagres intermediados pelo candidato.

Isto posto, resta-nos regozijarmos, enquanto católicos e brasileiros, pela inscrição do nosso querido José de Anchieta no catálogo dos Santos por determinação do Santo Padre, o Papa Francisco, 34 anos depois de ser declarado Beato pelo Papa João Paulo II, em 22 de junho de 1980, ainda que o processo de beatificação tenha sido iniciado no já distante século XVII.

José de Anchieta nasceu em São Cristóvão, Tenerife, uma das ilhas espanholas do Arquipélago das Canárias, em 19 de março de 1534, dia dedicado, no calendário litúrgico, a São José, patrono da Igreja. Daí o seu nome de Batismo ser José de Anchieta.

Após estudar no famoso Colégio de Artes de Coimbra, ingressou, aos 17 anos, na Companhia de Jesus, dos Jesuítas, Ordem fundada por Santo Inácio de Loyola, em 1539 e aprovada pelo Papa Paulo III, em 1540. Recebeu aí boa formação em filologia e literatura e, sobretudo, aprendeu que vivemos neste mundo para “conhecer, amar e servir a Deus e, mediante isso, salvar nossa alma”. Aqui, tudo o que fizermos deve ser “Para a maior glória de Deus”.

Contudo, tão logo se fizera jesuíta foi provado com uma grave doença ósteo-articular, com fraqueza e dores em todo o corpo, durante dois anos, razão pela qual os superiores, após ouvirem os médicos, decidiram enviá-lo ao Brasil na esperança de que o bom clima da terra lhe fizesse bem. Era a ação providencial de Deus em sua vida e na dos brasileiros, daqueles e dos nossos tempos.

Chegou à Bahia de Todos os Santos, Salvador, em 13 de julho de 1553, com apenas 19 anos de idade, como irmão jesuíta, com um único objetivo: salvar almas para Cristo. De lá, deveria ir, junto com o Pe. Manuel da Nóbrega, seu superior, para a Capitania de São Vicente, litoral de São Paulo, a fim de catequizar indígenas e colonos. Como a viagem era também por mar, um fato inesperado aconteceu: no Sul da Bahia uma forte tempestade surpreendeu as duas embarcações e o barco em que estava Anchieta acabou ficando encalhado nos recifes.

Enquanto o veículo de viagem era consertado, conta-se que Anchieta, consciente de que depois da vinda de Cristo “o tempo se fez breve” (1Cor 7,29), foi à procura dos silvícolas da região e começou a lhes falar de Deus. Em uma dessas caminhadas, levaram-no até uma indiazinha que, doente, se encontrava em seus últimos dias nesta Terra. O padre a instruiu na fé e a batizou, dando-lhe o nome de Cecília. Era o primeiro sacramento que “o Apóstolo do Brasil” ministrava em seu tão vasto território de missão.

Chegando, finalmente, a São Vicente, Anchieta não parava um só instante: fazia contato com os habitantes do lugar para falar-lhes de Deus e, ao mesmo tempo, plantar as bases de uma vida mais digna e justa para todos. Não se limitou, porém, apenas à região praiana, mas, ao contrário, subiu a Serra do Mar, chegou ao Planalto de Piratininga e, no dia 25 de janeiro de 1554, festa da Conversão de São Paulo Apóstolo, participou da fundação do colégio da vila de São Paulo de Piratininga, onde também lecionou. Ao lado do colégio, construiu-se uma capela na qual foi celebrada a primeira Missa, em 25 de agosto daquele mesmo ano. Estava, assim, nascendo o núcleo da cidade que, com o passar dos anos, se tornaria uma das maiores metrópoles do mundo: São Paulo.

