COMO INTERPRETAR A BÍBLIA
Pe. Ney Brasil Pereira,
Professor
de Exegese Bíblica na Facasc/Itesc
E-mail: ney.brasi@itesc.org.br
No artigo passado, explicamos os
conceitos de “Inspiração” e “Verdade” da Bíblia, abordados no capítulo III da
Dei Verbum, n. 11, onde o Concílio inova, ao superar o conceito de “inerrância
absoluta”. Os Padres conciliares afirmam que os livros inspirados “ensinam com
certeza, fielmente e sem erro, a verdade que Deus em vista de nossa salvação
quis que fosse consignada nas Sagradas Escrituras”. Eles introduzem, portanto,
o conceito de “verdade de salvação”.
Explicando, a seguir, “como” se
chega, na leitura da Bíblia, a essa “verdade de salvação”, ensinam: “Já que Deus na Sagrada Escritura
falou através de homens e de modo humano, o intérprete da Sagrada Escritura,
para bem entender o que Deus nos quis transmitir, deve investigar atentamente o
que os hagiógrafos de fato quiseram dar a entender e o que aprouve a Deus
manifestar por suas palavras” (DV n. 12, 1ª alínea). Esse texto fala do
“intérprete” da Sagrada Escritura, isto é, o “exegeta”, estudioso que conhece
as línguas originais, e dos “hagiógrafos”, termo que designa os “escritores
sagrados”, inspirados.
1.
A crítica
Aí entra em cena o método
histórico-crítico, que não é a última instância da interpretação, mas é
certamente a primeira. Tratando-se de textos antigos, é necessário submetê-los
à crítica, o que vem sendo proposto desde o século XVII, e a crítica em três
níveis: 1) crítica textual, que investiga se e como o texto que hoje temos
corresponde ao texto original, produzido pelo autor inspirado, na sua língua;
2) crítica literária, que investiga o “gênero literário” do texto em questão:
se se trata de história documental, ou parábola, ou profecia, ou apocalíptica
etc; e 3) crítica histórica, que investiga as circunstâncias históricas em que
aquele texto foi produzido. Esse método histórico-crítico foi oficialmente
aprovado e incentivado pela Igreja, especialmente na Encíclica “divino Afflante
Spiritu”, de Pio XII, em 1943.
2.
Gêneros literários
Sobre esse assunto, assim se
expressam os Padres conciliares: “ Para descobrir a intenção dos hagiógrafos,
devem-se levar em conta, entre outras coisas, os “gêneros literários”. Pois a
verdade é apresentada e expressa de maneiras diferentes nos textos que são de
vários modos históricos, ou proféticos ou poéticos, ou nos demais gêneros de
expressão. Ora, é preciso que o intérprete pesquise o sentido que, em determinadas circunstâncias,
o hagiógrafo, conforme a situação de seu tempo e de sua cultura, quis exprimir
e exprimiu por meio de gêneros literários então em uso.” (DV n.12, 2ª alínea)
E continuam: “Para corretamente
entender aquilo que o autor sacro quis afirmar por escrito, é necessário levar
devidamente em conta tanto as nossas maneiras comuns e espontâneas de sentir,
falar e contar, as quais já eram correntes no tempo do hagiógrafo, como as que
costumavam empregar-se largamente então – e hoje não mais, ou de modo diferente
– no intercâmbio daquelas eras.” (DV n. 12, final da 2ª alínea)
3.
No Espírito
Já dissemos acima que o método
histórico-crítico é a “primeira instância” da interpretação, mas não é última.
É por isso que os Padres conciliares continuam: “Mas, como a Sagrada Escritura
deve ser também lida e interpretada naquele mesmo Espírito em que foi escrita,
então, para apreender com exatidão o sentido dos textos sagrados, deve-se
atender com não menor diligência ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura,
levada em conta a Tradição viva da Igreja toda, e a “analogia da fé” (DV 12, 3ª
alínea).
