sábado, 23 de junho de 2012


JOÃO BATISTA
Joaquim Manuel Garrido Mendes,, scj

JOÃO BATISTA: O PROFETA QUE CONVIDA À CONVERSÃO
1.1 João, o profeta
Um dia, depois de ter sido interpelado pelos discípulos de João acerca da sua missão e do seu papel na história da salvação (cf. Mt 11,2-6), Jesus perguntou às multidões que o rodeavam: “Que fostes ver ao deserto? Uma cana agitada pelo vento? Então que fostes ver? Um homem vestido de roupas delicadas? Mas aqueles que usam roupas delicadas encontram-se nos palácios dos reis. Que fostes, então, fazer? Ver um profeta? Sim, Eu vo-lo digo, e mais do que um profeta” (Mt 11,7-9).
Não há dúvida: na apreciação de Jesus, João Batista é, antes de mais, um profeta. A primeira interpelação que esta figura nos faz resulta, portanto, do seu estatuto de profeta.

1.1.1 Significado de “profeta”
O que é um “profeta”? É um ser estranho e inquietante, de semblante afetado ou arisco, de ar alienado, com os olhos modestamente cravados no chão, ou perdidos num horizonte vago e indefinido, a tentar perscrutar e adivinhar o futuro, desligado do duro presente em que vive o homem real?
No nosso tempo, facilmente se concebe o “profeta” como uma mistura de adivinho, vidente ou visionário, que fala do futuro, que anuncia castigos assustadores, que desanca os seus contemporâneos com palavras ameaçadoras.
Uma imagem corrente da nossa cultura racionalista apresenta o “profeta” como um ser iluminado, desencarnado, estranho ao mundo, que se apresenta como mensageiro privilegiado de um Deus exigente, incompreensível, amargurado porque ninguém lhe liga, e que corre atrás dos homens para assustá-los com ameaças.
Talvez por isso, o mundo moderno livrou-se dos “profetas”, baniu-os, tirou-lhes o espaço, renegou-os, ignorou-lhes o testemunho, relegou-os para o quadro de um passado distante e de uma religião primitiva – autênticas figuras “de museu”. E “combinou-se” que os “profetas” nada têm a ver com o homem de hoje e com um mundo esclarecido, racional, científico, tolerante, democrático…
Na realidade, o “profeta” não é uma espécie extinta há muitos anos, como os dinossauros; não é a testemunha de um Deus intolerante, ciumento, que não compreende os homens, nem aceita a sua liberdade e a sua busca de felicidade.
O profetismo é uma realidade através da qual o Deus de ontem, de hoje e de sempre continua a vir ao encontro dos homens para lhes oferecer a vida e a salvação; o profetismo é uma realidade através da qual o Deus Criador e Libertador continua a intervir no mundo a fim de levar à plenitude a sua obra criadora.
O que é, verdadeiramente, um “profeta”? O que é que define as figuras proféticas?
No Antigo Testamento, a palavra que mais vezes aparece para definir essas figuras a quem Deus confia uma missão profética no mundo, é a palavra “nabi”. A palavra resulta do verbo “naba” - que pode significar, ao mesmo tempo, “chamar” e “anunciar”. Tomando uma forma passiva, significa “aquele que é chamado pela divindade” (aí, realça-se o aspecto da vocação); no entanto, também pode ser entendido em sentido ativo; nesse caso, significa “aquele que anuncia e proclama” (aí, realça-se o aspecto da missão).
O sentido da palavra coloca-nos, em cheio, no meio daquilo que define a figura do “profeta”: alguém que é chamado por Deus, com a missão de proclamar e anunciar algo aos homens.
Estas pessoas a quem Deus fala e a quem envia, não são seres estranhos, sobre-humanos, “à parte”, muito diferentes dos outros homens. São pessoas normais, com a sua vida e a sua história, mergulhados num determinado ambiente cultural e religioso – como nós. São pessoas marcadas pelas descobertas, conquistas, esperanças, mas também, contradições e fragilidades dos homens do seu tempo.
