CONVERSÃO E
TRANSFORMAÇÃO EM CRISTO
Do Roteiro Formativo da OTC de Faro, Portugal.
1. Opção por
Cristo, exigência de vida nova
Se a nossa
opção por Cristo implica a nossa inserção na Igreja, de modo a sermos Igreja, à
semelhança da comunidade cristã de Jerusalém, nascida do Pentecostes, e de
Saulo, tocado por Cristo na estrada de Damasco, a comunhão com o Senhor faz-nos
sentir «a necessidade de redescobrir o
caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a alegria e o
renovado entusiasmo do encontro com Cristo» (Bento XVI, Porta fidei 2).
Toda a vida
cristã é, pois, um aproximar-se da luz (cf. Jo 3,21), para se ser iluminado e
ser transformado em luz no Senhor, «pois tudo o que é posto às claras é luz.
Por isso se diz: “Desperta, tu que
dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo brilhará sobre ti”» (Ef
5,14).
Esta luz
transformadora é próprio Cristo, com o qual o Terceiro se quer identificar cada
vez mais: «O compromisso de seguir Jesus
Cristo com toda a nossa pessoa e de servi-lo “fielmente com coração puro e
total entrega” é o compromisso de viver n’Ele, deixando que seja Ele a guiar os
nossos movimentos, pensamentos, sentimentos, palavras, ações, relações
fraternas e o uso que fazemos das coisas, de modo que tudo provenha e seja
feito “na Sua Palavra” (R 19). O terceiro carmelita «sente-se atraído pelo Senhor Jesus Cristo e convidado a alimentar uma
relação pessoal, viva, profunda e constante com Ele, até assumir os seus traços
espirituais e se revestir da sua personalidade» (RIVC 6). Tão grande
atração traz consigo o desejo de um despojamento de si mesmo, a necessidade de
um desapego de todos os bens (cf. Mc 10,17-20), a exigência de uma união a
Jesus em ordem a uma transformação interior para viver uma vida nova da graça
(cf. Gl 6,15; 2 Cor 5,17), numa palavra: de uma identificação e conformação de
todo o ser com Jesus. Ora, isto só é possível se houver uma profunda conversão
de todo o ser a Jesus.
Na
realidade, porém, a maior parte do tempo não estamos, nem vivemos «em casa». Agitados por inúmeras
preocupações, dispersos em numerosas solicitações, inquietos por causa de
tantos apegos e outros tantos temores, vivemos completamente voltados para
fora, para as coisas, procurando alguma “distração”
que abafe o próprio ruído interior. Por isso, quando Jesus se aproxima e diz:
«Eis que Eu estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta,
entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele, comigo» (Ap 3,20), nem sequer o
ouvimos, porque não estamos «em casa»,
vivendo algures no passado ou no futuro, para onde nos arrasta o coração, como
diz o Senhor: «Onde está o teu tesouro,
aí estará também o teu coração» (Mt 6,21), mas não no «aqui e agora» da
presença e do encontro com Deus, só possível a partir da fé, na intimidade da
oração.
2. Dom da graça e
conhecimento próprio
Quando se
inicia o caminho da oração, a proximidade com Cristo abre o coração à luz do Espírito
Santo, que nele refulge. Nessa ocasião tudo se passa como quando entramos num
quarto de uma casa que tinha sido arrumada e limpa há muito tempo, sem que
ninguém lá tivesse ido. Chegando lá pelo cair da noite, acendem-se algumas
luzes e tudo parece em ordem. Mas quando, pela manhã, no dia seguinte, abrimos
as portadas e corremos as persianas, a luz do sol entra nesse quarto e logo
vemos que há lixo em muitos lugares e uma fina camada de pó em toda a parte.
Por outro lado, o Reino de Deus é como um campo (cf. Mt 13,24-30; 1 Cor 3,9).
Se um campo não for cuidado, nem cultivado, enche-se de toda a espécie de ervas
daninhas, de bichos, silvas, etc., a terra torna-se mais dura ou mais rala,
tanto mais, quanto mais longo tiver sido o tempo durante o qual não foi
trabalho. Assim acontece também com a nossa alma. Disso não nos apercebemos,
mas quando se começa a oração, a luz de Deus põe em evidência não só a
grandeza, a verdade, o amor, a pureza, a bondade e o poder de Deus, mas também,
por contraste, a nossa pequenez, miséria, inconstância e pecado. Este contraste
é percebido tanto maior, quanto mais próxima for a presença de Deus e mais
íntima a união com Ele. Cresce-se desta no conhecimento próprio e no
conhecimento de Deus (cf. Jo 16,8-10; S. Teresa, Mor. 1,2, 8-10.14; Fund.
