Palavras de Bento XVI na Audiência
Geral desta quarta-feira
Queridos
irmãos e irmãs,
Iniciamos
o tempo litúrgico da Quaresma, quarenta dias que nos preparam para a celebração
da Santa Páscoa; é um tempo de particular empenho em nosso caminho espiritual.
O número quarenta aparece várias vezes na Sagrada Escritura. Em particular,
como se sabe, recorda os quarenta anos no qual o povo de Israel peregrinou no
deserto: um longo período de formação para transformar o povo de Deus, mas
também um longo período em que a tentação de ser infiel à aliança com Deus
estava sempre presente. Quarenta foram também os dias de caminhada do profeta
Elias para chegar ao Monte de Deus, Horeb; bem como o tempoem que Jesuspassou
no deserto antes de iniciar a sua vida pública e onde foi tentado pelo diabo.
Na catequese de hoje gostaria de deter-me neste momento da vida terrena do
Senhor, que leremos no Evangelho do próximo domingo.
Antes
de tudo, o deserto, para onde Jesus se retira, é o lugar do silêncio, da
pobreza, onde o homem é privado dos apoios materiais e se encontra diante das
questões fundamentais da existência, é convidado a ir ao essencial e por isto
lhe é mais fácil encontrar a Deus. Mas o deserto é também o lugar de morte,
porque onde não tem água, não tem vida, é o lugar da solidão, onde o homem
sente mais intensamente a tentação. Jesus vai para o deserto e lá é tentado a
deixar o caminho indicado pelo Pai para seguir outros caminhos mais fáceis e
mundanos (cf. Lc 4,1-13). Assim, Ele assume as nossas tentações, leva consigo a
nossa miséria, para vencer o maligno e para abrir-nos o caminho para Deus, o
caminho da conversão.
Refletir
sobre as tentações sofridas por Jesus no deserto é um convite para cada um de
nós a responder uma pergunta fundamental: o que é realmente importante na minha
vida? Na primeira tentação o diabo propõe a Jesus transformar uma pedra em pão
para acabar com a fome. Jesus responde que o homem vive também de pão, mas não
somente de pão: sem uma resposta à fome da verdade, à fome de Deus, o homem não
pode ser salvo (cf. vv 3-4.). Na segunda tentação, o diabo propõe a Jesus o
caminho do poder: o conduz ao alto e lhe oferece o domínio sobre o mundo; mas
este não é o caminho de Deus: Jesus tem muito claro que não é o poder mundano
que salva o mundo, mas o poder da cruz, da humildade, do amor (cf. vv. 5-8). Na
terceira tentação, o diabo propõe a Jesus atirar-se do ponto mais alto do
Templo de Jerusalém e fazer-se salvar por Deus mediante seus anjos, isto é, de
fazer algo de sensacional para colocar à prova o próprio Deus; mas a resposta é
que Deus não é um objeto ao qual impor as nossas condições: é o Senhor de tudo
(cf. vv 9-12.). Qual é o núcleo das três tentações que Jesus sofre? É a
proposta de manipular a Deus, de usá-Lo para os próprios interesses, para a
própria glória e para o próprio sucesso. Então, essencialmente, de colocar a si
mesmo no lugar de Deus, retirando-O da própria existência e fazendo-O parecer
supérfluo. Cada um deveria perguntar-se: qual é o lugar de Deus na minha vida?
É Ele é o Senhor ou sou eu?
Superar
a tentação de submeter Deus a si e aos próprios interesses ou colocá-Lo em um
canto e converter-se à ordem correta de prioridade, dar a Deus o primeiro
lugar, é um caminho que todo cristão deve percorrer sempre de novo.
“Converter-se", um convite que escutamos muitas vezes na Quaresma,
significa seguir Jesus de modo que o seu Evangelho seja guia concreto da vida;
significa deixar que Deus nos transforme, parar de pensar que somos os únicos
construtores da nossa existência; é reconhecer que somos criaturas, que
dependemos de Deus, do seu amor, e apenas "perdendo" a nossa vida
Nele podemos ganhá-la. Isto exige trabalhar as nossas escolhas à luz da Palavra
de Deus. Hoje não se pode mais ser cristão como uma simples consequência do
fato de viver em uma sociedade que tem
raízes cristãs: mesmo quem nasce de uma família cristã, é educado
religiosamente deve, a cada dia, renovar a escolha de ser cristão, ou seja, dar
a Deus o primeiro lugar, diante das tentações que uma cultura secularizada
sugere continuamente, diante das críticas de muitos contemporâneos.