No entanto, apesar desta “normalidade”, há duas características que o “profeta” tem, necessariamente, de possuir: deve ser uma pessoa de uma fé profunda, que vive numa comunhão muito estreita com Deus; e deve ser uma pessoa muito atenta ao que se passa à sua volta (que está informada, que lê o jornal, que conhece os dramas do mundo e dos homens). São estas duas dimensões (uma relação muito estreita com Deus e uma grande atenção e sensibilidade aos problemas e inquietações dos homens) que definem o quadro existencial do profetismo.

a) A relação com Deus
O profeta é, antes de mais, um “homem de Deus”. O que é que isso significa, em concreto?
Significa, em primeiro lugar, que Deus está sempre na origem de toda a experiência profética.
O profeta não se torna profeta por geração espontânea, ou por herança familiar, ou por uma opção pessoal deliberada (para se realizar profissionalmente, para colher benefícios econômicos, por ânsia de protagonismo) ou porque alguém proeminente na sociedade o elegeu para essa missão; mas, na origem da vocação profética está sempre Deus que, de forma gratuita (e nem sempre compreensível à luz dos critérios humanos), escolheu esse homem ou essa mulher.
Trata-se de um elemento fundamental, verdadeiramente constitutivo do profetismo. É por isso que em qualquer relato de vocação profética transparece a consciência de que foi Deus quem escolheu o profeta, quem o chamou, quem o preparou para a missão e quem o enviou ao mundo.
Amós, confrontado pelo sacerdote Amasias no santuário de Betel (Amasias, incomodado pelas denúncias de Amós, diz ao profeta: “sai daqui, vidente, foge para a terra de Judá e come lá o teu pão, profetizando; mas não continues a profetizar em Betel, porque aqui é o santuário do rei e a corte real” – Am 7,12-13), responde: “eu não sou profeta, nem filho de profeta. Sou pastor e cultivo sicômoros. O Senhor pegou em mim quando eu andava atrás do meu rebanho e disse-me: ‘vai e profetiza ao meu Povo, Israel’” (Am 7,14-15). Noutra ocasião, Amós sintetiza desta forma esse imperativo profético que se apossou do seu coração e da sua vida: “o leão ruge; quem não temerá? O Senhor Jahwéh fala; quem não profetizará?” (Am 3,8). Não é que Amós tenha escolhido, por sua iniciativa, a vocação profética; mas foi Deus que veio ao seu encontro e que se lhe impôs. Diante desse Deus que o escolheu e que o enviou em missão, o profeta não pôde recusar nem fugir.
Jeremias, por sua vez, assume que Deus o escolheu ainda antes de nascer, o consagrou, o chamou e o enviou ao mundo com uma missão (cf. Jr 1,4-10). Numa linguagem muito própria, Jeremias compara-se a uma jovem seduzida, de quem o sedutor (Deus) triunfou: “vós me seduzistes, Senhor, e eu me deixei seduzir; dominastes-me e obtivestes o triunfo” (Jer 20,7); e, marcando bem as suas resistências pessoais, vencidas pela insistência de Deus, acrescenta: “a mim mesmo dizia: ‘não pensarei mais nele, não falarei mais em seu nome. Mas dentro de mim ardia um fogo devorador, que não podia conter nem suportar” (Jr 20,9).
Jonas, quando tomou consciência de que Deus o chamava para ir a Nínive pregar a conversão, até procurou fugir, pois a missão colidia com os seus esquemas pessoais, com o seu comodismo e mesmo com as suas convicções (cf. Jn 1); no entanto, Deus encontrou forma de conduzi-lo, mesmo contra vontade, ao encontro dessa cidade onde o profeta devia cumprir a missão que lhe tinha sido confiada (cf. Jn 2).