22,6), tão necessários para caminhar com humildade e confiança, progredindo na
humildade que é andar na verdade (cf. Mor. 6, 10, 7). Ao mesmo tempo que o
carmelita reconhece por experiência própria a realidade e miséria da sua
condição humana, surge nele a exigência de uma profunda renovação, abrindo-se
ao poder de Deus e abandonando-se total e confiadamente à Sua ação. Como diz a
RIVC 10: «O chamamento, dom gratuito de
Deus, não cai numa terra neutra, antes vai dirigido a uma pessoa com a sua
história de santidade e pecado. Cada um de nós experimenta o poder da graça,
que dá a própria força e vida para realizar com alegria o projeto de Deus,
simultaneamente a um conflito interior que tem influência no crescimento
interior. Como diz S. Paulo: “Não faço o bem que quero, mas o mal que não
quero... E, quando quero fazer o bem, é o mal que está ao meu lado” (Rm
7,14-25). Mas também nesta fragilidade, a cada um é dirigida a palavra
tranquilizadora do Senhor a Paulo: “Basta-te a minha graça; porque é na
debilidade que a minha força se manifesta plenamente” (2 Cor 12,9)».
3. A tríplice
dimensão da conversão carmelita
A Sagrada
Escritura ao falar da conversão distingue dois termos. Um, vindo do Antigo
Testamento, é o verbo “shub”, que
quer dizer “voltar”. Significa que a
pessoa que caminhava numa direção, que o desviava do caminho da vida,
afastando-o para longe de Deus e conduzindo-o assim à morte, alcança, por graça
de Deus, o dom de “voltar” e
regressar ao Pai (cf. Lm 5,21; 1 Rs 13,37; Jr 18,11; Lc 15,11-32). Este é o
primeiro momento da conversão: entrar em si, regressar ao Pai, ir ao seu
encontro, abraçá-lo. É deste encontro e união a Deus que nascem as forças para
se ir renovando a própria vida. A conversão não é, pois, em primeiro lugar um esforço
de renovação e só depois reconciliação e união a Deus no seio da Sua «casa», a Igreja. Antes de mais, ela é
reconciliar-se com Deus e unir-se a Ele, graças à obra de Cristo (cf. 2 Cor
5,18), deixando-se instruir por Ele (cf. Mt 18,3), sendo a renovação da vida o
fruto e consequência desta. O Novo Testamento, além deste vocábulo, conhece
também outro: metanóia. Este
significa literalmente “mudança de
mente”, reconsiderar, mudando de atitude, de maneira de julgar, dos valores
que contam, dos interesses que se perseguem, das preferências e prioridades, da
orientação da própria vida. Implica sempre por a Deus em primeiro lugar e no
centro da própria existência, como o único Absoluto e o mais importante da
nossa vida (cf. Mt 4,17; Lc 17,4; At 2,38; Hb 6,1), sendo sempre o fruto da
ação do Espírito em nós (cf. Lc 5,32; At 11,18; Rm 2,4; 2 Pd 3,9).
A partir da
sua experiência profundamente bíblica e evangélica da vida no Espírito segundo
o Evangelho, o Carmelo acentua três notas particulares, mas fundamentais, da
conversão, enquanto regresso/união com Deus, e purificação/transformação
interior:
( 1)conversão da
exterioridade para a interioridade:
«Ó alma formosíssima entre todas as
criaturas, que tanto desejas saber onde está o teu Amado para te encontrares e unires
a Ele, já te foi dito que tu mesma és o aposento onde Ele mora, o refúgio e o
esconderijo onde Ele Se oculta… Mas também perguntas: “Então, se Aquele que a
minha alma ama está em mim, porque é que não O encontro nem O sinto?”. A razão disso é que Ele está escondido e tu
não te escondes para encontrá-lo e sentir… Fica-te dito, ó alma, o modo que
mais te convém para achares o Esposo no teu esconderijo. Mas, se quiseres que
to diga outra vez, atende a esta palavra cheia de substância e de verdade
inacessível: busca-O em fé e amor, sem te quereres satisfazer em coisa alguma,
nem possuí-la ou entender mais do que deves saber, pois estes dois são os moços
de cego que te hão de guiar por onde não sabes até ao esconderijo de Deus. A
fé, que é o segredo “…, são os pés que levam a alma até Deus; o amor é o guia
que a encaminha» (S. João da Cruz, Cântico espiritual, 1, 7.9.11);
( 2)Vacare Deo
(esvaziar-se para Deus).
