3 a
20 de setembro
Ícone
e reflexão feita pela Ir. Miriam Tamiano, O.Carm.
Ícone
de Maria, Mãe da Evangelização.
Cada ícone mariano carmelita recorda
e busca tornar visível a relação de Maria com o Filho. Desde o séc. IV se fixam
os tipos de imagem que refletem os principais aspectos da teologia mariana: o
aspecto teológico segundo o qual Maria é fundamentalmente a Theotokos, título
que indica seu papel na história da salvação, e o aspecto espiritual que evoca
seu papel de intercessora[1].
Neste ícone, Maria apresenta-se
também como Virgo Puríssima: sinal autêntico de estar cheia de graça é a sua
virgindade, a beleza de sua alma[2]. Ela indica
o caminho: Jesus, o Verbo de Deus, e neste gesto evangeliza. Como Mãe da
Evangelização, toca o íntimo do coração do homem com o ornamento incorruptível
dum espírito doce e sereno (1Pd 3,4); o verdadeiro ornamento do ser humano que
transparece através de toda a pessoa e resplandece no olhar expressa-se no
sorriso, reflete-se na gesticulação. A posição dos quatro santos é harmônica e
frontal; estão circundados, como Maria e Jesus, de um nimbo[3] luminoso definido por um contorno externo branco.
Neste ícone, encontramos
representados homens transfigurados: os santos. As imagens que conformam os
espaços, símbolo de uma presença luminosa, não estão, como de costume, postas
abaixo, aos pés de Maria, sob seu manto. As figuras inteiras se estendem
simetricamente nos quatro ângulos e estão situadas dentro de nichos extraídos
com um efeito de diferente brilhantura do ouro; o mesmo está presente ao redor
de Maria, irradiação de uma luminosa presença. A colocação de Santo Alberto de
Jerusalém, de Santa Teresa de Ávila, do Beato Tito Brandsma e de Santa Madalena
de Pazzi em torno de Maria está fora de um espaço e de um tempo preciso.
Podemos contemplar sua presença entre nós, aqui mesmo. Não são atemporais, mais
“trans-temporais”, ou seja, atravessam toda a história estando dentro de nosso
tempo.
Os contornos nítidos, irradiantes e
elevados, símbolo de verdade e transparência, estão sustentados por uma luz que
surge no fundo do ouro e parece projetar os santos dentro da realidade luminosa
na que Deus, sol de justiça, doa sua presença. Os perfis do Beato Tito e de
Santa Madalena apresentam-se leves e tocam apenas a base, enquanto Santo
Alberto e Santa Teresa estão quase suspensos, mesmo que a estilização que
transfigura o corpo humano o respeite sempre em sua concreção. Certa sobriedade
das figuras evidenciando de algum modo o impulso do homem para o eterno, como
chama silenciosa que resplandece no olhar, evidencia-se pelo deslizamento do
plano no qual se ressalta a figura de Maria, mas régia nas pregas das
vestiduras, que se tornam alteradas nos pontos de luz branca do manto. Em Maria
se conservam as cores próprias do hábito carmelita, se bem que na túnica e no
manto encontramos sugeridos, nas linhas de grafia e nas sombras, o azul e a
púrpura respectivamente, em fidelidade ao cânon que a tradição expressa para as
vestes da Hodighitria. A linguagem é simples e universal.
A figura humana, transfigurada e
estilizada, expressa a experiência de uma luz interior que atravessa também
fisicamente a pessoa. O homem iluminado, de seu rosto emana a luz [4].
Somente Santa Teresa fixa o olhar na
Mãe de Deus; os outros olhares se dirigem em direção ao observador, o orante, a
nós. O ícone permite o encontro dos olhares em outros níveis. Já não somos nós
que observamos a imagem, mas, como frente a qualquer outro ícone, podemos
experimentar que também somos observados. Seus olhos fixam-se em nós; porém,
diferentemente de outros quadros nos quais as pupilas seguem todos os
movimentos do ambiente em que estão colocados, no ícone o olhar deixa-nos
sempre livres para voltar a olhá-lo e responder àquele olhar dirigido ao
observador. O ícone nos obriga a voltar a observar. Eles estão presentes aqui,
diante de nós, e não em qualquer parte no espaço, senão frontalmente.
As silhuetas dos carmelitas são
sombrias na estilização da capa, e as vestes possuem relevos que se deslizam
para a tonalidade cor terra do manto de Santo Alberto, para serem iluminadas,
acesas, vivificadas e recolhidas na transparência das vestes da Mãe de Deus. É
nela que também reverberam as cores do céu e da profundidade dos abismos, ao
passo que, na candura da capa, na transparência do branco, emerge o fogo do
vermelho do manto, que como nuvem reveste aquele que olha, envolvendo-o num
abraço de esperança e salvação.
