"Jazia
no presépio Aquele que contém o mundo; era
uma criança que não sabia falar, aquele que era a Palavra. Aquele
que não cabe nos céus, era levado no seio de uma mulher. Esta
regia nosso Rei; era portadora daquele em quem somos; amamentava
aquele que é nosso Pão. A
Verdade que está no seio do Pai, nasce
da terra, para que estivesse também no seio da mãe. A
Verdade na qual está contido o mundo, nasceu
da terra, para que fosse carregada pelas mãos de uma mulher. A
Verdade com a qual é alimentada incorruptivelmente a beatitude dos anjos,
nasceu da terra, para que fosse amamentada por seios de carne.
Aquele
que no seio do Pai precedeu todos os espaços dos séculos, é
o mesmo que nascendo de uma mãe entra hoje no correr dos anos. É
feito homem o autor do homem, para
ser alimentado no peito o que governa os astros; para
que o Pão tivesse fome, para
que a Fonte tivesse sede, para
que a Luz dormisse, para
que o Caminho se cansasse ao caminhar…"
(Santo
Agostinho, Sermões 185 e 191).
EVANGELHO
– Jo 1,1-18
No princípio era o Verbo
e o Verbo estava com Deus
e o Verbo era Deus.
No princípio, Ele estava com Deus.
Tudo se fez por meio d’Ele
e sem Ele nada foi feito.
N’Ele estava a vida
e a vida era a luz dos homens.
A luz brilha nas trevas
e as trevas não a receberam.
Apareceu um homem enviado por Deus,
chamado João.
Veio como testemunha,
para dar testemunho da luz,
a fim de que todos acreditassem por
meio dele.
Ele não era a luz,
Mas veio para dar testemunho da luz.
O Verbo era a luz verdadeira,
que, vindo ao mundo, ilumina todo o
homem.
Estava no mundo
e o mundo, que foi feito por Ele,
não O conheceu.
Veio para o que era seu
e os seus não O receberam.
Mas, àqueles que O receberam e
acreditaram no seu nome,
deu-lhes o poder de se tornarem
filhos de Deus.
Estes não nasceram do sangue,
nem da vontade da carne, nem da
vontade do homem,
mas de Deus.
E o Verbo fez-Se carne e habitou
entre nós.
Nós vimos a sua glória,
glória que Lhe vem do Pai como Filho
Unigênito,
cheio de graça e de verdade.
João dá testemunho d’Ele,
exclamando:
«Era deste que eu dizia:
‘O que vem depois de mim passou à
minha frente,
porque existia antes de mim’».
Na verdade, foi da sua plenitude que
todos nós recebemos
graça sobre graça.
Porque, se a Lei foi dada por meio
de Moisés,
a graça e a verdade vieram por meio
de Jesus Cristo.
A Deus, nunca ninguém O viu.
O Filho Unigênito, que está no seio
do Pai,
é que O deu a conhecer.
A
Igreja primitiva recorreu, com frequência, a hinos para celebrar, expressar e
anunciar a sua fé. O prólogo ao Evangelho segundo João (que hoje nos é
proposto) é um desses hinos.
O
prólogo ao Quarto Evangelho começa com a expressão “no princípio”: dessa forma,
João enlaça o seu Evangelho com o relato da criação (cf. Gn 1,1),
oferecendo-nos assim, desde logo, uma chave de interpretação para o seu escrito…
Aquilo que ele vai narrar sobre Jesus está em relação com a obra criadora de
Deus: em Jesus vai acontecer a definitiva intervenção criadora de Deus no
sentido de dar vida ao homem e ao mundo… A atividade de Jesus, enviado do Pai,
consiste em fazer nascer um homem novo; a sua ação coroa a obra criadora
iniciada por Deus “no princípio”.
João
apresenta, logo a seguir, a “Palavra” (“Lógos”). A “Palavra” é – de acordo com
o autor do Quarto Evangelho – uma realidade anterior ao céu e à terra,
implicada já na primeira criação. Esta “Palavra” apresenta-se com as
características que o “Livro dos Provérbios” atribuía à “sabedoria”:
pré-existência (cf. Prov 8,22-24) e colaboração com Deus na obra da criação
(cf. Prov 8,24-30). No entanto, essa “Palavra” não só estava junto de Deus e
colaborava com Deus, mas “era Deus”. Identifica-se totalmente com Deus, com o
ser de Deus, com a obra criadora de Deus. É como que o projeto íntimo de Deus,
que se expressa e se comunica como “Palavra”. Deus faz-Se inteligível através
da “Palavra”. Essa “Palavra” é geradora de vida para o homem e para o mundo,
concretizando o projeto de Deus.
Essa
“Palavra” veio ao encontro dos homens e fez-se “carne” (pessoa). João
identifica claramente a “Palavra” com Jesus, o “Filho único cheio de amor e de
verdade”, que veio ao encontro do homem. Nessa pessoa (Jesus), podemos
contemplar o projeto ideal de homem, o homem que nos é proposto como modelo, a
meta final da criação de Deus.
