TRADIÇÃO E ESCRITURA
Pe. Ney Brasil Pereira,
Professor de Exegese Bíblica na FACASC/ITESC
Email:
ney.brasil@itesc.org.br
Continuando
nosso comentário sobre a Dei Verbum, a Constituição dogmática do Vaticano II
sobre a Revelação Divina, trataremos agora do conteúdo do capítulo II,
intitulado “Transmissão da Divina Revelação”. Na verdade, estabelecido o fato
de que Deus se revelou a nós, seres humanos, falando muitas vezes e de muitos
modos a nossos pais, pelos profetas e, especialmente, por meio de seu Filho (cf
Hb 1,1-2), surge a pergunta, que requer uma resposta: de que maneira essa
revelação chegou até nós?
Os
Padres conciliares, tendo em vista o Novo Testamento, assim começam a sua
resposta: “Deus dispôs com suma benignidade que aquelas coisas que revelara
para a salvação de todos os povos permanecessem sempre íntegras, e fossem
transmitidas a todas as gerações” (DV 7). “Transmitidas”, primeiro oralmente: é
a chamada “Tradição”; e, num determinado momento da história, por escrito: é a
“Escritura”. São “duas fontes” que se interrelacionam: a Escritura, precedida
pela Tradição, e a Tradição, que continua após a Escritura, mas por esta se
norteia.
1. No decorrer da
história
Como
é sabido, na evolução da humanidade, a
escrita é um fenômeno relativamente recente. Centenas de milhares de anos
pertencem à pré-história, à idade da pedra lascada, depois, da pedra polida,
tempo em que o ser humano só se comunicava oralmente, mas já fazia, a seu modo,
a experiência de Deus. Só a partir de uns 5000 anos antes de Cristo começa a
cerâmica pintada, e em 3500 aC os primeiros “documentos”, inclusive os
religiosos, ainda em escritas rudimentares, que evoluem para o alfabeto fenício
cerca de 1500 anos aC, isto é, pouco antes de Moisés. Quer dizer, em todos esses
milhares de anos antes da descoberta da escrita, não era possível haver
“Escritura”, mas somente “Tradição”, isto é, transmissão oral de conhecimentos,
também os concernentes à religião. Essa transmissão oral, porém, não cessou com
a escrita. Nesse sentido, é equivocado o princípio de Lutero sobre a
exclusividade da Bíblia – “Só a Escritura” – princípio ao qual chegou por causa
dos abusos da “tradição dos homens”, abusos aliás já denunciados, no seu tempo,
pelo próprio Senhor Jesus (cf Mc 7,8).
Mas
de quando data, afinal, a escrita da Bíblia, ou seja, a redação da “Escritura”?
Foi um longo processo, como é sabido, que se estendeu por mais de mil anos,
envolvendo um total de 46 livros do chamado “Antigo” Testamento, a Bíblia
judaica, e um total de mais 27 livros do “Novo” Testamento, o complemento
cristão. Podemos situar o início desse processo com Moisés, no final do século
XIII antes de Cristo, quando já estava em uso a escrita alfabética; e a sua
conclusão, do complemento cristão, pelo final do século I depois de Cristo.
Entretanto, além da Escritura e da Tradição, foi sendo reconhecida, na
comunidade de fé, tanto entre os judeus como, depois, entre os cristãos, a
instância interpretativa do “Magistério”. A esse respeito, eis o que dizem os
Padres conciliares: “Para que o Evangelho sempre se conservasse inalterado e
vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram como sucessores os bispos, a eles
transmitindo o seu próprio encargo de Magistério” (DV 7, 2ª alínea).
2. A sagrada Tradição
Lembra
o Concílio: “Os Apóstolos, transmitindo aquilo que eles próprios receberam do
Senhor, exortam os fiéis a manterem as tradições que aprenderam seja oralmente
seja por carta (2Ts 2,15), e a combater em favor da fé que lhes foi transmitida
uma vez para sempre” (Jd 3; DV 8). Esta Tradição, “oriunda dos Apóstolos,
progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo: cresce, com efeito, a
compreensão tanto das coisas como das palavras transmitidas [...] e a Igreja
tende continuamente para a plenitude da verdade divina (cf Jo 16,13), até que
se cumpram nela as palavras de Deus” (DV 8, 2ª alínea). Quanto a esse
“progresso” na compreensão da Fé, temos de reconhecer que aí está uma das
contribuições mais importantes do Concílio, que assim reconhece o caráter
dinâmico da Tradição. De fato, “tradição” é um processo humano, e a Revelação,
humanizando-se – e concretizando-se na Encarnação! – aceita essa característica
processual, progressiva, dinâmica.