Foi superior da Capitania de São Vicente e também provincial dos jesuítas por 10 anos, ou seja, de1577 a1587. Logo aprendeu a língua tupi, falada pelos indígenas, e elaborou a primeira gramática tupi-guarani, traduzida para o alemão e o latim. Nosso santo criou, desse modo, uma língua-geral, que foi usada no Brasil até 1750, ano em que foi imposta a língua portuguesa. Compôs músicas, versos, danças e teatros em linguagem indígena. É chamado o “pai do teatro brasileiro” e grande nome da cultura nacional. Dentre seus dez livros está o que leva o título de “Poemas à Virgem Maria”, cuja maior parte foi redigida nas areias de Iperoig (hoje Ubatuba, SP), no período em que ficou refém dos índios tamoios. Escrevia em português, espanhol, latim e tupi-guarani.

Parecia arder em Anchieta as palavras de São Paulo, o Apóstolo das gentes: “Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho” (1Cor 9,16). Daí ele valorizar a espontaneidade dos silvícolas que buscavam conhecer e praticar a fé católica, segundo se depreende das correspondências que o religioso mantinha com seus superiores na Europa. Em carta ao Padre Diogo Laínes, geral dos jesuítas, datada de 1565, Anchieta, ainda refém dos índios em Iperoig, relata que todas as manhãs, Pindobuçu, o chefe da tribo, ia visitá-lo para perguntar coisas sobre Deus. O religioso lhe mostrava, então, imagens de uma Bíblia ilustrada que possuía e isso causava muita admiração no índio que, na manhã seguinte, voltava para aprender mais (cf. Cartas. São Paulo: P.H.A Viotti, 1984, p. 222, vol. 6 das Obras Completas). Ao se referir aos tupis de São Paulo, o religioso jesuíta diz que eles “voluntariamente (...) vivem como cristãos, correspondendo plenamente ao esforço de seus catequistas” (Cartas, Jes. III, 316-317).

Nota-se, por esses dados, que poderíamos multiplicar o quanto Anchieta, agora nosso santo, viveu o ardor missionário que motivava os religiosos europeus a rumarem para as Américas, segundo se lê, com muita clareza, nesta constatação: “A única conversão que os evangelizadores pretendiam (e, em boa parte, conseguiram) era a conversão no plano sobrenatural: aceitação interna, sustentada pela graça de Deus, da fé na revelação divina, seguida da mudança de vida no intuito de ajustá-la aos preceitos divinos, como preparação para a vida eterna. Esta foi a suprema missão que Cristo confiou à sua Igreja: ‘Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a todas as criaturas. Quem crer e for batizado será salvo, quem não crer, será condenado’ (Mc 16,15s)” (João E. M. Terra. Catequese de índios e negros no Brasil colonial. Aparecida: Santuário, 2000, p. 38).

Esse ideal voltado ao sobrenatural não fez, no entanto, de Anchieta um alienado das coisas deste mundo. Ele bem parecia antever aquilo que, cerca de 410 anos depois, o Concílio Vaticano II (1962-65) ressaltaria na Gaudium et Spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para comunicá-la a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero humano e à sua história.” (n. 1). Daí, em 1555, por ocasião das invasões francesas ao Rio de Janeiro, ele esteve ao lado de Estácio de Sá, então governador, ajudando a conscientizar o povo de que não deviam aceitar os intrusos, pois eles planejavam dividir nossa gente.

Segundo o Postulador da causa, Padre César Augusto dos Santos, SJ: “Em 1º de novembro de 1566, Mem de Sá, o visitador, padre Inácio de Azevedo, o provincial, padre Luís da Grã, o segundo bispo do Brasil, Dom Pedro Leitão, José de Anchieta e outros jesuítas partem para o Rio de Janeiro, chegando à cidade no dia 19 de janeiro de 1567. Eles partiram na armada enviada pelo rei de Portugal, comandada pelo capitão Cristóvão de Barros. Imediatamente no dia seguinte à sua chegada, Mem de Sá, confiante na intercessão do padroeiro da cidade, São Sebastião, cuja festa litúrgica era naquele dia, desfechou um assalto ao forte que estava no atual Outeiro da Glória, o forte de Ibiraguaçu-mirim. Conta Anchieta, em sua “Informação do Brasil e suas Capitanias”, que depois de destruir dois fortes, Ibiraguaçu-mirim, na foz do rio da Carioca e Paranapucuí, na Ilha de Maracajá, atual Ilha do Governador, Mem de Sá mudou a cidade para o Morro de São Januário, depois chamado Morro do Castelo, de onde se tinha uma visão privilegiada da entrada da barra. No início do século 20, o morro foi demolido e o local ficou conhecido como Castelo ou Esplanada do Castelo. No ataque a Ibiraguaçu-mirim, Estácio de Sá, verdadeiro baluarte durante os dois anos da cidade, foi mortalmente ferido, vindo a falecer no dia 20 de fevereiro. Anchieta, que o acompanhou muito de perto, assim escreveu sobre esse capitão: “tão amigo de Deus, tão manso e afável, que nunca descansa de noite e de dia, acudindo a uns e a outros, sendo o primeiro nos trabalhos...” 