O “profeta” é-o, portanto, por iniciativa de Deus. É Deus que escolhe o “profeta”, que o desafia, que o seduz, que se apossa do coração do “profeta” como se fosse um fogo devorador, e que o envia em missão; é também Deus que acompanha a caminhada do “profeta”, que o protege e que lhe dá a força de testemunhar. Na vocação profética, é Deus que é determinante e não a vontade ou o gosto pessoal do homem ou da mulher.
Dizer que o “profeta” é um “homem de Deus” significa, em segundo lugar, que o profeta tem de viver uma relação muito próxima, muito íntima com Deus, pois só quem vive em comunhão, em diálogo contínuo com Deus, é capaz de escutar as suas propostas e de acolher os seus projetos. O profeta tem de ser uma pessoa que descobriu Deus, que se apaixonou por Deus, que interiorizou essa relação, que aceitou essa proximidade e que fez da sua vida um diálogo com Deus.
Enamorado de Deus, o “profeta” vive em comunhão profunda, permanente, com Deus. Esta “comunhão de vida” com Deus, vai fazendo, progressivamente, que o “profeta” se aperceba dos planos de Deus para o mundo e para os homens. Ele sabe o que Deus quer e sente-se inquieto quando os homens conduzem o mundo de uma forma diferente. A relação com Deus acende no coração do profeta esse “fogo devorador” de que falava Jeremias, e o “profeta” sente-se impelido a dar testemunho diante dos homens, a ser Palavra viva de Deus no mundo.

b) A sensibilidade aos apelos do mundo e dos homens
Por outro lado, o “profeta” não é apenas alguém que olha para o céu, mas é (tem de ser) alguém com os pés bem assentes na terra, profundamente atento ao mundo que o rodeia. É alguém que procura conhecer as questões, que está atento à forma como o mundo se constrói, que se deixa interpelar por tudo o que se passa à sua volta e que tem uma atitude consciente e crítica diante do mundo.
É precisamente essa a atitude que encontramos nos profetas de Israel. Diante dos acontecimentos que marcam a história do seu tempo, o “profeta” intervém para criticar, para aplaudir, para corrigir, para animar. Ele intervém a propósito e a despropósito, como se fosse a consciência crítica dos homens, sempre que os projetos de Deus são violados. O seu olhar crítico nem se limita à análise dos problemas – grandes ou pequenos – que marcam a história restrita da comunidade nacional israelita…
Amós, por exemplo, apresenta um conjunto de oráculos contra as nações (Síria, Filisteia, Tiro, Edom, Amon, Moab – cf. Am 1,3-2,3) que condenam alguns dos “crimes contra a humanidade” cometidos por vários povos da zona; numa época em que não existiam jornais, nem televisão, nem telefone, nem internet, o profeta manifesta um conhecimento assombroso dos fatos da política internacional e uma grande atenção à história do mundo que o rodeava.
O profeta não pode ser alguém que vive apenas de olhos postos no céu, numa angélica passividade; nem pode ser alguém que “não está para se chatear” com as questões que preocupam os seus irmãos; nem pode ser alguém que vive fechado no seu pequeno mundo, ocupado com os seus hobbys, com os seus programas de computador, com os seus livros, com as suas especulações intelectuais, ou apenas ocupado a conquistar o seu lugar ao sol na empresa; nem pode ser alguém para quem os sofrimentos e angústias dos homens não contam nada…
O profeta é alguém que se preocupa com os caminhos que os homens seguem, que não se deixa dominar pelo comodismo ou pela preguiça, que se inquieta com os sofrimentos, com as injustiças, com a violência, com a guerra, com a fome, com o pecado que vê à sua volta, que analisa as questões do mundo com os olhos da fé e que sente, em nome de Deus, a necessidade de intervir.
Conhecendo os projetos de Deus e vendo a forma como os homens edificam o mundo, o “profeta” sente que não pode ficar de braços cruzados. Em nome de Deus, ele vai denunciar as injustiças, as opressões, os egoísmos que enfeiam esse mundo que Deus quis diferente.

c) A consciência do chamamento
Como é que o “profeta” se apercebe de que Deus o chamou e o enviou ao mundo com uma missão?