Essa
“Palavra” “montou a sua tenda no meio de nós”. O verbo “skênéô” (“montar a
tenda”) aqui utilizado alude à “tenda do encontro” que, na caminhada pelo
deserto, os israelitas montavam no meio ou ao lado do acampamento e que era o
local onde Deus residia no meio do seu Povo (cf. Ex 27,21; 28,43; 29,4…).
Agora, a “tenda de Deus”, o local onde Ele habita no meio dos homens, é o
Homem/Jesus. Quem quiser encontrar Deus e receber d’Ele vida em plenitude
(“salvação”), é para Jesus que se tem de voltar.
A
função dessa “Palavra” está ligada ao binômio “vida/luz”: comunicar ao homem a
vida em plenitude; ou, por outras palavras, trata-se de acender a luz que
ilumina o caminho do homem, possibilitando-lhe encontrar a vida verdadeira, a
vida plena.
Jesus
Cristo vai, no entanto, deparar-se com a oposição à “vida/luz” que Ele traz. Ao
longo do Evangelho, João irá contando essa história do confronto da “vida/luz”
com o sistema injusto e opressor que pretende manter os homens prisioneiros do
egoísmo e do pecado (e que João identifica com a Lei. Os dirigentes judeus que
enfrentam Jesus e o condenam à morte são o rosto visível dessa Lei). Recusar a
“vida/luz” significa preferir continuar a caminhar nas trevas (que se
identificam com a mentira, a escravidão, a opressão), independentemente de
Deus; significa recusar chegar a ser homem pleno, livre, criação acabada e
elevada à sua máxima potencialidade.
Mas
o acolhimento da “Palavra” implica a participação na vida de Deus. João diz
mesmo que acolher a “Palavra” significa tornar-se “filho de Deus”. Começa, para
quem acolhe a “Palavra”/Jesus, uma nova relação entre o homem e Deus, aqui
expressa em termos de filiação: Deus dá vida em plenitude ao homem,
oferecendo-lhe, assim, uma qualidade de vida que potencia o seu ser e lhe
permite crescer até à dimensão do homem novo, do homem acabado e perfeito. Isto
é uma “nova criação”, um novo nascimento, que não provém da carne e do sangue,
mas sim de Deus.
A
encarnação de Jesus significa, portanto, que Deus oferece à humanidade a vida
em plenitude. Sempre existiu no homem o anseio da vida plena, conforme o
projeto original de Deus; mas, na prática, esse anseio fica, muitas vezes,
frustrado pelo domínio que o egoísmo, a injustiça, a mentira (o pecado) exercem
sobre o homem. Toda a obra de Jesus consistirá em capacitar o homem para a vida
nova, para a vida plena, a fim de que Ele possa realizar em si mesmo o projeto
de Deus: a semelhança com o Pai.
Na
reflexão, considerar as seguintes linhas:
•
A transformação da “Palavra” em “carne” (em Menino do presépio de Belém) é a
espantosa aventura de um Deus que ama até ao inimaginável e que, por amor,
aceita revestir-Se da nossa fragilidade, a fim de nos dar vida em plenitude.
Neste dia, somos convidados a contemplar, numa atitude de serena adoração, esse
incrível passo de Deus, expressão extrema de um amor sem limites.
•
Acolher a “Palavra” é deixar que Jesus nos transforme, nos dê a vida plena, a
fim de nos tornarmos, verdadeiramente, “filhos de Deus”. O presépio que hoje
contemplamos é, apenas, um quadro bonito e terno ou uma interpelação a acolher
a “Palavra”, de forma a crescermos até à dimensão do homem novo?
•
Hoje, como ontem, a “Palavra” continua a confrontar-se com os sistemas
geradores de morte e a procurar eliminar, na origem, tudo o que rouba a vida e
a felicidade do homem. Sensíveis à “Palavra”, embarcados na mesma aventura de
Jesus – a “Palavra” viva de Deus – como nos situamos diante de tudo aquilo que
rouba a vida do homem? Podemos pactuar com a mentira, o oportunismo, a
violência, a exploração dos pobres, a miséria, as limitações aos direitos e à
dignidade do homem?
•
Jesus (esse Menino do presépio) é para nós a “Palavra” suprema que dá sentido à
nossa vida, ou deixamos que outras “palavras” nos condicionem e nos induzam a
procurar a felicidade em caminhos de egoísmo, de alienação, de comodismo, de
pecado? Quais são essas “palavras” que às vezes nos seduzem e nos afastam da
“Palavra” eterna de Deus que ecoa no Evangelho que Jesus veio propor?
Nenhum comentário:
Postar um comentário
DEIXE AQUI SEU SUA SUGESTÃO