Contudo, como já vimos nesta reflexão, o que mais se destacava em Anchieta era o seu zeloso sacerdócio ministerial. Queria ele consumir-se como a chama de uma vela para o bem de todos, ministrando os Sacramentos, lecionando – aos índios pequenos ensinava latim e aos jesuítas europeus dava aulas de tupi – ajudando na edificação de vilas onde o povo pudesse viver dignamente. Morreu com 63 anos, no povoado que ele mesmo havia ajudado a edificar em 1569, Iritiba (hoje Anchieta, ES), na Capitania do Espírito Santo. Era o dia 9 de junho de 1597.

A partir daí, muitas pessoas passaram a recorrer ao “Apóstolo do Brasil” a fim de que ele intercedesse junto a Deus por elas. Nasceram disso muitos relatos de graças alcançadas pela intercessão de Anchieta entre nós, especialmente no campo da restituição da saúde, bem como a narração de fatos lendários e pitorescos como este: “Durante a vida do Pe. Anchieta (1534-1597), um barqueiro garantia a quantos quisessem ouvir. A barca em que viajava o Pe. Anchieta afundou. O padre ficou retido no fundo pela barca virada. E o barqueiro, até uma hora depois, viu o Pe. Anchieta tranquilamente lendo seu breviário lá, embaixo da água. Quando o retiraram, nem o padre, nem o livro haviam se molhado” (Oscar G. Quevedo. Milagres, a ciência confirma a fé. S. Paulo: Loyola, 2000, p. 296).

Não importa debater aqui se tal fato ocorreu ou não, o que nos interessa é frisar o quanto o povo tinha Anchieta na conta de santo. Tão santo que Deus como que o “plastificara” contra os acidentes naturais... Contudo, importa frisar que a santidade nem sempre vem acompanhada de grandes portentos. Ela pode ser fruto de uma vida simples, escondida em Cristo, mas que faz, cotidianamente, a vontade do Pai. Mais: a narrativa nos traz uma lição: ainda que debaixo das águas do mar da vida que querem nos afogar, não percamos a serenidade, seguremos firmes nas mãos de Deus e sigamos adiante, certos de que Ele não chama ninguém à mediocridade, mas, sim, a ser santo como Ele mesmo é santo (cf. Lv 19,2; Mt 5,48).

Para atingir esta tão ousada meta é que, agora, pedimos confiantes: São José de Anchieta, Apóstolo do Brasil, rogai por nós!

Observação:
Esta forma de canonização já foi empregada recentemente pelo papa Francisco, quando, por decreto, elevou aos altares  S. Angela Foligno (outubro de 2013) e S. Pedro Favre (dezembro de 2013). A praxe a ser adotada no caso de Anchieta goza do mesmo atributo de infalibilidade que resplandece as canonizações ordinárias, nas quais são exigidos os dois milagres. Outrossim,  num passado mais remoto, no século XVIII, Prospero Lambertini, o papa Bento XIV, usou da canonização equipolente para propor  à veneração dos fiéis os santos Romualdo, Norberto, Bruno, entre outros e mais recentemente, João Paulo II canonizou Santa Edwiges da Polônia da mesma maneira.

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