Os relatos de vocação dos profetas do Antigo Testamento sugerem a existência de um momento na vida do “profeta” em que o apelo de Deus se tornou tão nítido e tão forte que toda a experiência posterior do “profeta” foi marcada por esse instante. Isto não deve parecer-nos estranho: na experiência de qualquer “chamado” por Deus, há instantes desses. No entanto, nem sempre a consciência do “chamamento” é tão nítida: o nosso Deus é um Deus discreto, que respeita a liberdade do homem e, mais do que impor, sugere de forma simples e discreta.
O que é que desperta a consciência de um “profeta”? Um sonho? Uma palavra? Uma leitura? Um apelo? Uma necessidade sentida nas contradições da vida? Uma notícia lida no jornal? Um convite do pároco?
Deus “chama” de muitas formas e cada pessoa pode descrever de forma única e pessoal a forma como se sentiu interpelada por Deus. Às vezes descobre-se o apelo de Deus no rosto de um pobre, de um escravizado, ou nos olhos sofredores de uma criança sem pão e sem esperança; outras vezes, nas páginas dos jornais; outras, nas necessidades da Igreja e da sociedade; outras, nos acontecimentos turbulentos do presente; outras, mais simplesmente, nas palavras de um amigo ou de um mestre…
Cada “profeta” terá um momento que considera fundamental na sua experiência vocacional – isto é, na sua consciência de que Deus o chama e de que o envia ao mundo e aos homens com uma missão.
É preciso também ter em conta que a experiência profética não é algo estático: o “profeta” é aquele que, dia a dia, se vai apercebendo do que Deus quer, deixa-se questionar pelos sinais do tempo e vai descobrindo, pouco a pouco, o projeto de Deus para os homens e para o mundo. É uma missão ininterrupta, cujas diretrizes lhe vão sendo reveladas dia a dia, momento a momento.
Por isso, o “profeta” é alguém muito atento aos acontecimentos da história e da vida: é aí – nos “sinais dos tempos” – que Deus lhe fala, cada dia, lhe diz o que quer e lhe sugere uma ação. É preciso, no entanto, saber olhar para os acontecimentos com os olhos da fé: só dessa forma é possível encontrar sinais de Deus nesses fatos mais ou menos banais que constituem a história da vida de cada homem ou de cada mulher.

1.1.2 O “profeta” João Batista
É possível situar a figura de João no enquadramento do que acabamos de dizer? Sem dúvida. João Baptista é uma autêntica figura profética, que Deus escolheu, que Deus chamou e que Deus enviou aos homens com uma missão. Essa missão passa, concretamente, pelo anúncio da vinda iminente do Messias e por preparar os homens para esse acontecimento fundamental.
a) Deus na origem e no centro da vocação de João
A história de vida de João Batista sugere claramente a centralidade que Deus assume – desde o primeiro instante – na vida de João.
O Evangelho da Infância de Lucas (cf. Lc 1,1-4,12) começa, praticamente, com o anúncio do nascimento de João (cf. Lc 1,5-25). Todo o quadro está composto de forma a sugerir que Deus escolheu João e o consagrou ainda antes do seu nascimento e que toda a vida de João será consagrada a Deus e vivida na órbita de Deus.
O anúncio do nascimento de João, feito a Zacarias (o pai de João) no Templo de Jerusalém (o lugar de residência de Deus) por um anjo (um enviado de Deus), é o primeiro sinal de que Deus vai desempenhar um papel primordial na vida dessa criança que vai nascer. Diz Lucas, no seu relato, que Zacarias ficou perturbado e encheu-se de temor – que é a reação humana normal, no Antigo Testamento, diante das manifestações da divindade.
Todo este quadro configura a presença de Deus, o interesse de Deus nesse menino: é na casa de Deus, através de um mensageiro que fala em nome de Deus, que o mundo fica a saber do nascimento de João… Deus está na origem do nascimento desse menino; e toda a vida de João é para Deus e compreende-se à luz de Deus.