Esta expressão, tirada da Vulgata: «Silenciai-vos
(Vacate) e sabei que eu sou Deus; ergo-me sobre as nações, ergo-me na terra»
(Sl 45[44], 11), expressa todo «o empenho
do Carmelita em fazer de Cristo crucificado, homem despojado e esvaziado, o
fundamento da própria vida, e em ordenar para Ele todas as suas energias
através da fé, destruindo qualquer obstáculo que se levante contra a perfeita
dependência dele e contra a perfeição da caridade para com Deus e com os
irmãos. Este processo de despojamento, que conduz à união com Deus, fim último
de todo o crescimento do homem, na nossa espiritualidade é evocado pelos temas
da "puritas cordis" e do "vacare Deo", expressões da
abertura total para com Deus e do esvaziamento progressivo de si mesmo»
(Const. 15). É o caminho do esquecimento de si mesmo e do nada para alcançar o
Tudo, que é Deus, criando espaço para Deus e deixando que Deus seja Deus na
nossa vida.
( 3)Abandono confiante,
total e incondicional ao amor misericordioso de Deus, deixando que Ele tome a iniciativa,
venha a nós como quer, quando quer e como quer, nos guie e use, desejando
apenas amá-l’O e agradar-Lhe em tudo, abrindo-se cada vez mais profundamente à
sua graça, deixando que Ele toque, inunde e renove o nosso nada, todas as zonas
e dimensões do nosso ser: «A natureza
humana, débil e limitada, por causa das suas misérias, deixa-se conduzir pela
vontade divina e abraça uma vida de conversão sempre mais profunda. Envolvendo
o ser humano por toda a vida e em todas as dimensões, a conversão implica um
radical e novo direcionamento a uma progressiva transformação. Guiados pelo
Espírito os terceiros buscam a superação dos obstáculos que encontram nos seus
caminhos e evitam tudo aquilo que possa desviá-los da estrada rumo ao cume.
Além disso, reconhecendo possíveis limitações e resistências, empenham-se em
seguir, sem vacilar e sem desvios, por um caminho gradual rumo aos ideais
escolhidos» (ROTC 21).
4. A «Subida do
Monte Carmelo», símbolo do processo de purificação através da noite e do
deserto da contemplação até chegar à união e transformação do próprio.
Toda a
verdadeira obra de conversão, purificação e transformação é uma graça insigne
de Deus, que, conduzindo o Terceiro através do deserto, o introduz na
contemplação de modo a dispô-lo para uma ação mais profunda de Deus, que cure
as raízes do seu ser e o transforme interiormente, tornando possível a
conformação do seu «homem interior»
com o Homem novo, no qual é inserido mediante comunhão com Cristo e com os
irmãos no seio da Igreja. Diz a ROTC 22: «A
“Subida do Monte” implica a experiência do deserto, no qual “a chama viva do
amor” de Deus realiza uma transformação que faz com que o carmelita secular se
desapegue de tudo, até mesmo da imagem que fez de Deus, purificando-a. Revestindo-se
de Cristo, começa a resplandecer como imagem viva de Cristo, transformando-se
nele em nova criatura». E a RIVC 23 acrescenta: «A contemplação constitui a viagem interior do carmelita proveniente da
livre iniciativa de Deus que o toca e o transforma em ordem à união de amor com
Ele, elevando-o até poder gozar gratuitamente de ser amado por Deus e viver na
Sua presença amorosa. Esta é uma experiência transformante do amor de Deus que
transborda. Este amor esvazia-nos dos nossos modos humanos limitados e
imperfeitos de pensar, amar e agir, e transforma-os em “modos divinos” (cf.
Const. 40), habilitando-nos “não só depois da morte, mas também nesta vida
mortal, a saborear no coração e experimentar na alma o poder da presença divina
e a doçura da glória celeste” (Instituição dos primeiros monges 1, 2».
Através deste processo, o Terceiro começa a «ver
a realidade com os olhos de Deus» (RIVC 15), transformando-se a sua atitude
segundo o amor de Deus e tornando-se desta forma cada vez «mais capaz de discernir os sinais dos tempos e a presença de Deus na
história, reforçando em si mesmo o sentido da fraternidade que o conduz a um
empenho sério e decisivo em favor da transformação do mundo» (ROTC 23),
onde vive e passa a agir como luz, sal e fermento.
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