A
PALAVRA DE DEUS
Pe. Ney Brasil Pereira,
Professor de
Exegese Bíblica na Facasc/Itesc
Email:
ney.brasil@itesc.org.br
Entre
as quatro “Constituições”, os documentos principais do Concílio Vaticano
II, as duas primeiras são qualificadas
de “dogmáticas”: a Constituição sobre a Igreja, Lumen Gentium, e a Constituição
sobre a Revelação Divina, Dei Verbum
(DV); a terceira, tem o adjetivo de “pastoral”, Constituição Pastoral
sobre a Igreja no mundo de hoje, Gaudium et Spes; e a quarta não tem, mas
poderia ter, o adjetivo “litúrgica”, pois é uma Constituição sobre a Sagrada
Liturgia, Sacrosanctum Concilium.
Nesta
série de artigos comemorativos do “Ano da Fé”, que celebra os 50 anos do início
do Concílio, trataremos do segundo desses documentos, a Constituição Dogmática
sobre a Revelação Divina. O título Dei Verbum, Palavra de Deus, à primeira
vista, poderia parecer restritivo, designando a “palavra de Deus” escrita, isto
é, a própria Bíblia. No entanto, o objetivo do documento é mais abrangente,
como se afirma no final do seu “proêmio”, ou seja, da sua introdução: “Seguindo as pegadas dos Concílios Tridentino
e Vaticano I, este santo Concílio se propõe expor a genuína doutrina acerca da
Revelação Divina e de sua transmissão…” (DV 1)
Quanto
a esses dois Concílios anteriores, importa saber de que modo trataram “da Revelação Divina e de sua
transmissão”. Iniciado em 1545, em resposta à problemática levantada por
Lutero, especialmente sobre a delimitação do Cânon e o “livre exame” da Bíblia
e a autoridade da Tradição, o Concílio de Trento, ou “Tridentino”, numa de suas
primeiras sessões, ratificou o cânon reconhecido pela Igreja do Ocidente desde
fins do século IV, incluindo os sete livros deuterocanônicos, num total de 46
livros do Antigo Testamento e 27 do Novo; e condenou o chamado “livre exame”,
reafirmando por isso mesmo a autoridade da Tradição e do Magistério da Igreja.
Mais de três séculos depois, no contexto polêmico do iluminismo do século XVIII
e do racionalismo do século XIX, o Concílio Vaticano I, em 1869, definiu o fato
e a necessidade da Revelação Divina, cujas fontes, segundo o que ensinou o Concílio
de Trento, são a Escritura e a Tradição,
e cujo intérprete autorizado é o Magistério da Igreja.
Voltando
à Dei Verbum, logo após enunciar a proposta
do documento, os “Padres conciliares” – isto é, os Bispos participantes
do Concílio – começam a tratar do tema da “Revelação como tal”. É o assunto do
primeiro capítulo, bastante breve, da Constituição. O capítulo II trata da
“Transmissão da divina Revelação”. O capítulo III aborda a “Inspiração divina
da Sagrada Escritura e sua Interpretação”.
O IV capítulo é dedicado ao “Antigo Testamento”; o V capítulo, ao “Novo
Testamento”. Finalmente, o VI capítulo apresenta “a Sagrada Escritura na vida
da Igreja”. Nesta série de artigos, iremos explicando os vários capítulos,
subdividindo-os quando necessário. Comecemos com o capítulo I, sobre a
“Revelação como tal”.
1. Natureza e objeto
da Revelação
Etimologicamente,
“re-velar” é retirar o véu, mostrar, pôr a descoberto o que estava oculto. Se o
próprio ser humano, a vida em tantas formas, a natureza, o planeta, o universo,
é tudo um mistério de mistérios, que a ciência se esforça por elucidar, quanto
mais o Mistério por excelência, o totalmente Outro, que é o próprio Deus! Pois
bem, como lembram os Padres conciliares, “aprouve a Deus , em sua bondade e
sabedoria, revelar-se a si mesmo e tornar conhecido o mistério da sua vontade,
pelo qual os seres humanos, por intermédio do Cristo e no Espírito Santo, têm
acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina”… (cf DV 2)
Tudo isso, esse processo, esse desenrolar-se da Revelação, foi-se concretizando no
decorrer da história humana “através de acontecimentos e palavras intimamente
conexos entre si ”, os fatos corroborando as palavras, e as palavras elucidando
o mistério contido nos fatos. Culminando
essas “palavras e fatos”, o Pai enviou-nos seu Filho, o Cristo, “mediador e
plenitude de toda a Revelação” (ainda, DV 2).