Depois de anunciar o nascimento, o anjo deixa entender que João será sempre um “consagrado a Deus”: “Ele será grande diante do Senhor; não beberá vinho, nem bebida fermentada e será cheio do Espírito Santo desde o seio da sua mãe”.
Esta “fotografia” de João leva-nos à prática dos nazireus (cf. Nm 6,3-4) – homens de Deus, consagrados a Deus, separados do mundo profano para o serviço de Deus. Como sinais dessa consagração, os nazireus abstinham-se de vinho e de bebidas alcoólicas e deixavam crescer o cabelo (o cabelo comprido era símbolo de consagração – cf. Nm 6,9.18). O famoso Sansão, herói de Israel e instrumento de Deus para a libertação do seu Povo, era um nazireu (um consagrado a Deus, um homem a quem Deus escolheu e separou para concretizar no mundo a sua ação libertadora).
Também a definição (pelo anjo) da missão de João dará conta da ligação íntima de João com Deus e com os projetos de Deus. Nas palavras do anjo, João terá como missão reconduzir “muitos dos filhos de Israel ao Senhor seu Deus. Irá à frente, diante do Senhor, com o espírito e o poder de Elias, para fazer voltar os corações dos pais a seus filhos e os rebeldes à sabedoria dos justos, a fim de proporcionar ao Senhor um povo com boas disposições” (Lc 1,16-17). João “trabalha” para Deus. A sua missão no mundo é conduzir os homens em direção a Deus.
A centralidade de Deus na vida de João desde o primeiro instante do seu nascimento é sugerida, igualmente, na questão da escolha do nome para o menino. No oitavo dia após o seu nascimento, o filho de Zacarias e de Isabel foi circuncidado (conforme os preceitos de Gn 17,12 e Lv 12,3). Pôs-se, então, a questão do nome que devia ser dado ao menino (no Antigo Testamento, o nome era dado logo após o nascimento; mas aqui parece seguir-se o costume do helenismo e do judaísmo recente). De acordo com Lucas, todos esperavam que a criança tomasse o nome do pai – Zacarias; mas, Isabel insistiu que o menino devia chamar-se João; e Zacarias confirmou essa escolha (cf. Lc 1,57-66) cumprindo, aliás, a ordem do anjo que anunciou o seu nascimento (cf. Lc 1,13). Ora, João significa, literalmente, “o Senhor faz graça”: João é uma “graça”, um “dom” de Deus ao seu povo, o primeiro sinal de que se aproximam os tempos novos em que Deus vai oferecer ao seu povo a salvação definitiva.
Depois, nada mais se diz sobre João, até que, cerca de trinta nos depois, ele apareceu a pregar nas margens do rio Jordão. Durante esse tempo de silêncio, João terá continuado a ser um “homem de Deus”, de comunhão com Deus, que viveu uma vida de intimidade com Deus, que foi descobrindo e confirmando, dia a dia, num diálogo íntimo, que Deus o chamava e que tinha uma proposta de missão para ele?
Certamente. É impossível pensar num profeta que não tenha feito uma caminhada desse tipo.
Na verdade, a mensagem que João (por volta do ano 27) aparece a propor nas margens do rio Jordão, é um convite aos homens no sentido de voltarem para Deus e para prepararem o coração para acolher o projeto de salvação de Deus. Não se trata, portanto, de uma missão própria, da defesa de ideias ou de interesses próprios (como aconteceria, inevitavelmente se João tivesse vivido desligado de Deus), mas de uma proposta que veio de Deus, ao encontro dos homens, através de João. Ora, João só podia ser porta-voz de uma proposta desse tipo, vivendo na órbita de Deus.
Todo o quadro revela que a vida de João se entende em referência a Deus, que Deus está profundamente envolvido com João e João com Deus. Deus é o centro de referência à volta do qual toda a vida de João se constrói… E, por isso, João é, desde o princípio da sua vida, até à sua morte, um “sinal” de Deus no mundo, uma testemunha de Deus, dos seus valores, dos seus projetos.

