Fco. Javier Sancho Fermín, ocd
A
expressão: “Ave crux, spes única”, que dá título a esta reflexão, mesmo diante
da beleza que encerra pode correr o risco de ser mal interpretada. Em nenhum
momento se pretende realçar nem exaltar a cruz em si mesma, mas o significado
da obra consumada por Deus na crucifixão. Trata-se, antes de tudo e sobretudo,
de uma obra de amor ao extremo. Só isso é que dá sentido e enche de conteúdo
esperançador a cruz. Apresentaremos mística a cruz a partir de uma mulher que
teve que atravessar e sofrer a dor da perseguição de seu povo, da discriminação
por ser mulher, da morte na câmera de gás, por ser judia e católica. Refiro-me
a Edith Stein.
Edith
Stein: uma vida entregue na radicalidade do amor.
Edith
Stein (1891-1942) é definida como uma síntese das tragédias do século XX. Nela
se descobrem muitos elementos que a põem em contato direto com o sofrimento: a
perda de sua fé judia, a discriminação por ser mulher e judia, a busca do
sentido da vida, a morte do pai (com dois anos de idade) e de outros entes
queridos, sua participação como enfermeira na primeira guerra mundial, o regime
nazista, o racismo e a aniquilação dos seus, a fuga, a incompreensão dos seus
familiares, o campo de extermínio e a morte na câmara de gás. Toda uma história
que, facilmente, poderia acabar no desespero, no ódio, na angústia. E, apesar
disso, nada conseguiu tirar-lhe sua dignidade de mulher e de pessoa, nem sua
paz e felicidade interior.
É
certo que na primeira etapa de sua vida, quando estava buscando e ainda não
tinha encontrado Cristo, o sofrimento marca sua vida profundamente, levando-a
em alguma ocasião a cair na angústia existencial e no desejo de morrer, de
desaparecer. Porém, uma vez que encontra-se com o Deus de Jesus Cristo, sua
dinâmica de vida muda radicalmente. Não só vive a paz interior, mas é capaz de
viver com serenidade e otimismo até as circunstâncias mais extremas.
Edith
Stein não é uma mulher que busca o sofrimento. Este surge em sua vida como na
vida de todos. Ela trata simplesmente de enfrentá-lo, quando inevitável,
da maneira mais digna possível, e assumi-lo em sua vida a partir de sua fé em
Deus. Por isso, não é de estranhar que, com força, ela matize esses
acontecimentos dolorosos como um tempo no qual há de empenhar-se ainda com mais
energia e dedicação. Não se deixa assustar nem amedrontar.
Em
seu caminho de encontro com a fé, exerceu um papel decisivo a sua amiga Ana
Reinach. Esta, em novembro de 1917, tinha perdido seu esposo Adolf Reinach, na
guerra. Era um homem profundamente amado e admirado por Edith. De fato, para
Edith, foi um dos momentos mais trágicos e sofridos de sua vida. Ela ainda não
era crente. Porém, a atitude de Ana, dolorosa pela morte do esposo, mas
sustentada pela esperança de sua fé e de que esse não era o final, foi a pedra
angular que orientou Edith à fé cristã: era a fé num Deus que assegurava a
permanência eterna da pessoa. Edith Confessou no último ano de sua vida: “este foi meu primeiro encontro com a cruz de Cristo”.
Poucos meses depois, ela mesma experimentaria em seu interior a presença deste
Deus Amor.
Para
Edith, a cruz foi um sinal de esperança ao longo de toda sua vida posterior:
não enquanto sofrimento, mas enquanto lugar teológico da presença salvadora, já
que à luz do mistério de Cristo não há sofrimento inútil. Todo momento
histórico ou toda situação pessoal, seja qual for, é lugar para seguir
realizando o projeto de Deus: a instauração de seu Reinado de Amor.