2. Preparação do
Evangelho
A
vinda do Cristo, Revelação definitiva do Pai, não se realizou, porém, de modo
repentino, sem uma preparação. Além de proporcionar à humanidade um permanente
testemunho de si mesmo nas coisas criadas, Deus manifestou-se explicitamente,
desde o princípio, a nossos primeiros pais, prometendo-lhes a redenção após o
primeiro pecado, o da desobediência. A redenção, porém, não sem luta, inerente
à “hostilidade entre a serpente e a mulher” (cf Gn 3,15). A seu tempo, Deus
chamou Abraão e através dele escolheu um povo; depois, enviou a esse povo
Moisés e os profetas, “e assim preparou, ao longo dos séculos, o caminho para o
Evangelho” (DV 3).
3. Cristo, plenitude
da Revelação
Retomando
a síntese do início da carta aos hebreus, os Padres conciliares lembram que o
Filho, feito carne entre nós, isto é, assumindo nossa condição humana, por suas
palavras e obras, e especialmente por sua morte e ressurreição e pelo envio do
Espírito da Verdade, aperfeiçoou e completou a divina Revelação. [...] Já não
há que esperar, portanto, nenhuma nova revelação pública antes da gloriosa
manifestação do Senhor Jesus (cf DV 4). Todavia, como bem adverte o Catecismo
da Igreja Católica, “embora a Revelação esteja concluída, não está explicitada
por completo; caberá à fé cristã captar gradualmente todo o seu alcance ao
longo dos séculos” (CIC, 66). Nesse sentido, conforme a palavra do Senhor, uma
das missões do Espírito tem sido, e continuará sendo, a de “conduzir-nos à
plenitude da Verdade” (Jo 16,13).
4. Receber a Revelação
com fé
Diante
de Deus que se revela, a única resposta razoável é a da fé, ou seja, a
“obediência da fé”, expressão que os Padres conciliares retomam do apóstolo
Paulo (cf Rm 16,26). Quanto à própria “obediência”, notar que,
etimologicamente, essa palavra vem de “ouvir”: de fato, nós cremos não no que
sai da nossa cabeça, mas naquilo que nos é apresentado pela palavra de Deus.
Atitude contrária, portanto, à dos nossos primeiros pais, que preferiram
desobedecer. A “obediência da fé”, porém, ao mesmo tempo que é resposta
nossa, é dom de Deus: Para que se preste
essa fé, exige-se a graça prévia e os auxílios do Espírito Santo, o qual também
torna sempre mais profunda a compreensão da Revelação e a aperfeiçoa por meio
de seus dons (cf DV 5). A propósito, é significativa a resposta que o Senhor
Jesus dá aos seus apóstolos, quando
pediam que lhes aumentasse a fé: “Se tiverdes fé, pequena como um grão
de mostarda…” (Lc 17,5-6). Desse modo, eles podiam pedir um “aumento” de fé,
sim, mas sem estarem desobrigados de tê-la, mesmo se inicial, mesmo se
“pequena”. O passo da fé, porém, eles o deviam dar.
5. As verdades
reveladas
Sem
deixar de ser fundamentalmente uma atitude de confiança, a fé tem também o seu
conteúdo intelectual, isto é, propõe-nos verdades a serem cridas, uma vez que
Deus quis revelar-se como Uno e Trino, assim comunicando-se a si mesmo e os
decretos eternos de sua vontade acerca da nossa salvação. A propósito,
retomando o ensinamento do Concílio Vaticano I, os Padres conciliares asseguram
que, graças à divina Revelação, podem ser conhecidas por todos facilmente, com
sólida certeza e sem erro, aquelas verdades que, em matéria divina, não são de
per si inacessíveis à razão humana” (cf DV 6). Quer dizer, mesmo “não sendo de
per si inacessíveis à razão humana”, a graça da Revelação divina faz com que
essas verdades de fé possam ser conhecidas “facilmente, com sólida certeza e
sem erro”. Quanto a essa “certeza” e
“inerrância” da fé, notar, porém, que ela não exclui a humildade de quem
sabe, ou devia saber, que o mistério sempre nos ultrapassa (cf 1Pd 3,15-16).
Para refletir:
1.A
Dei Verbum restringe-se à “palavra de Deus” escrita, à própria Bíblia?
2.Quais
os problemas enfrentados pelos dois Concílios anteriores ao Vaticano II?
3.O
que é “Revelação”? Como aprouve a Deus revelar-se no decorrer da história?
4.Qual
a única resposta razoável a Deus que se revela? O que é a “obediência da fé”?
5.Qual
é o conteúdo intelectual da fé, além da atitude fundamental da confiança?
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