b) A missão
No contexto do nascimento de João, Lucas põe o sacerdote Zacarias a proclamar um belíssimo cântico (“benedictus”), em que a missão de João é definida da seguinte forma: “tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo, porque irás adiante do Senhor a preparar os seus caminhos, para dar a conhecer ao seu Povo a sua salvação pela remissão dos pecados, graças ao coração misericordioso do nosso Deus, que das alturas nos visita como sol nascente, para iluminar aqueles que jazem nas trevas e na sombra da morte, e dirigir os nossos passos no caminho da paz” (Lc 1,76-79).
João é, então, um “profeta” que prepara os caminhos por onde Deus vai chegar ao coração dos homens e do mundo; através da sua ação profética, Deus vai oferecer, a todos os que estão prisioneiros das trevas e da morte, uma proposta de salvação e de vida nova.
Como é que o “profeta” João desempenha essa missão?
Como todos os profetas, João é uma voz de Deus no mundo dos homens. Através dele, Deus vem ao encontro dos homens, fá-los escutar as suas palavras, dialoga com eles, corrige, admoesta, indica caminhos.
O anúncio que Deus faz através de João Baptista concretiza-se nas palavras e nos gestos do “profeta”.
Com palavras, o “profeta” João Baptista propõe que os homens se preparem para acolher o Messias corrigindo aquilo que está mal e que os impede de acolher a proposta libertadora de Deus. Ele é definido por Lucas como “uma voz” que “clama no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, e endireitai as suas veredas’” (Lc 3,4).
E essa “voz” não se limita a dar indicações de caráter genérico, mas apresenta exemplos práticos, tirados da vida de todos os dias, para mostrar como é que se pode preparar os corações para o Senhor que vem (cf. Lc 3,7-14). O profeta João é, na verdade, a “voz” de Deus que interpela os homens, que os desafia, que os dispõe para acolher essa proposta libertadora e salvadora que, em Jesus, Deus vai apresentar ao mundo.
Essa “voz” não se apresenta com a preocupação de ser uma “voz” simpática, conciliadora, capaz de atrair as multidões pela elegância do discurso, pelo brilho das palavras ou pelo recurso a sofisticadas técnicas de “marketing”; mas essa “voz” preocupa-se em ser, apenas, o veículo dos “recados” de Deus para os homens. É dura, violenta, questionante, pois a sua missão é incomodar, provocar, levar os homens a porem em causa uma forma de viver marcada pelo egoísmo, pelo orgulho, pela injustiça.
Com os seus gestos, com a sua figura, com a sua maneira de se apresentar e de estar, o “profeta” João Baptista denuncia uma vida marcada pelo egoísmo e propõe um regresso ao essencial, quer dizer, um regresso a uma vida em que Deus ocupe o primeiro lugar na vida dos homens. O seu estilo de vida é uma denúncia dos valores que afastam os homens de Deus.
Não é por acaso, ou por uma bizarria qualquer, ou por um desejo de provocação, que João aparece vestido com peles de animais, alimentando-se de gafanhotos e de mel silvestre (cf. Mc 1,6; Mt 3,4). Ele não precisava, certamente, de se vestir e de se apresentar dessa forma “radical”; mas, conscientemente, pretende propor um estilo de vida em que os valores materiais não ocupem a primazia.
A sua atitude denuncia esses instalados, “que se vestem de roupas delicadas e gostam de morar nos palácios dos reis” (cf. Mt 11,10). Com o seu “jeito”, ele denuncia uma vida centrada no “ter”, nos bens materiais, e propõe um regresso ao essencial…
A sua figura sugere – de uma forma mais questionante do que as próprias palavras - que o fato de bom recorte, a conta bancária, a casa com piscina, o carro de último modelo, o whisky de malte com quinze anos, a frequência das festas sociais onde se reúne o jet-set, os banquetes onde se comem petiscos com nomes franceses – não são (não podem ser) os valores essenciais à volta dos quais gira a vida do homem.