Outro
momento forte do mistério da cruz em sua vida encontramo-lo em 1933, ano em que
perde seu lugar de professora, por ser judia. Esta situação a põe novamente em
situação de busca. Intui que, talvez, tenha chegado já o momento de realizar
sua vocação ao Carmelo, porém não quer tomar uma decisão apressadamente. Além
de consultar seu confessor, põe em oração este seu intento. Em 30 de abril,
domingo do Bom Pastor, recebe o sim de Jesus (obras 199). Poucos dias antes,
teve uma experiência especial relacionada com o mistério da cruz; uma
experiência na qual recebe o conteúdo e sentido de sua vocação: “Eu falava
com o Salvador e lhe dizia que sabia que era sua cruz a que agora tinha sido
posta sobre o povo judeu. A maioria não o compreendia, porém, aqueles que o
sabiam, deveriam carregá-la livremente sobre si, em nome de todos. Eu queria
fazer isso. Ele devia unicamente mostrar-me como. Ao terminar a celebração tive
a certeza interior de que havia sido escutada. Porém, onde tinha que carregar a
cruz, isso eu ainda não sabia” (Ib. 195-196)
Descobrimos,
nesta experiência, um conteúdo novo de sua vocação à cruz, em continuidade com
tudo o quanto a cruz de Cristo significa: redenção e solidariedade.
Destas
três experiências chaves na vida de Edith Stein, deduz-se claramente que o
sentido da cruz como sofrimento nunca está no primeiro plano, mesmo que esteja
presente. Isso não quer dizer que o caminho da cruz seja um caminho fácil.
Todavia, centrando a atenção em seu conteúdo essencial, evita-se cair no perigo
de centrar o valor da cruz no sacrifício e mortificação que a mesma comporta. A
cruz não é simplesmente a dor ou o sofrimento ou aquilo que é difícil, mas o que
dá valor a todas essas realidades: ” aquele que põe
a cruz sabe como fazer a carga doce e leve” (Cartas 324).
Esta
dinâmica é observada claramente na vivência que Edith Stein faz, no Carmelo, de
sua vocação pessoal de levar a cruz. Não se entrega sem mais à
ascese e à mortificação. Ela sabe que sua vocação à cruz é experimentada na
medida em que vai vivendo: “Uma ciência da cruz só pode ser adquirida se se
chega a experimentar a fundo a cruz” (Ib. 369). O sentido que ela dá a seu
caminho de cruz é o da intercessão e oblação, do
acolher com alegria os pequenos sacrifícios de cada dia, e os
grandes acontecimentos dolorosos que as situações lhe proporcionam, como a
perseguição de seu povo judeu ou o ter que mudar de convento.
O
sentido ultimo de sua vocação à cruz ela o descreve em sua disposição
total a entregar a própria vida. Só quem está disposto a oferecer sua
vida pode chegar à configuração com o crucificado. A partir desta união
com Cristo sua vocação alcança valor supremo, porque participa do
valor eterno da cruz de Cristo. Daqui ela se preparou para acolher a morte como
oblação, como sacrifício expiatório. Entregou sua vida pela salvação dos seus.
Aqui, alcançou o sumo grau de configuração com Cristo. Assim escreveu em seu
testamento: “A partir desde momento, aceito, com
alegria e com perfeita submissão, a sua vontade santa, a morte que Deus me tem
reservado. Peço ao Senhor que se digne aceitar minha vida e minha morte para
sua honra e sua glória: por todas as intenções dos Sagrados Corações de Jesus e
de Maria e pela Santa Igreja, de modo especial pela manutenção, santificação e
perfeição de nossa Santa Ordem, particularmente os Carmelos de Colônia e Echt;
em expiação pela incredulidade do povo judeu e para que o Senhor seja acolhido
pelos seus, e venha seu Reino, na Glória; pela salvação da Alemanha e ela paz
no mundo; finalmente, por meus familiares, vivos e defuntos, e por todos os que
Deus me deu: que nenhum deles se perca” (Obras, 217)
Nestas
experiências do mistério da cruz, vislumbramos o quanto Edith Stein descobre
como seguimento da Cruz. Com certeza não é muito, porém temos uma visão do mais
importante e essencial. A falta de notícias que temos de sua vida interior é
compensada pelo que descobrimos em seus escritos, nos quais encontramos reflexões
profundas sobre o mistério da cruz de Cristo. De fato, em um dos seus escritos,Amor
pela cruz, no qual reflete sobre o valor expiatório da cruz, está
confessando e definindo sua própria vivência quando escreve: “Só pode aspirar à expiação quem tem abertos os olhos do
espírito ao sentido sobrenatural dos acontecimentos do mundo; isto só é
possível em homens nos quais habita o Espírito de Cristo, e que, como membros
da Cabeça, encontram nele a vida, a força, o sentido e a direção. Por outro
lado, a expiação une a pessoa mais intimamente a Cristo” (Ib.