As
provas às quais a sociedade moderna submete o cristão, de fato, são muitas, e
afetam a vida pessoal e social. Não é fácil ser fiel ao matrimônio cristão,
praticar a misericórdia na vida cotidiana, dar espaço à oração e ao silêncio
interior; não é fácil opor-se publicamente às escolhas que muitos consideram
óbvias, como o aborto em caso de gravidez indesejada, a eutanásia em caso de
doença grave, ou a seleção de embriões para prevenir doenças hereditárias. A
tentação de deixar de lado a própria fé está sempre presente e a conversão
torna-se uma resposta a Deus que deve ser confirmada muitas vezes na vida.
Temos
como exemplo e estímulo as grandes conversões como a de São Paulo no caminho de
Damasco, ou de Santo Agostinho, mas também na nossa época de eclipses do
sentido do sagrado, a graça de Deus está a serviço e faz maravilhas na vida de
muitas pessoas. O Senhor nunca se cansa de bater à porta dos homens em
contextos sociais e culturais que parecem engolidos pela secularização, como
aconteceu para o russo ortodoxo Pavel Florenskij. Depois de uma educação
completamente agnóstica, a ponto de agir com verdadeira hostilidade para com os
ensinamentos religiosos ensinados na escola, o cientista Florenskij encontra-se
a exclamar: "Não, não é possível viver sem Deus!", e a mudar a sua
vida completamente, a ponto de tornar-se monge.
Penso
também na figura de Etty Hillesum, uma jovem holandesa de origem judia que
morreuem Auschwitz. Inicialmentedistante de Deus, descobre-O olhando em
profundidade dentro de si mesma e escreve: "Um poço muito profundo está
dentro de mim. E Deus está nesse poço. Às vezes eu posso alcançá-lo, muitas
vezes a pedra e a areia o cobrem: então Deus está sepultado. É preciso de novo
que o desenterrem"(Diário, 97). Na sua vida dispersa e inquieta, encontra
Deus em meio à grande tragédia do século XX, o Holocausto. Esta jovem frágil e
insatisfeita, transfigurada pela fé, torna-se uma mulher cheia de amor e paz
interior, capaz de dizer: "Vivo constantemente em intimidade com
Deus".
A
capacidade de opor-se às atrações ideológicas do seu tempo para escolher a
busca da verdade e abrir-se à descoberta da fé é evidenciada por outra mulher
do nosso tempo, a americana Dorothy Day. Em sua autobiografia, confessa
abertamente ter caído na tentação de resolver tudo com a política, aderindo à
proposta marxista: "Eu queria andar com os manifestantes, ir para a
cadeia, escrever, influenciar os outros e deixar o meu sonho no mundo. Quanta
ambição e quanta busca de mim mesma havia em tudo isso!”. O caminho de fé em um
ambiente tão secularizado era particularmente difícil, mas a Graça age da mesma
maneira, como ela mesma ressalta: "É certo que eu senti muitas vezes a
necessidade de ir à igreja, ajoelhar, curvar a cabeçaem oração. Uminstinto
cego, poderia-se dizer, porque eu não estava consciente da oração. Mas eu ia,
inseria-me na atmosfera da oração ... ". Deus a conduziu a uma consciente
adesão à Igreja, em uma vida dedicada
aos menos favorecidos.
No
nosso tempo não são poucas as conversões entendidas como retorno de quem,
depois de uma educação cristã talvez superficial, afastou-se da fé por anos e
depois redescobre Cristo e o seu Evangelho. No livro do Apocalipse, lemos:
"Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e me abrir a
porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele comigo "(3, 20). O
nosso homem interior deve preparar-se para ser visitado por Deus, e por essa
razão não deve deixar-se invadir pelas ilusões, pelas aparências, pelas coisas
materiais.
Neste
tempo de Quaresma, no Ano da fé, renovemos o nosso compromisso no caminho de
conversão, para superar a tendência de fechar-nos em nós mesmos e fazer, ao
invés, espaço para Deus, olhando com seus olhos a realidade cotidiana. A alternativa
entre o fechamento no nosso egoísmo e a abertura ao amor de Deus e dos outros,
podemos dizer que corresponde à alternativa das tentações de Jesus:
alternativa, isso é, entre o poder humano e o amor da Cruz, entre uma redenção
vista apenas no bem-estar material e uma redenção como obra de Deus, a quem
damos o primado da existência. Converter-se significa não fechar-se na busca do
próprio sucesso, do próprio prestígio, da própria posição, mas assegurar que a
cada dia, nas pequenas coisas, a verdade, a fé em Deus e o amor tornem-se a
coisa mais importante.
LEIA, ABAIXO A MEDITAÇÃO DO I DOMINGO DA QUARESMA
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