João é um violento, que grita – com palavras e com gestos – a sua revolta contra uma sociedade que necessita de uma urgente conversão. Trata-se de uma sociedade fortemente marcada pelo selo do pecado, do egoísmo, da injustiça, da violência, da exploração; e o profeta João sabe que, nesse contexto, Deus não tem lugar. É necessário, portanto, questionar esses valores falsos, sobre os quais os homens constroem a existência. João vai fazê-lo com a convicção de quem crê verdadeiramente naquilo que diz, e com a paixão de quem ama aquilo em que crê.
É como “profeta” que corrige e denuncia, que João se dirige às multidões e diz: “quem tem duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma e quem tem mantimentos, faça o mesmo”; é como “profeta” que corrige e denuncia que João se dirige aos publicanos (os cobradores de impostos) e lhes diz: “não exijais mais do que está estabelecido”; é como “profeta” que corrige e denuncia, que João diz aos soldados: “não exerçais violência sobre ninguém, não denuncieis injustamente e contentai-vos com o vosso soldo” (cf. Lc 3,10-14); é como “profeta” que corrige e denuncia, que João se dirige a Herodes e lhe diz: “não te é lícito viver com a mulher do teu irmão” (cf. Mt 14,4)…
João não é inconsciente e sabe que seria mais prudente e menos perigoso adoçar as suas palavras, aceitar a realidade dos fatos, desculpando muitas injustiças; mas está consciente de se encontrar diante de uma sociedade injusta, impregnada de pecado, de exploração, de violência, de hipocrisia, e sabe que, como “profeta”, não pode pactuar com essas realidades, mesmo que assim ponha em risco a sua vida. O “profeta” não é o homem das covardes concessões, mas o homem da radical fidelidade à missão a que Deus o chamou – a missão de construir um mundo novo, edificado de acordo com o projeto de Deus.

1.1.3 A interpelação de João
A vocação profética dirá, apenas, respeito a alguns iluminados? Ou será algo que Deus quererá de todos os homens e mulheres?
Pelo fato de sermos cristãos – seguidores de Cristo – fomos escolhidos por Deus para ser “profetas” (isto é, “chamados” por Deus e enviados a apresentar ao mundo as propostas de Deus). No dia do nosso batismo, fomos ungidos com o óleo do “crisma”, que nos constituiu “profetas” à imagem de Jesus…
A vocação profética é, portanto, algo que faz parte da nossa vida e que não pode ser eliminado do “disco rígido” do nosso compromisso cristão.
Não vale a pena estar com meias palavras: quem se recusa a ser profeta, está a recusar ser um “sinal” vivo de Deus, uma testemunha de Jesus e dos seus valores; e está fora da dinâmica do “Reino”.
Para um cristão, a questão não pode ser: apetece-me ou não, tenho ou não disponibilidade, tenho ou não jeito para ser profeta? Esse problema de base já foi resolvido no dia do nosso Batismo...
A questão que podemos pôr (e que talvez devamos pôr) é antes esta: como é que eu posso viver, com fidelidade, a minha vocação profética?
É aqui que a figura profética de João – o profeta que veio preparar a vinda do Senhor – nos pode ajudar.

a) A nossa ligação a Deus
Em primeiro lugar, interpela-nos esta ligação “umbilical” de João a Deus, desde o primeiro instante da sua existência.
De entre as pretensões da modernidade, está a de fazer aparecer o homem plena e totalmente livre; e, para os homens dos nossos dias, falar de um homem livre, é falar de um homem que se basta a si próprio, que não depende de Deus e que não precisa de Deus. O homem do século XXI não é o homem que perde tempo a negar a existência de Deus; mas é o homem que não precisa de Deus para nada e vive preocupado com outras coisas mais importantes e decisivas.