Aqui encontramos uma das mais
insistentes, e justas, advertências do papa Bento XVI, quanto ao método
histórico-crítico. Este é importante, mesmo para a leitura de fé, mas não pode
ser exclusivo: tem de ser complementado pela leitura “canônica”, que leva em
conta, como vimos no parágrafo anterior, o “conteúdo e unidade de toda a
Escritura”, além da “Tradição viva da Igreja” e a “analogia da Fé”. Quanto à
“analogia da fé”, é uma expressão da carta aos romanos (Rm 12,6b), interpretada
como “coerência entre as verdades da fé”.
Essa é a “leitura no Espírito”, que
deve ser buscada com humildade e perseverança: o mesmo Espírito que inspirou os
hagiógrafos não deixará, segundo a promessa do Senhor, de conduzir à plenitude
da Verdade (cf Jo 16,13) os que o invocam.
4.
Trabalho preparatório
Continuam os Padres conciliares: “É
dever dos exegetas esforçar-se dentro destas diretrizes para entender e expor
com maior aprofundamento o sentido da Sagrada Escritura a fim de que, por seu
trabalho como que preparatório, amadureça o julgamento da Igreja. Pois todas essas
coisas que concernem à maneira de interpretar a Escritura, estão sujeitas em
última instância ao juízo da Igreja, que exerce o divino mandato e ministério
de guardar e interpretar a palavra de Deus.”
Por motivos práticos, podemos
definir “exegese” como a busca do sentido histórico-crítico do texto bíblico no
momento em que foi produzido e publicado, e “hermenêutica”, como a busca do seu
sentido agora, para nós, atividade exercida, em última análise, pelo magistério
da Igreja. Nesse sentido, a exegese é um trabalho preparatório e não tem fim,
uma vez que os conhecimentos histórico-críticos vão se modificando e ampliando.
5.
Condescendência de Deus
Na Encarnação, a Palavra de Deus
“desceu” até nós e, “condescendendo” conosco,
assumiu nossa condição humana em Jesus de Nazaré. Assim também a mesma
Palavra, assumindo a linguagem humana, “condescendeu” conosco e, na Bíblia, se
librificou.
Nesse sentido, assim se expressam os
Padres conciliares: “Na Sagrada Escritura, portanto, manifesta-se, resguardada
sempre a verdade e santidade de Deus, a admirável “condescendência” da eterna
Sabedoria, ‘a fim de que conheçamos a inefável benignidade de Deus, e de quanta
acomodação de linguagem usou, providente e cuidadoso como é de nossa natureza’.
Pois as palavras de Deus, expressas por línguas humanas, se fizeram semelhantes
à linguagem humana, tal como outrora o Verbo do Pai Eterno, havendo assumido a
carne da fraqueza humana, se fez semelhante aos seres humanos.” (DV n.13)
6.
Humildade
Consequência importantíssima dessa
“condescendência” de Deus, que assume a linguagem humana com todas as suas
limitações, inclusive a sua incapacidade de expressar com exatidão a verdade, é
a humildade com que nos devemos acercar da Bíblia. “Inspirada”, sem dúvida,
como o proclama a nossa fé, mas produto cultural também humano, não só divino.
Por isso, não nos preocupemos demais com as “páginas difíceis” da Bíblia. Essas
“páginas difíceis” ajudam-nos a tomar consciência, com humildade, da nossa
condição humana. E ajudam-nos também a tudo esperar da Graça daquele que se fez
carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1,14).
Para
refletir:
1.
Que é o método
“histórico-crítico”?
2.
Que são os “gêneros
literários” e por que é importante distingui-los no texto bíblico?
3.
Como a “leitura no
Espírito” complementa a exegese histórico-crítica?
4. Em que sentido o trabalho dos
exegetas é de certo modo “preparatório” para as definições do Magistério da
Igreja?
5.
Por que é
necessária a humildade na busca da interpretação da Bíblia?
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