terça-feira, 29 de janeiro de 2013

DEI VERBUM II



TRADIÇÃO E ESCRITURA

Pe. Ney Brasil Pereira,
Professor de Exegese Bíblica na FACASC/ITESC
Email: ney.brasil@itesc.org.br

Continuando nosso comentário sobre a Dei Verbum, a Constituição dogmática do Vaticano II sobre a Revelação Divina, trataremos agora do conteúdo do capítulo II, intitulado “Transmissão da Divina Revelação”. Na verdade, estabelecido o fato de que Deus se revelou a nós, seres humanos, falando muitas vezes e de muitos modos a nossos pais, pelos profetas e, especialmente, por meio de seu Filho (cf Hb 1,1-2), surge a pergunta, que requer uma resposta: de que maneira essa revelação chegou até nós?

Os Padres conciliares, tendo em vista o Novo Testamento, assim começam a sua resposta: “Deus dispôs com suma benignidade que aquelas coisas que revelara para a salvação de todos os povos permanecessem sempre íntegras, e fossem transmitidas a todas as gerações” (DV 7). “Transmitidas”, primeiro oralmente: é a chamada “Tradição”; e, num determinado momento da história, por escrito: é a “Escritura”. São “duas fontes” que se interrelacionam: a Escritura, precedida pela Tradição, e a Tradição, que continua após a Escritura, mas por esta se norteia.

1. No decorrer da história

Como é sabido, na evolução da humanidade,  a escrita é um fenômeno relativamente recente. Centenas de milhares de anos pertencem à pré-história, à idade da pedra lascada, depois, da pedra polida, tempo em que o ser humano só se comunicava oralmente, mas já fazia, a seu modo, a experiência de Deus. Só a partir de uns 5000 anos antes de Cristo começa a cerâmica pintada, e em 3500 aC os primeiros “documentos”, inclusive os religiosos, ainda em escritas rudimentares, que evoluem para o alfabeto fenício cerca de 1500 anos aC, isto é, pouco antes de Moisés. Quer dizer, em todos esses milhares de anos antes da descoberta da escrita, não era possível haver “Escritura”, mas somente “Tradição”, isto é, transmissão oral de conhecimentos, também os concernentes à religião. Essa transmissão oral, porém, não cessou com a escrita. Nesse sentido, é equivocado o princípio de Lutero sobre a exclusividade da Bíblia – “Só a Escritura” – princípio ao qual chegou por causa dos abusos da “tradição dos homens”, abusos aliás já denunciados, no seu tempo, pelo próprio Senhor Jesus (cf Mc 7,8).

Mas de quando data, afinal, a escrita da Bíblia, ou seja, a redação da “Escritura”? Foi um longo processo, como é sabido, que se estendeu por mais de mil anos, envolvendo um total de 46 livros do chamado “Antigo” Testamento, a Bíblia judaica, e um total de mais 27 livros do “Novo” Testamento, o complemento cristão. Podemos situar o início desse processo com Moisés, no final do século XIII antes de Cristo, quando já estava em uso a escrita alfabética; e a sua conclusão, do complemento cristão, pelo final do século I depois de Cristo. Entretanto, além da Escritura e da Tradição, foi sendo reconhecida, na comunidade de fé, tanto entre os judeus como, depois, entre os cristãos, a instância interpretativa do “Magistério”. A esse respeito, eis o que dizem os Padres conciliares: “Para que o Evangelho sempre se conservasse inalterado e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram como sucessores os bispos, a eles transmitindo o seu próprio encargo de Magistério” (DV 7, 2ª alínea).

2. A sagrada Tradição

Lembra o Concílio: “Os Apóstolos, transmitindo aquilo que eles próprios receberam do Senhor, exortam os fiéis a manterem as tradições que aprenderam seja oralmente seja por carta (2Ts 2,15), e a combater em favor da fé que lhes foi transmitida uma vez para sempre” (Jd 3; DV 8). Esta Tradição, “oriunda dos Apóstolos, progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo: cresce, com efeito, a compreensão tanto das coisas como das palavras transmitidas [...] e a Igreja tende continuamente para a plenitude da verdade divina (cf Jo 16,13), até que se cumpram nela as palavras de Deus” (DV 8, 2ª alínea). Quanto a esse “progresso” na compreensão da Fé, temos de reconhecer que aí está uma das contribuições mais importantes do Concílio, que assim reconhece o caráter dinâmico da Tradição. De fato, “tradição” é um processo humano, e a Revelação, humanizando-se – e concretizando-se na Encarnação! – aceita essa característica processual, progressiva, dinâmica.