Quanto
ao “Cânon bíblico”, isto é, a lista completa dos livros sagrados, tanto do
Antigo como do Novo Testamento, não é a própria Escritura que o delimita mas a
Tradição, como o lembram os Padres conciliares: “É pela Tradição que se torna
conhecido à Igreja o cânon completo dos livros sagrados, e as próprias Escrituras
são nela cada vez mais profundamente compreendidas e se fazem sem cessar
atuantes. Assim, o Deus que outrora falou pelos profetas, mantém um permanente
diálogo com a Esposa do seu dileto Filho” (DV 8, 3ª alínea), diálogo que
completa o que “está escrito”.
3. Relação entre
Tradição e Escritura
Como
já vimos, Tradição e Escritura estão
entre si “estreitamente unidas e comunicantes. Pois promanam ambas da mesma
fonte divina – não são, como tal, “duas fontes” – mas formam um só todo e
tendem para o mesmo fim. Com efeito, a Sagrada Escritura é a palavra de Deus
enquanto redigida sob a moção do Espírito Santo, e a Sagrada Tradição é a mesma
Palavra enquanto confiada oralmente pelo Cristo Senhor e pelo Espírito Santo
aos Apóstolos e seus sucessores [...]. Portanto, “não é através da Escritura
apenas que a Igreja deriva sua certeza a respeito de tudo o que foi revelado. E
assim, ambas – Escritura e Tradição – devem ser aceitas e veneradas com igual
sentimento de piedade e reverência” (cf DV 9).
4. Tradição,
Escritura, Igreja, Magistério
Destinatária
do “depósito da Fé”, contido na Tradição e na Escritura, é a Igreja, “povo
santo de Deus unido a seus pastores”. Assim, “bispos e fiéis colaboram
estreitamente na conservação, exercício e profissão da Fé transmitida” (DV 10).
Quanto à interpretação autêntica, isto é, autorizada, da palavra de Deus
“escrita ou transmitida”, ela não cabe a cada um individualmente, como já o
adverte a 2ª carta de Pedro: “Nenhuma profecia da Escritura é objeto de
explicação pessoal” (2Pd 1,20). Nesse sentido, lembram os Padres conciliares:
“O ofício de interpretar de modo autêntico a palavra de Deus foi confiado
unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de
Jesus Cristo” (DV 10, 2ª alínea). Quanto ao próprio “Magistério”, palavra que
vem do latim magíster, mestre, professor,
é o encargo e a missão de ensinar, próprio daqueles que na Igreja
sucedem aos apóstolos, isto é, os bispos, unidos entre si e sob a presidência
do Papa. Nesse sentido, cabe recordar as palavras do Senhor a seus discípulos:
“Quem vos ouve, a Mim ouve; quem vos despreza, a Mim despreza” (Lc 10,16).
5. Limites do
Magistério
Esses
limites são lembrados pelos Padres conciliares com as seguintes palavras:
Embora tenha autoridade divina, “o Magistério não está acima da palavra de
Deus, mas a seu serviço, não ensinando senão o que foi transmitido”. E
explicam: “Por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, o
Magistério piamente ausculta a palavra de Deus – na Escritura e na Tradição –
santamente a guarda e fielmente a expõe. E deste único depósito da Fé –
transmitido na Escritura e na Tradição – tira o que nos propõe para ser crido
como divinamente revelado” (DV 10, 2ª alínea). Notar, portanto, que a Igreja
“docente”, o Magistério, não deixa de ser também Igreja “discente” – pois
“piamente ausculta a palavra de Deus” – assim como o povo de Deus, Igreja
“discente”, na profissão da fé comum, deve também ser reconhecido , de certo
modo, como Igreja “docente”.
6. Tradição, Escritura,
Magistério
Concluindo
esse 2º capítulo da Dei Verbum, os Padres conciliares falam de uma espécie de
tripé inseparável, sobre o qual se apoia a interpretação católica do conteúdo
da divina Revelação: “Fica, portanto, claro que, segundo o sapientíssimo plano
divino, a Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura, e o Magistério da Igreja,
estão de tal maneira entrelaçados e unidos, que um não tem consistência sem os
outros. Pelo contrário, juntos, cada qual a seu modo, sob a ação do Espírito
Santo, contribuem eficazmente para a nossa salvação” (DV 10, 3ª alínea). “Cada
qual a seu modo”: a Tradição, isto é, a transmissão oral, como ponto de
partida; a Escritura, isto é, a fixação por escrito do essencial da Tradição,
num determinado momento da história, e o Magistério, que orienta a
interpretação da Escritura dentro da
corrente permanente e progressiva da Tradição.
Para refletir:
1. De que maneira chegou a Revelação
divina até nós?
2. De quando datam os primeiros
documentos da humanidade? E quando começou a escrita da Bíblia, ou seja, a
redação da Escritura?
3. Como entender o “progresso” na
compreensão da Fé, ou seja, o caráter dinâmico da Tradição?
4. Qual a relação entre Tradição e
Escritura?
5. Como entender o “tripé” da Tradição,
Escritura, e Magistério?
6. Em que sentido se fala dos “limites” do Magistério?
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