Como em cada ícone em que a Mãe de
Deus conduz ao caminho que é Cristo (Hodighitria), aparecem duas fontes de luz
dentro da representação: o rosto de Maria com as pálpebras veladas de escuro em
tensão com os relevos da fronte e do nariz, que fazem a figura mais
melancólica, porém sempre alargada; e a figura do menino sentado no braço
esquerdo, em posição régia, apenas voltado para a Mãe: é Ele a fonte da
divindade e da luz, é Ele, ao mesmo tempo, o evangelizador por excelência e a
Boa Notícia. Apresentado por Maria, é por Ele iluminada, convertendo-se, por
sua vez, em fonte de luz e esperança. A Cristo se dirige o gesto adorador de
Santa Madalena e do Beato Tito.
A posição da mão direita da Virgem
indica a intercessão ante o Filho. Ainda que estático, o jogo das mãos sobre o
fundo branco assinala a centralidade da atenção visual ligeiramente deslocada
ao alto em relação à centralidade do campo visual, e convida à escuta orante da
escritura cujo rolo branco é segurado pela mão esquerda do Filho.
A ausência de horizonte situa a Mãe
de Deus no centro, e as Testemunhas, numa dimensão de circularidade em relação
a ela. Na iconografia não existe um verdadeiro e próprio horizonte, mas sim
planos de atenção sobrepostos que posicionam a cena deixando-a suspensa no
espaço, visto que o lugar e o tempo do evento é o presente. Maria está agora
entre nós e acompanha nossa caminhada de carmelitas.
O sentido de circularidade sublinha
o que é central no ícone: o ventre de Maria e o menino ligeiramente deslocado à
sua esquerda. É Ele o Senhor da vida, nosso Oriente ao qual deve dirigir-se
nosso olhar. No conjunto dos rostos, é Ele o lugar do encontro.
Na tradição da igreja antiga,
Orígenes fala de um Deus que se encarna através de seu ícone, através do
visível, do limitado. Ele é o Invisível, o Ilimitado. Nessa perspectiva, cada
ícone mariano também deve remeter ao verdadeiro ícone que é o ser humano, cujo
protótipo é Jesus Cristo, esplendor do Pai. Contemplar a teofania de Jesus, ou
seja, vê-lo vivo, é aquela experiência que nossos pais experimentaram no Monte
Carmelo, junto à fonte, e impulsionaram outros a seguir seu exemplo até nossos
dias para que aprendam a arte do “olhar interior”, fonte reflexa de verdadeira
luz[5].
Hoje, também nós, na imagem de sua Mãe, no gesto benévolo com o qual
evangeliza, indicando a Jesus como caminho, somos convidados a escrever, no
encontro e na amizade, nosso ícone de carmelitas transfigurados no resplendor
de uma luz imaterial que tudo envolve, porque nosso olhar pode fazer novo o
habitual e o ordinário[6].
[1] Estes aspectos dos
ícones marianos assemelham-se ao desenrolar da presença de Maria na vida do
Carmelo. Contemplá-la como Mãe de Deus (aspecto teológico) é a base de qualquer
aproximação a ela, de senti-la como irmã e Mãe: por sua aproximação ao Filho e
ao homem, sua intercessão é garantia de segura esperança (aspecto espiritual),
como também o seu fazer-se modelo de vida realizada o projeto de santidade
pessoal (aspecto antropológico). Suas representações estão vinculadas ao papel
que realiza (aspecto epifânico), manifestando a essencialidade do vínculo com
Cristo.
[2] As três cruzes de luz – só duas
são visíveis – se explicam habitualmente como símbolo da virgindade antes,
durante e depois do parto; é interessante também a aproximação à Trindade, da qual
se convertem em símbolo. Maria é lugar da presença trinitária, Arca do Deus Uno
e Trino durante nove meses.
[3]
Nimbo provém de nimbus : nuvem da glória de Deus, particularmente evidente na
pessoa santa. Diferencia-se da auréola, de aures, que remete à coroa da vitória
que o santo recebe ao concluir o bom combate. Em conclusão, o nimbo sublinha o
aspecto do dom, da graça, enquanto que a auréola sublinha o mérito.
Graficamente, o nimbo é tridimensional, vê-se sempre igual mesmo que o santo se
mova circularmente; a auréola converte-se logo num diadema (oval quando o santo
dá voltas e, às vezes, um disco plano).
[4]
A luz interior manifesta-se pelo rosto. Recorda Qoelet:” A sabedoria do homem
faz brilhar o seu rosto” (8,1)
[5]
Cf. M.G. MUZJ, Visione e presenza Iconografia e teofania nel pensiero di André
Gabar (Ed. La Casa di Matriona; Milano 1995) 214.
[6]
A finalidade do ícone não é provocar nem exaltar um sentimento humano natural.
Sem suprimir nada de nossa humanidade, nos orienta a uma “transfiguração” de
todos os nossos sentimentos. Cada manifestação da natureza humana se reflete,
adquire seu verdadeiro sentido na harmonia da vida que progressivamente se abre
à visão do limite de sua habitabilidade e beleza, no Mistério de uma humanidade
transfigurada.
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