Trata como se hão de descuidar
das necessidades corporais, e do bem que há na pobreza.
Santa Teresa de Jesus
Caminho de Perfeição
1. Não penseis, minhas irmãs, que, por não andar a contentar os do
mundo, vos há de faltar de comer; isto vos asseguro. Jamais, por artifícios
humanos, pretendais sustentar-vos, porque morrereis de fome, e com razão. Ponde
os olhos em vosso Esposo; Ele vos há de sustentar. Contente Ele, ainda que o
não queiram, dar-vos-ão de comer os vossos menos devotos, como tendes visto por
experiência. Se, fazendo vós isto, morrerdes de fome, bem-aventuradas as freiras
de S. José. Não vos esqueçais disto, por amor do Senhor. Já que deixais as
rendas, deixai os cuidados da comida; se não, tudo vai perdido. Aqueles que o
Senhor quer que a tenham, em boa hora tenham esses cuidados, que é de muita
razão, pois é a sua vocação; mas em nós, Irmãs, é disparate.
2. Cuidado de rendas alheias, me
parece seria estar pensando no que os outros gozam. Sim; porque, com o vosso
cuidado, não muda ninguém o seu pensamento, nem lhe vem o desejo de dar esmola.
Deixai este cuidado a Quem os pode mover a todos, que Ele é o Senhor das rendas
e dos rendeiros. À Sua chamada viemos aqui; as Suas palavras são verdadeiras;
não podem faltar; antes faltarão os céus e a terra. Não Lhe faltemos nós, e não
haja medo de que Ele falte. Se alguma vez vos faltar, será para maior bem, tal
como faltava a vida aos Santos quando os matavam pelo Senhor, e era para lhes
aumentar a glória pelo martírio. Boa troca seria acabar depressa com tudo e ir
gozar da fartura imperdurável!
3. Olhai, irmãs, que isto importa
muito depois da minha morte; e, por isso, aqui vo-lo deixo escrito. Enquanto eu
viver, eu vo-lo recordarei, pois vejo, por experiência, o grande lucro que há
nisto. Quando menos há, mais descuidada estou, e o Senhor sabe que, segundo me
parece, dá-me mais pena quando sobra muito do que quando falta. Não sei se o
faz como já tenho visto; o Senhor logo no-lo dá. Outra coisa seria enganar o
mundo, fazendo-nos pobres não o sendo de espírito, mas somente no exterior.
Isto seria, para mim, um caso de consciência, a modo de dizer, e parecer-me-ia
serem ricas a pedir esmola. Praza a Deus que não seja assim; pois onde há estes
cuidados excessivos para que deem, uma vez ou outra irão pelo costume, ou poderiam
ir e pedir aquilo de que não precisam a quem talvez tenha mais necessidade.
Esses, nada podem perder com isso, senão ganhar; mas nós, sim perderíamos. Não
o queira Deus, minhas filhas; se isto houvesse de suceder, mais quisera eu que
tivésseis renda.
4. De nenhum modo se ocupe nisto
o vosso pensamento, eu vo-lo peço como esmola, por amor de Deus. E quando a menor
de entre vós, alguma vez verificasse isto nesta casa, clame a Sua Majestade e
lembre-o à Maior. Diga-lhe com humildade que vai errada e tanto, que, pouco a
pouco, se vai perdendo a verdadeira pobreza. Eu espero no Senhor que não será
assim e que Ele não abandonará as Suas servas. Para isso, ainda que para mais
não seja, sirva-vos isto que me mandastes escrever como um despertador.
5. E creiam, minhas filhas, que,
para vosso bem, deu-me o Senhor a entender um poucochinho dos bens que há na
santa pobreza e, as que o experimentarem, entendê-lo-ão; talvez não tanto como
eu, porque não só eu não tinha sido pobre de espírito, ainda que o tivesse
professado, mas sim louca de espírito, porque experimentei o contrário. É este
um bem que encerra em si todos os bens do mundo. É grande senhorio. Digo que é
um assenhorear-se de novo de todos os bens da terra para quem deles não faz
caso. Que me importam os reis e senhores, se não quero as suas rendas, nem os
pretendo mesmo contentar, se para isso se me atravessa por diante um tudo-nada
que seja o ter de descontentar nalguma coisa a Deus? Ou, que se me dá das suas
honras, se tenho entendido que, para um pobre, a maior honra está em ser verdadeiramente
pobre?