259)
Este
simples parágrafo, depois de termos adentrado em sua experiência, nos oferece
algo mais sobre sua vivência do mistério da cruz. Ela a acolhe nos sinais dos
tempos, não por própria iniciativa, mas como dom/chamado do Espírito a
colaborar com Cristo em sua obra de redenção. A expiação, a disposição para
unir-se a Cristo, é dom de Deus em favor de sua Igreja.
A
experiência da cruz como mistério do abandono
Contemplar
o Crucificado, em seu abandono extremo, nos ajuda a compreender as profundas
exigências que o seguimento de cruz comporta: um seguimento que nunca poderá
ser levado a termo sem o auxílio da graça divina, e que só é possível na medida
em que se tem amadurecido espiritualmente neste caminho.
A
cruz, como “símbolo da Paixão e Morte de Cristo, e de
tudo o que, com estas, guarda relação como sua causa e chave de explicação”
(CC 316), encerra em si o mistério do abandono em e de Deus, por isso, ela se
constitui como “o símbolo da fé e o distintivo dos
crentes” (Obras 235). A cruz de Cristo é o modelo da entrega
total nas mãos de Deus. Por isso, o primeiro passo que se deve dar consistirá
em descobrir em que sentido a vivência de Cristo se manifesta como abandono.
Para Edith Stein, como para São João da Cruz, a cruz se configura como o
abandono extremo, como a prova mais terrível pela qual teve que passar Cristo:
o sentimento de sentir-se completamente só, abandonado por Deus: “Que angústia humana, por mais dolorosa que seja, poderá
ser comparada à da Paixão de Cristo, quem durante toda a sua vida gozou da
visão beatífica, até que por própria e livre decisão privou-se deste gozo na
noite do Getsemani?… Só a Ele foi reservado o sentir, em toda sua
profundidade, o abandono divino; e somente ele pôde padecê-lo, por ser Deus e
homem ao mesmo tempo” (CC 317)
A
cruz é o instrumento da redenção, e esta experiência do abandono vai
profundamente unida a ela. É um mistério que permanece na obscuridade, e que só
pode ser acolhida a partir da fé, já que ela “apresenta,
diante dos olhos, Cristo: pobre, humilhado, crucificado e, na mesma cruz,
abandonado por seu Pai” (Ib. 148). Supõe um “entregar-se
livremente” (Obras, 248) para se por totalmente em suas mãos, para
unir-se com Ele. Em virtude dessa união adquire sentido o abandono como meio e
como prova de fidelidade. É precisamente na união alcançada, onde se chega a
perceber o valor da cruz de Cristo: “Quando ela
conhece que foi precisamente na cruz que Cristo, em sua maior humilhação e
aniquilamento realizou sua maior proeza, a Redenção e a união do homem com
Deus, é que desperta o pensamento de que também o seu aniquilamento,… a leva à
união com Deus. (CC 148)
O
modelo permanece sempre Cristo. E só através dele, como dom privilegiado de seu
amor, esta experiência pode chegar a ser compartilhada: “Nenhum
coração humano penetrou jamais numa noite tão escura como o Verbo Encarnado, no
Getsemani no Gólgota. Nenhum espírito humano poderá, por muito que investigue,
penetrar no segredo do abandono divino de Cristo moribundo. Porém, Jesus pode
dar a experimentar a almas escolhidas um pouco desta extrema amargura. A seus
mais fiéis amigos Ele exige a suprema prova de amor” (Ib. 36)
O
abandono é a prova suprema do amor , e que, em sua compreensão, permanece um
mistério, porém um mistério que é fonte de salvação.
