«…
não se deixarão convencer, se alguém ressuscitar dos mortos»
Pe. Tarcízio Morais, sdb
Uma
parábola. Dois mundos em contraste: um feito de riqueza e indiferença; o outro
feito de pobreza e sofrimento. Duas histórias de vida com fins distintos. E uma
pergunta que a todos deve questionar: depois do anúncio de Jesus, das suas
bem-aventuranças, da sua morte e ressurreição, também nós nos deixamos
convencer pela Sua mensagem e testemunho, ou continuamos a viver indiferentes ao
que nos rodeia? Que fazemos, afinal com os dons que recebemos de Deus? Escutar
a realidade do irmão que passa necessidade é a medida da nossa fé e afinal
aquilo que dá sentido à vida e garante uma realização feliz ou infeliz para
todo o sempre.
MEDITAÇÃO
«Naquele
tempo, disse Jesus aos fariseus: «Havia um homem rico, que se vestia de púrpura
e linho fino e se banqueteava esplendidamente todos os dias. Um pobre, chamado
Lázaro, jazia junto do seu portão, coberto de chagas.»
Os
destinatários primeiros desta parábola são os fariseus que está apenas presente
em Lucas. Dois mundos, duas realidades antagônicas, duas vidas em paralelo, sem
se encontrarem nunca. Um rico e um pobre. Um veste púrpura e linho fino,
banqueteando-se com as melhores iguarias. O outro, coberto de chagas, de nome
Lázaro, nome derivado do hebraico que significa “Deus ajuda”. Na sua pobreza, a
bem-aventurança; na sua riqueza, a perdição eterna.
A
uma riqueza sem nome, corresponde a pobreza com nome próprio. A Lázaro
tocou-lhe a pior parte desta vida: mendigo de existência, como tantos milhares
de seres humanos hoje, está prostrado à porta da casa do rico sem nome. Coberto
das chagas da indiferença, do esquecimento de todos, vive já sem viver em si.
Com a pobreza de bem-aventurado. Com o sofrimento e a tristeza que lhe darão a
vida inteira. Lázaro, “Deus ajuda”, parece aqui esquecido por Deus e esquecido
por todos. Como também nós queremos esquecer as mil necessidades de quem passa
à nossa porta, ou nos entra pelos media, porta dentro, em nossa casa. Se o
pecado maior que podemos admitir é a indiferença, muito há a perdoar. De muito
nos temos que arrepender. Basta pensar: que fazes quando te dás, cara-a-cara,
com um pobre miserável?
«Bem
desejava saciar-se do que caía da mesa do rico, mas até os cães vinham
lamber-lhe as chagas. Ora sucedeu que o pobre morreu e foi colocado pelos Anjos
ao lado de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado. Na mansão dos mortos,
estando em tormentos, levantou os olhos e viu Abraão com Lázaro a seu lado.»
Nesta
primeira parte da parábola, percebemos a vida no âmbito terrestre dos dois
protagonistas. Bem desejava Lázaro, apenas, o que caía da mesa do rico. A cena
muda de forma drástica com a morte de ambos que, para o pobre, é início de uma
vida nova (no seio de Abraão, que significa a plenitude da vida no além da
morte) enquanto que para o rico é uma condenação lapidária (“foi sepultado) por
uma vida dissipada em coisas secundárias.
Esquecido,
abandonado, em tormento e sofrimento, muito pouco desejava. Contentava-se com
pouco, mas nem sequer as poucas migalhas lhe eram destinadas, quanto mais
participar do banquete. E é nos cães da rua (“animais impuros”) onde encontra
compaixão e atenção (uma imagem fortíssima e inquietante). Na hora da
eternidade, Lázaro participa de outro banquete de eternidade, ao contrário do
rico, condenado à mansão de tormentos, no inferno da distância de Deus. Quantas
vezes nos condenamos à distância de Deus, porque demasiado desatentos a tudo o
que nos rodeia? Esta é a parábola do nosso presente: enquanto muitos vivemos
numa casa cômoda, outros a esta hora, estão na rua, sem outra manta que uns
poucos cartões, sem outra luz que os candeeiros da rua. E tu, quê?
«Então
ergueu a voz e disse: ‘Pai Abraão, tem compaixão de mim. Envia Lázaro, para que
molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado
nestas chamas’. Abraão respondeu-lhe: ‘Filho, lembra-te que recebeste os teus
bens em vida e Lázaro apenas os males. Por isso, agora ele encontra-se aqui
consolado, enquanto tu és atormentado.»
Pensando
poder aproximar-se do novo banquete da abundância, o rico pede a intervenção de
Abraão. Parece ainda não consciente da sua realidade, fazendo ainda de Lázaro
seu servo. Invade-o uma sede que antes nunca sentira. Se um é consolado, o
outro é atormentado e esquecido. Agora a riqueza transformou-se em condenação e
a miséria em alegria. E Abraão recorda a história: recebeste os bens em vida,
Lázaro apenas males. Mais não seria de esperar… afinal sempre se confirma: “bem
aventurados os pobres, porque deles é o reino dos céus”.
Neste
rico, encontramos a nossa civilização opulenta, consagrada aos bens materiais.