6. Tenho para mim, que honras e
dinheiro quase sempre andam juntos e, quem quer honras, não aborrece o dinheiro
e, quem o aborrece, pouco se lhe dá de honras. Entenda-se bem isto, pois me
parece que isto de honras sempre traz consigo algum interesse de rendas ou
dinheiro. É que, só por maravilha, é digno de honra no mundo o que é pobre;
antes, pelo contrário, ainda que de si a mereça, é tido em pouco. A verdadeira
pobreza traz consigo tal honra, que não há quem lhe resista. Digo a pobreza que
é abraçada só por Deus, pois que não precisa de contentar senão a Ele. E é
coisa muito certa, em não havendo necessidade de ninguém, ter muitos amigos. Eu
bem o tenho visto por experiência.
7. Porque há tanto escrito sobre esta virtude,
não sei porque falo dela, pois nem o saberei entender, quanto mais dizer;
assim, para não lhe fazer agravo, louvando-a eu, nada mais digo. Só tenho dito
o que sei por experiência, e confesso ter estado tão embebida nisto, que nem me
dei conta,até agora, do que escrevi. Mas, porque está dito, por amor do Senhor
vos peço: já que as nossas armas são a santa pobreza, e o que no princípio da
fundação da nossa Ordem era tão estimada e guardada pelos nossos Santos Padres
(que me disse quem o sabe que dum dia para o outro não guardavam nada), ainda
que no exterior não se guarde agora com tanta perfeição, procuremos tê-la no
interior. Duas horas temos de vida e grandíssimo é o prêmio; e mesmo que não
houvesse nenhum, a não ser o de cumprir o que nos aconselhou o Senhor, seria já
grande paga imitar em alguma coisa a Sua Majestade.
8. Estas armas hão de ter nossas
bandeiras, que, de todas as maneiras, queiramos guardar: na casa, no vestido,
nas palavras e muito mais no pensamento. E, quando isto fizerem, não tenham medo
que decaia a religião desta casa com o favor de Deus; pois, como dizia Santa
Clara, grandes muros são os da pobreza. Destes, dizia ela, e da humildade,
queria cercar os seus conventos; e, certo é que, se isto se guarda de verdade,
a honestidade e tudo o mais estará muito melhor fortalecido do que em
sumptuosos edifícios. Destes, guardem-se, por amor de Deus; eu vo-lo peço pelo
Seu sangue; e, se em consciência o posso dizer, digo: que, no dia em que tal
fizerem, voltem a cair.
9. Muito mal parece, filhas minhas,
que da fazenda dos pobrezinhos se façam grandes casas. Não o permita Deus, mas
pobres em tudo e pequenas. Pareçamo-nos em alguma coisa ao nosso Rei, que não
teve casa, a não ser o presépio de Belém, onde nasceu, e a cruz onde morreu. Casas
eram estas em que se podia ter pouca recreação. Os que as fazem grandes, lá se avenham;
têm outras intenções santas. Mas, a treze pobrezitas, qualquer canto lhes
basta. Se tiverem campo, porque é necessário pelo muito encerramento (e até
ajuda à oração e devoção), com algumas ermidas para se apartarem a orar, tanto
melhor. Mas, edifícios e casa grande e curiosa, nada! Deus nos livre!
Lembrai-vos sempre que há de cair tudo no dia do juízo; e sabemos se será em
breve?
10. Que faça muito ruído ao
desmoronar-se a casa de treze pobrezitas, não é bem, pois os verdadeiros pobres
não hão de fazer ruído; gente sem ruído hão de ser, para que deles tenham pena.
E, como se alegrarão, se virem alguém, pela esmola que lhes tiver feito,
livrar-se do inferno; tudo é possível, porque estais muito obrigadas a rogar
muito continuamente por suas almas, pois vos dão de comer.' E o Senhor também
quer, embora venha da Sua parte, que agradeçamos às pessoas, por cujo meio Ele
no-lo dá. Nisto não haja descuido.
11. Não sei o que tinha começado a dizer, pois me distraí. Creio que o Senhor assim quis, porque nunca pensei escrever o que disse Sua Majestade nos tenha sempre de Sua mão para não decairmos disto, amém.
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