A
mística do seguimento da Cruz
Cristo
é o caminho ao Pai, por isso, Ele é o ponto de partida do caminho do homem. Sua
cruz, elemento essencial de sua missão, é a porta que abriu esse caminho. A
cruz, o seguimento da cruz, é só meio para alcançar o fim supremo, o caminho à
glória, ao seio da Trindade. E a única razão de tudo isso “é
que a morte de cruz é o meio de salvação escolhido pela infinita sabedoria” (CC
20)
A
partir desta perspectiva, o seguimento de cruz implica necessariamente a
imitação de Cristo, mas uma imitação que encerra em si valores que vão muito
mais além de uma simples repetição. Em primeiro lugar, descobrimos que Deus
convida todos a seguir este caminho da cruz, como caminho de santidade. Por esta
razão, o “ser companheiros de Cristo” no caminho da cruz, mais que uma
exigência é uma necessidade para alcançar a união com Ele, e dom, graças ao
qual todo homem pode morrer e ressuscitar com Cristo, ou seja, fazer da própria
vida uma continuação e participação da Paixão de Cristo: “Cristo ofereceu sua vida para abrir aos homens as portas
da vida eterna. Mas, para ganhar esta vida eterna, é preciso renunciar à vida
terrena. É necessário morrer com Cristo e com Ele ressuscitar; morrer com a
morte do sofrimento que dura toda a vida, com a negação diária de si mesmo e,
se vir a calhar, com a morte sangrenta do martírio pelo Evangelho”
(CC 16).
Deste
modo, podemos concluir que o caminho que conduz o homem a Deus passa,
necessariamente, pela cruz, pela morte, para alcançar a glória da ressurreição.
Como este seguimento se dá na prática, veremos em seguida.
Carregar
a própria cruz
O
crucificado nos indica o caminho para a união perfeita com Deus. A cruz é o
caminho à glória da ressurreição. Não é um momento na vida, mas implica uma
continuidade e unidade com tudo o que é a vida do ser humano. O mistério da
cruz, mesmo sendo algo incompreensível em sua totalidade, não deixa de ter seu
aspecto concreto na vida do homem. Não é algo que alguém deve andar buscando. A
realidade mesma, o momento histórico, a própria limitação e debilidade, são
mensagens contínuas da cruz. Uma cruz que deve ser acolhida e vivida.
Encarnação e cruz seguem unidos na vida do homem. Estar presente na própria
realidade e na realidade do mundo, com sentido de fé, é assumir na própria vida
o conteúdo dos mistérios de Cristo: “A cruz nos
recorda, de um lado, o fruto da morte de Cristo, a Redenção. Porém, não
esqueçamos que, em íntima relação com a Redenção, temos a Encarnação como
condição prévia para a Paixão e Morte redentoras, e o pecado, como causa ou
motivo de ambas” (CC 316)
O
caminho da cruz implica, pois, a encarnação, o tornar-se presente na história,
na cultura, na vida da comunidade, em tudo aquilo que constitui o ambiente do
indivíduo: “na terra, percorrer os sujos e ásperos
caminhos desta terra, (…) com os filhos deste mundo, rir e chorar”
(Obras, 260). É aí onde começa o caminho da Cruz: “… ,
a cruz é símbolo de tudo o que é difícil e pesado, e que torna-se tão oposto à
natureza que, quando uma pessoa toma esta carga sobre si, tem a sensação de
caminhar em direção à morte. E esta é a carga que o discípulo de Cristo há de
levar diariamente” (CC 15).