Quanto ao “Cânon bíblico”, isto é, a lista completa dos livros sagrados, tanto do Antigo como do Novo Testamento, não é a própria Escritura que o delimita mas a Tradição, como o lembram os Padres conciliares: “É pela Tradição que se torna conhecido à Igreja o cânon completo dos livros sagrados, e as próprias Escrituras são nela cada vez mais profundamente compreendidas e se fazem sem cessar atuantes. Assim, o Deus que outrora falou pelos profetas, mantém um permanente diálogo com a Esposa do seu dileto Filho” (DV 8, 3ª alínea), diálogo que completa o que “está escrito”.

3. Relação entre Tradição e Escritura

Como já vimos, Tradição e Escritura  estão entre si “estreitamente unidas e comunicantes. Pois promanam ambas da mesma fonte divina – não são, como tal, “duas fontes” – mas formam um só todo e tendem para o mesmo fim. Com efeito, a Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto redigida sob a moção do Espírito Santo, e a Sagrada Tradição é a mesma Palavra enquanto confiada oralmente pelo Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos e seus sucessores [...]. Portanto, “não é através da Escritura apenas que a Igreja deriva sua certeza a respeito de tudo o que foi revelado. E assim, ambas – Escritura e Tradição – devem ser aceitas e veneradas com igual sentimento de piedade e reverência” (cf DV 9).

4. Tradição, Escritura, Igreja, Magistério

Destinatária do “depósito da Fé”, contido na Tradição e na Escritura, é a Igreja, “povo santo de Deus unido a seus pastores”. Assim, “bispos e fiéis colaboram estreitamente na conservação, exercício e profissão da Fé transmitida” (DV 10). Quanto à interpretação autêntica, isto é, autorizada, da palavra de Deus “escrita ou transmitida”, ela não cabe a cada um individualmente, como já o adverte a 2ª carta de Pedro: “Nenhuma profecia da Escritura é objeto de explicação pessoal” (2Pd 1,20). Nesse sentido, lembram os Padres conciliares: “O ofício de interpretar de modo autêntico a palavra de Deus foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo” (DV 10, 2ª alínea). Quanto ao próprio “Magistério”, palavra que vem do latim magíster, mestre, professor,  é o encargo e a missão de ensinar, próprio daqueles que na Igreja sucedem aos apóstolos, isto é, os bispos, unidos entre si e sob a presidência do Papa. Nesse sentido, cabe recordar as palavras do Senhor a seus discípulos: “Quem vos ouve, a Mim ouve; quem vos despreza, a Mim despreza” (Lc 10,16).

5. Limites do Magistério

Esses limites são lembrados pelos Padres conciliares com as seguintes palavras: Embora tenha autoridade divina, “o Magistério não está acima da palavra de Deus, mas a seu serviço, não ensinando senão o que foi transmitido”. E explicam: “Por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, o Magistério piamente ausculta a palavra de Deus – na Escritura e na Tradição – santamente a guarda e fielmente a expõe. E deste único depósito da Fé – transmitido na Escritura e na Tradição – tira o que nos propõe para ser crido como divinamente revelado” (DV 10, 2ª alínea). Notar, portanto, que a Igreja “docente”, o Magistério, não deixa de ser também Igreja “discente” – pois “piamente ausculta a palavra de Deus” – assim como o povo de Deus, Igreja “discente”, na profissão da fé comum, deve também ser reconhecido , de certo modo, como Igreja “docente”.

6. Tradição, Escritura, Magistério

Concluindo esse 2º capítulo da Dei Verbum, os Padres conciliares falam de uma espécie de tripé inseparável, sobre o qual se apoia a interpretação católica do conteúdo da divina Revelação: “Fica, portanto, claro que, segundo o sapientíssimo plano divino, a Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura, e o Magistério da Igreja, estão de tal maneira entrelaçados e unidos, que um não tem consistência sem os outros. Pelo contrário, juntos, cada qual a seu modo, sob a ação do Espírito Santo, contribuem eficazmente para a nossa salvação” (DV 10, 3ª alínea). “Cada qual a seu modo”: a Tradição, isto é, a transmissão oral, como ponto de partida; a Escritura, isto é, a fixação por escrito do essencial da Tradição, num determinado momento da história, e o Magistério, que orienta a interpretação da Escritura  dentro da corrente permanente e progressiva da Tradição.

Para refletir:
1. De que maneira chegou a Revelação divina até nós?
2. De quando datam os primeiros documentos da humanidade? E quando começou a escrita da Bíblia, ou seja, a redação da Escritura?
3. Como entender o “progresso” na compreensão da Fé, ou seja, o caráter dinâmico da Tradição?
4. Qual a relação entre Tradição e Escritura?
5. Como entender o “tripé” da Tradição, Escritura, e Magistério?
6. Em que  sentido se fala dos “limites” do Magistério?

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