Estamos ali personificados cada um de nós. O mundo da riqueza é
substancialmente um mundo auto-referencial, suficiente por si mesmo e para si
mesmo, fechado de forma hermética. A imagem do rico é a imagem de quem se sente
entusiasmado pelas coisas e as coisas que prendem. Impedem a solidariedade e a
entrega de si aos outros. É preciso colocar um “basta” na nossa cegueira, no
nosso viver, na nossa opção de vida fundamental. É preciso despertar para o
mundo que nos rodeia para que, descobrindo o verbo amar, vivamos construindo a
nossa morada na eternidade! Afinal quem preferes ser: rico… ou Lázaro?
«Além
disso, há entre nós e vós um grande abismo, de modo que se alguém quisesse
passar daqui para junto de vós, ou daí para junto de nós, não poderia fazê-lo’.
O rico insistiu: ‘Então te peço, ó pai, que mandes Lázaro à minha casa paterna
– pois tenho cinco irmãos – para que os previna, a fim de que não venham também
para este lugar de tormento’.»
O
clamor do rico é agora impossível. É dramática esta situação: depois de um
pouco de água, pede agora que envie Lázaro à sua casa para impedir que o seu
mundo permaneça como até ali; para que os seus irmãos despertem da sua cegueira
e da sua surdez, para que não tenham semelhante fim. Mas eis que o abismo que o
rico escavou com a sua indiferença, torna impossível tal reencontro. Por isso
esta parábola se dirige ao presente, aos cinco irmãos ainda em vida na
abundância. Ao nosso presente. O rico pensa que para mudar a vida dos seus
irmãos faz falta um milagre… e tu?
Deus,
diante do abismo da nossa indiferença, não sabe como conquistar-nos, como
amar-nos, como conduzir-nos a si. Deixemo-nos cativar, deixando-nos encher de
compaixão e abertura a quem precisa e a quem sofre. Que é que nos leva a não
poder ouvir, a sermos insensíveis à palavra e às situações dos outros? Esta
parábola quer despertar-nos da nossa apatia e de impassibilidade em que caímos,
chamando-nos à novidade da escuta da Palavra. Quem escuta a Palavra e a aceita
na sua vida, abre os olhos ao mundo. Quem escuta a Palavra, encontra caminhos de
conversão: e este é o verdadeiro milagre da vida. E todos os Lázaros desta
terra experimentarão a alegria da proximidade, da ajuda, do compromisso, no
amor de Deus, tornado amor experimentado, incondicionado e benevolente de cada
um de nós. Interpelados nós também, que resposta damos? Ou estamos ainda à
espera do milagre?
«Disse-lhe
Abraão: ‘Eles têm Moisés e os Profetas: que os ouçam’. Mas ele insistiu: ‘Não,
pai Abraão. Se algum dos mortos for ter com eles, arrepender-se-ão’.»
…Um
milagre: que um morto, viva de novo. Trata-se de um realismo cru de quem
conhece a dinâmica do dinheiro que fecha o coração humano à evidência da
palavra profética, à dor e ao sofrimento do pobre, à exigência de justiça, ao
amor e até à voz de Deus. Nem Moisés, nem os Profetas. É preciso um
arrependimento que venha de dentro. Um verdadeiro arrependimento, mudança,
transformação, escuta e novidade. Um milagre…
É
interessante (e subtil) a descrição de Lucas que coloca na boca do rico vestido
de púrpura, agora condenado, palavras de piedade e misericórdia “só” no momento
do seu “Sheol”, morada dos mortos. Mas agora é já demasiado tarde. Torna-se
nesta circunstância e ainda (de novo) magnânimo e preocupado com os seus
semelhantes, os seus cinco irmãos, esquecendo o princípio fundamental. Mais
ainda: o pobre Lázaro continua a ser protagonista da sua serventia. Ordena
agora a Abraão que o envie aos seus irmãos. Mas Abraão corta a direito, fazendo
apelo a Moisés e aos profetas. Não servem para nada as aparições miraculosas de
defuntos… “Se Deus viesse ter comigo e falasse comigo de viva voz”… “Se
houvesse um sinal concreto”… Que sinal precisamos ainda para a nossa conversão?
Se a profecia dos pobres e o seu grito não nos são suficientes, que mais
podemos esperar? Como é grande a nossa surdez e falta de fé…
«Abraão
respondeu-lhe: ‘Se não dão ouvidos a Moisés nem aos Profetas, também não se
deixarão convencer, se alguém ressuscitar dos mortos’».
A
escuta da mensagem de Deus e a implicação da própria vida nessa mensagem são os
motivos primeiros do seguimento dos cristãos. A escuta da Escritura é mais
importante, segundo o evangelista, que um visível milagre – uma leitura que se
dirige, certamente, aos cristãos da segunda geração que não gozam já das
aparições do ressuscitado, e também a nós que por vezes pensamos que um “fato
prodigioso” confirmaria a nossa fé vacilante.
Escutar
a realidade do irmão que passa necessidade é a medida para escutar a Deus. Deus
é supérfluo para quem não se comove perante a necessidade do próximo. Deus
habita no pobre, Deus habita nas chagas de quem sofre, diria Madre Teresa. Hoje
esta parábola questiona-nos profundamente: de que vale a minha oração, se estou
cheio de tudo? De que vale a minha união com Deus se não entro em relação com o
outro, com o pobre, com o necessitado de mim? De que vale o meu batismo se não
arrisco a partilhar a minha alegria, o meu ser de Cristo e do seu Evangelho?
Este texto convida-nos a voltarmos ao amor, à opção pelos pobres, à esperança
na justiça de Deus, à confiança na sua Palavra. Mas, sobretudo a reencontrarmos
a nossa vocação cristã à generosidade, à doação. A ressuscitarmos para uma vida
nova!
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