A
cruz é uma carga que ajuda progressivamente a desprender-se de si mesmo para
deixar espaço a Cristo; um caminho de renúncia e penitência. Porém, em que
consiste esta carga, este caminho de renúncia? De um modo geral, seriam “todas
as cargas e sofrimentos da vida” (Ib. 30). Concretamente, em Edith
Stein, descobrimos as seguintes cruzes, mesmo que hajam outras mais:
- a
natureza corrompida: assim a compreende nossa autora: “Como
se pode compreender isto? O peso da cruz, que Cristo carregou, é a corrupção da
natureza humana decaída. Subtrair do mundo essa carga, esse é o sentido último
da Via crucis. O regresso
da humanidade libertada ao coração do Pai celeste e ao estado de filhos
adotivos é um dom gratuito da graça, do amor onimisericordioso” (Obras,
258).
- os
sacrifícios diários: “Os sacrifícios
diários, pequenos e grandes, que lhe são pedidos, já não serão cargas aceitas forçosamente,
esmagantes, mas verdadeiro sacrifício aceito, livre e alegremente, através do
qual, como membro compassivo do corpo místico de Cristo, contribuis na
obra da redenção… Sempre alguém poderá se elevar nos pensamentos ao poder
invisível e secretamente ativo do sacrifício da redenção, ao qual poderá unir
todas as dores e sofrimentos, inclusive as próprias debilidades e impotências
(ESW V, suplemento)”. Aqui se inclui a própria enfermidade como cruz que
deve ser assumida na vida, e, de igual modo, as dificuldades ou problemas que
podem que surgem na convivência com os demais.
- a
situação histórica: “A visão do
mundo em que vivemos, as necessidades, a miséria e o abismo da maldade humana
servem para atenuar sempre e de novo o gozo da vitória da luz. A humanidade
ainda luta ainda no barro e ainda é pequeno o rebanho que conseguiu pôr-se a
salvo nos mais altos cimos do monte. A batalha entre o Cristo e o Anticristo
ainda não foi dirimida. Nesta batalha, os seguidores de Cristo têm o seu lugar.
E sua arma principal é a cruz” (Obras 257-258).
- a
cruz pessoal: que consiste em assumir as próprias dificuldades vividas em
comunhão com o Crucificado: “A carga terrena
não lhes foi tirada, e, inclusive, algo mais lhes foi acrescido,
porém o que em si continha era uma força alentadora que tornava o jugo suave e
a carga leve. O mesmo acontece hoje com todo filho de Deus. A vida divina que é
acesa na alma é a luz que surge nas trevas, o milagre do Natal. O que a leva
consigo compreende o que se diz dela. Para os outros, apesar disso, tudo o que
se diz dela é um balbucio ininteligível”. (Ib. 382)
- a
cruz do próximo: assim escreve numa carta a uma amiga religiosa: “Tem sua cruz como todos nós, porém tem dado seus frutos;
ela sabe disso, e gostaria de não fatigar-se. Também temos que aprender isto,
querida irmã: ver os outros a levar sua cruz e não podermos retirá-la. Isto é
mais difícil que levar a própria cruz” (Carta 62). - também tudo aquilo que se define dentro da categoria de “cruzes
espirituais“, como “secura, inapetência fadiga” (CC 148).
Esses
momentos e situações englobam toda a vida e fazem do seguimento da cruz um
caminho concreto ao qual todo cristão é chamado, empenhando-se cotidianamente a
unir a própria vida à do Redentor da humanidade.
Caminho
de redenção e apostolado
A
vivência da cruz tem sua razão última de ser no conteúdo do Mistério Pascal: a
redenção do gênero humano. É o sentido e o fruto de todo caminho de união com
Deus. Se se perde isto de vista, perde-se a razão de ser da obra
salvífica de Cristo: a cruz seria um símbolo vazio e estéril. A obra de Cristo
na cruz é uma obra de expiação e redenção: liberta o homem do pecado e o conduz
de novo ao estado original de filho de Deus.
