domingo, 3 de fevereiro de 2013

DEI VERBUM - IV.



COMO INTERPRETAR A BÍBLIA

Pe. Ney Brasil Pereira,
Professor de Exegese Bíblica na Facasc/Itesc
 E-mail: ney.brasi@itesc.org.br

No artigo passado, explicamos os conceitos de “Inspiração” e “Verdade” da Bíblia, abordados no capítulo III da Dei Verbum, n. 11, onde o Concílio inova, ao superar o conceito de “inerrância absoluta”. Os Padres conciliares afirmam que os livros inspirados “ensinam com certeza, fielmente e sem erro, a verdade que Deus em vista de nossa salvação quis que fosse consignada nas Sagradas Escrituras”. Eles introduzem, portanto, o conceito de “verdade de salvação”.

Explicando, a seguir, “como” se chega, na leitura da Bíblia, a essa “verdade de salvação”,  ensinam: “Já que Deus na Sagrada Escritura falou através de homens e de modo humano, o intérprete da Sagrada Escritura, para bem entender o que Deus nos quis transmitir, deve investigar atentamente o que os hagiógrafos de fato quiseram dar a entender e o que aprouve a Deus manifestar por suas palavras” (DV n. 12, 1ª alínea). Esse texto fala do “intérprete” da Sagrada Escritura, isto é, o “exegeta”, estudioso que conhece as línguas originais, e dos “hagiógrafos”, termo que designa os “escritores sagrados”, inspirados.

1. A crítica

Aí entra em cena o método histórico-crítico, que não é a última instância da interpretação, mas é certamente a primeira. Tratando-se de textos antigos, é necessário submetê-los à crítica, o que vem sendo proposto desde o século XVII, e a crítica em três níveis: 1) crítica textual, que investiga se e como o texto que hoje temos corresponde ao texto original, produzido pelo autor inspirado, na sua língua; 2) crítica literária, que investiga o “gênero literário” do texto em questão: se se trata de história documental, ou parábola, ou profecia, ou apocalíptica etc; e 3) crítica histórica, que investiga as circunstâncias históricas em que aquele texto foi produzido. Esse método histórico-crítico foi oficialmente aprovado e incentivado pela Igreja, especialmente na Encíclica “divino Afflante Spiritu”, de Pio XII, em 1943.

2. Gêneros literários

Sobre esse assunto, assim se expressam os Padres conciliares: “ Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, devem-se levar em conta, entre outras coisas, os “gêneros literários”. Pois a verdade é apresentada e expressa de maneiras diferentes nos textos que são de vários modos históricos, ou proféticos ou poéticos, ou nos demais gêneros de expressão. Ora, é preciso que o intérprete pesquise o  sentido que, em determinadas circunstâncias, o hagiógrafo, conforme a situação de seu tempo e de sua cultura, quis exprimir e exprimiu por meio de gêneros literários então em uso.” (DV n.12, 2ª alínea)

E continuam: “Para corretamente entender aquilo que o autor sacro quis afirmar por escrito, é necessário levar devidamente em conta tanto as nossas maneiras comuns e espontâneas de sentir, falar e contar, as quais já eram correntes no tempo do hagiógrafo, como as que costumavam empregar-se largamente então – e hoje não mais, ou de modo diferente – no intercâmbio daquelas eras.” (DV n. 12, final da 2ª alínea)

3. No Espírito

Já dissemos acima que o método histórico-crítico é a “primeira instância” da interpretação, mas não é última. É por isso que os Padres conciliares continuam: “Mas, como a Sagrada Escritura deve ser também lida e interpretada naquele mesmo Espírito em que foi escrita, então, para apreender com exatidão o sentido dos textos sagrados, deve-se atender com não menor diligência ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura, levada em conta a Tradição viva da Igreja toda, e a “analogia da fé” (DV 12, 3ª alínea).

Aqui encontramos uma das mais insistentes, e justas, advertências do papa Bento XVI, quanto ao método histórico-crítico. Este é importante, mesmo para a leitura de fé, mas não pode ser exclusivo: tem de ser complementado pela leitura “canônica”, que leva em conta, como vimos no parágrafo anterior, o “conteúdo e unidade de toda a Escritura”, além da “Tradição viva da Igreja” e a “analogia da Fé”. Quanto à “analogia da fé”, é uma expressão da carta aos romanos (Rm 12,6b), interpretada como “coerência entre as verdades da fé”.

Essa é a “leitura no Espírito”, que deve ser buscada com humildade e perseverança: o mesmo Espírito que inspirou os hagiógrafos não deixará, segundo a promessa do Senhor, de conduzir à plenitude da Verdade (cf Jo 16,13) os que o invocam.

4. Trabalho preparatório

Continuam os Padres conciliares: “É dever dos exegetas esforçar-se dentro destas diretrizes para entender e expor com maior aprofundamento o sentido da Sagrada Escritura a fim de que, por seu trabalho como que preparatório, amadureça o julgamento da Igreja. Pois todas essas coisas que concernem à maneira de interpretar a Escritura, estão sujeitas em última instância ao juízo da Igreja, que exerce o divino mandato e ministério de guardar e interpretar a palavra de Deus.”

Por motivos práticos, podemos definir “exegese” como a busca do sentido histórico-crítico do texto bíblico no momento em que foi produzido e publicado, e “hermenêutica”, como a busca do seu sentido agora, para nós, atividade exercida, em última análise, pelo magistério da Igreja. Nesse sentido, a exegese é um trabalho preparatório e não tem fim, uma vez que os conhecimentos histórico-críticos vão se modificando e ampliando.

5. Condescendência de Deus

Na Encarnação, a Palavra de Deus “desceu” até nós e, “condescendendo” conosco,  assumiu nossa condição humana em Jesus de Nazaré. Assim também a mesma Palavra, assumindo a linguagem humana, “condescendeu” conosco e, na Bíblia, se librificou.

Nesse sentido, assim se expressam os Padres conciliares: “Na Sagrada Escritura, portanto, manifesta-se, resguardada sempre a verdade e santidade de Deus, a admirável “condescendência” da eterna Sabedoria, ‘a fim de que conheçamos a inefável benignidade de Deus, e de quanta acomodação de linguagem usou, providente e cuidadoso como é de nossa natureza’. Pois as palavras de Deus, expressas por línguas humanas, se fizeram semelhantes à linguagem humana, tal como outrora o Verbo do Pai Eterno, havendo assumido a carne da fraqueza humana, se fez semelhante aos seres humanos.”  (DV n.13)

6. Humildade

Consequência importantíssima dessa “condescendência” de Deus, que assume a linguagem humana com todas as suas limitações, inclusive a sua incapacidade de expressar com exatidão a verdade, é a humildade com que nos devemos acercar da Bíblia. “Inspirada”, sem dúvida, como o proclama a nossa fé, mas produto cultural também humano, não só divino. Por isso, não nos preocupemos demais com as “páginas difíceis” da Bíblia. Essas “páginas difíceis” ajudam-nos a tomar consciência, com humildade, da nossa condição humana. E ajudam-nos também a tudo esperar da Graça daquele que se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1,14).

Para refletir:
1. Que é o método “histórico-crítico”?
2. Que são os “gêneros literários” e por que é importante distingui-los no texto bíblico?
3. Como a “leitura no Espírito” complementa a exegese histórico-crítica?
4. Em que sentido o trabalho dos exegetas é de certo modo “preparatório” para as definições do Magistério da Igreja?
5. Por que é necessária a humildade na busca da interpretação da Bíblia?

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