“Jesus Cristo, por sua paixão e morte, expiou os pecados de todos
os homens, e desta maneira satisfez a vontade divina… Porém, como compreender
que esta ação possa justificar os homens, libertá-los de sua falta? … Se o
pecador penetra as intenções de Deus e faz seus os sentimentos divinos
(expressados humanamente), então Deus pode acolher em Cristo cada pecador
arrependido e aceitar a expiação de Cristo por todos os pecados… Sem Cristo não
poderíamos voltar a Deus… Tornamo-nos, pela justificação, filhos de Deus, tal
como os homens eram antes da queda” (SFSE 536-538)
Cristo
se faz homem para ser nosso caminho até Deus, e permanece presente em sua
Igreja para que todos os seus membros continuem a obra iniciada por Ele: a
instauração do Reino de Deus. A configuração com Cristo Redentor nos torna
capazes de participar do conteúdo de sua obra: “Nossos
pecados foram destruídos pelo fogo, na paixão e morte de Cristo. Quando cremos
nisto e nos unimos a Cristo, guiados pela fé, abraçando o seu seguimento,
Cristo nos vai levando através de sua Paixão e de sua Cruz, à glória da Ressurreição”
(CC 230)
O
caminho de configuração com Cristo começa pela expiação do próprio
pecado. O seguidor de Cristo sabe que só com a cruz pode libertar-se, pois
a cruz é a “vitória sobre o pecado”. É a “arma” necessária na luta contra o mal
e, em definitivo, a “fonte de salvação”.
“O manancial do coração do cordeiro não secou. Ainda hoje,
podemos ali lavar nossas vestes como fez um dia um dos ladrões no Gólgota.
Confiados na força reparadora deste sagrado manancial, nos prostramos ante o
trono do Cordeiro e respondemos a sua pergunta: “Senhor, para onde iremos? Só
tu tens palavras de vida eterna (Jo 6,68). Deixa-nos extrair a água das fontes
da salvação para nós e para todo o mundo sedento” (Obras 233).
Todavia,
a cruz se caracteriza, antes de tudo, como o sinal do amor de Deus para com a
humanidade. Por isso, quem se une à cruz encontra nela força necessária para
amar o próximo: “Todas estas manifestações do amor ao
próximo têm sua raiz no amor de Deus e do Crucificado” (CC 370)
A
expiação do pecado incita ao apostolado, faz sentir como própria a missão de
libertar o mundo da carga do pecado: “Qualquer um que
ao longo da vida tenha aceito um duro destino, em memória do Salvador
padecente, ou tenha assumido sobre si a expiação do pecado, expiou, em parte, o
imenso peso da culpa da humanidade e ajudou com isso ao Senhor a levar esta
carga; ou melhor dito, é Cristo-Cabeça quem expia o pecado nestes membros do
seu corpo místico que se põem à disposição de sua obra de redenção em corpo e
alma” (Obras 259).
Esta
força apostólica nasce da união com o Crucificado: “unida
a Ele és onipresente como Ele… No poder da cruz podes estar em todas as
frentes… a toda parte te levará o teu amor misericordioso, o amor do coração
divino” (Ib. 224). Também está ligada intimamente ao sentido que
a cruz tem como redenção, enquanto via de recuperação da amizade com Deus. Pela
cruz recuperamos o estado de filiação divina: “Assim
como o ser um com Cristo é a nossa beatitude, e o aperfeiçoar-se a ser um com
Ele é nossa felicidade aqui na terra, assim o amor pela cruz e a gozosa
filiação divina não são contraditórias. Ajudar Cristo a carregar a Cruz é causa
de uma pura e forte alegria, e aqueles que o fazem, os construtores do Reino de
Deus, são os autênticos filhos de Deus” (Ib. 260)
Só
resta acrescentar uma palavra: a união com o Cristo implica necessariamente
entrar na dinâmica da expiação e da redenção, não só pessoal, mas aberta a toda
a humanidade. Numa de suas conferências lemos: “No
fundo não há nenhuma separação entre a própria santificação e o apostolado.
Quem busca a perfeição segundo a vontade de Deus, este não é buscado não para
si, mas para os demais” (ESW XII, 108). Só a partir da dimensão
apostólico-universal se explica a obra de salvação realizada por Cristo: “Desta forma se encontram indissoluvelmente unidos a
própria perfeição, a união com Deus, o trabalho para que o próximo alcance a
união com Deus e a perfeição. E o caminho para tudo isso é a cruz. E a pregação
da cruz seria vã se não fosse a expressão de uma vida unida a Cristo
crucificado” (CC 354).
Um
caminho que deve estar sempre animado pela certeza da vitória já realizada em
Cristo: no sinal da cruz venceremos… se os frutos forem vistos ou não.
O
gozo da cruz: spes única.
O
seguimento de Cristo se consome na comunhão com o mistério que realiza a
redenção: o mistério da cruz. Colaborar com Cristo significa aderir por
completo a seu caminho, sua vida, seus mistérios. Por outro lado, a cruz de
Cristo é que ilumina e dá sentido ao sofrimento humano, e o sinal que torna
possível que – por mais contraditório que seja à razão humana -, o sofrimento
seja fonte de alegria.
A
vocação à cruz é central na vida de Edith Stein. Ela a acolheu como caminho de
união a Cristo e caminho de redenção e intercessão. Edith ofereceu sua vida e
foi recompensada com o martírio. Ela nos apresenta o ponto de partida do
seguimento gozoso da cruz nesta ideia: “O amor de
cristo as empurra a penetrar na noite mais profunda. E nenhuma alegria maternal
se pode comparar com a felicidade da alma capaz de acender a luz da graça na
noite do pecado. O caminho é a cruz. Sob a cruz, a Virgem das virgens se tornou
Mãe da Graça (ib.239)
O
caminho da cruz, que leva à união com Deus, é o caminho de todo cristão.
Ninguém que se considere autenticamente seguidor de Cristo pode rejeitá-lo. A
cruz é sinal de comunhão com Cristo, e desta comunhão é possível viver com
alegria o sofrimento, porque na cruz o mesmo adquire sentido, um sentido
redentor apostólico: “O sofrimento
humano só torna-se expiatório se é unido ao sofrimento da cabeça divina. Sofrer
e ser feliz no sofrimento, estar na terra, percorrer os sujos e ásperos
caminhos desta terra, e contudo, reinar com Cristo à direita do Pai; com os
filhos deste mundo rir e chorar, e com os coros dos anjos cantar
ininterruptamente louvores a Deus: esta é a vida do cristão até o dia em que
rompa o alvorecer da eternidade” (Ib. 260).
A
cruz é o sinal de contradição que dá sentido a tudo o que o homem naturalmente
rejeita. É a sabedoria do cristão que é capaz de carregar o fardo de cada dia
com alegria. É o melhor testemunho da redenção realizada por Cristo, de uma
vitória já ganha embora não concluída. O gozo da cruz é sinal de uma profunda
comunhão com Cristo e com a vontade do Pai: aí radica-se a fonte da autêntica
alegria cristã que nada nem ninguém pode arrebatar ou diminuir, já que nasce da
união com Deus. A vida de Edith Stein, sobretudo sua preparação e disposição
interna ao sacrifício total, é a melhor interpretação de tudo quanto ela nos
deixou escrito: “Assim como o ser um com Cristo é a nossa
beatitude, e o aperfeiçoar-se a ser um com Ele é nossa felicidade aqui na
terra, assim o amor pela cruz e a gozosa filiação divina não são
contraditórias. Ajudar Cristo a carregar a Cruz é causa de uma pura e forte
alegria, e aqueles que o fazem, os construtores do Reino de Deus, são os
autênticos filhos de Deus. A preferência pelo caminho da cruz não
significa que a Sexta-feira Santa não tenha sido superada e a obra da redenção
consumada(Ib.)”.
Tradução:
Província Carmelitana Pernambucana
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