O que acontece, então? Acontece que o homem não encontra ninguém a quem confiar a sua fragilidade e em quem confiar; fica, cada dia, mais só e perdido, sem referências, sem segurança, sem “salvação”. Em lugar de ser livre, o homem torna-se escravo, coloca a sua segurança e a sua esperança em certos valores e propostas que substituem Deus, mas com muita desvantagem.
Em João, encontramos o testemunho de um homem que está consagrado a Deus desde o primeiro instante da sua existência, que vive em contínuo diálogo com Deus, que vive apenas para Deus e que oferece a Deus cada pedaço da sua existência. Ele não tem medo de perder a liberdade, ou de viver uma vida sem sentido: Deus está presente na sua vida desde o primeiro instante; e ele sabe que só de mãos dadas com Deus, a sua vida fará pleno sentido.
É esta centralidade que Deus assume na vida de João que nos interpela e questiona.
Correspondermos à nossa missão profética significa, em primeiro lugar, colocarmos Deus no centro da nossa vida. Deus não é um concorrente, que nos mantém prisioneiros; mas é a nossa esperança e a nossa segurança, aquele que dá sentido à nossa existência.
O profeta João desafia-nos a ter consciência de que foi Deus quem nos chamou à existência, nos elegeu, nos consagrou para o seu serviço e nos confiou uma missão no mundo; desafia-nos a ver Deus como a origem e o centro da nossa vocação e da nossa missão; desafia-nos a fazer de Deus a nossa prioridade fundamental.
Isso significa mantermos, em todos os instantes, uma comunhão muito estreita e muito íntima com Deus, desenvolvida num diálogo muito próximo com Deus.
É impensável, para um “profeta”, viver à margem de Deus, ou manter uma vida de alheamento em relação a Deus. O profeta tem de ser alguém que reza, que escuta e reflete a Palavra de Deus, que está atento a Deus e aos seus “sinais”, que procura discernir as propostas de Deus e concretizá-las na vida. E tem de ser também alguém com o coração disponível para aceitar os desafios de Deus e para ser porta-voz desses desafios no meio dos homens.
• Já descobri que Deus me chama e me destina a missão de anunciar e proclamar um mundo novo, com palavras, com comportamentos, com atitudes?
• Como é que me situo face a essa exigência, que resulta da minha adesão a Cristo?
• Já encontrei a sua interpelação nesses fatos banais da vida, nesses “sinais” que, de forma mais ou menos discreta, Deus coloca na minha vida para me mostrar o que quer de mim?
• Tenho tempo para Deus, de forma a viver em comunhão com Ele e a aperceber-me das suas propostas e dos seus planos para mim e para o mundo?
• Ele é ou não uma prioridade na minha vida?
• O que conta mais: Deus ou certos “bens” que, na minha vida, ocupam o lugar de Deus?

b) O nosso compromisso com a missão
Em segundo lugar, questiona-nos a forma como João assume a sua missão de testemunha e se dirige aos homens… Sobretudo, questiona-nos a sua coragem, o seu empenho, a sua coerência – que vai até ao dom da vida para defender a verdade e a justiça.
O profeta não é um homem acomodado, que se enterra no seu cômodo sofá com o copo de whisky numa mão e o jornal “A Bola” na outra, a assistir de cadeirão às misérias do mundo; mas o profeta é o porta-voz de um Deus que quer um mundo melhor e luta ativamente por ele.
Ser profeta significa testemunhar, com desassombro e sem medo, a verdade, mesmo quando ela incomoda os poderosos e os donos do mundo. É o que faz João ao dizer a Herodes Antipas que ele não tem o direito de roubar a mulher do seu irmão…
O profeta não pode calar-se diante dos poderosos, que fazem as suas próprias leis e zombam dos direitos e da dignidade dos outros.
O profeta não pode pactuar com as arbitrariedades, nem encolher com indiferença os ombros diante das violações dos direitos humanos.
O profeta não pode virar a cara para outro lado a fingir que não vê quando algum irmão é maltratado e privado dos seus direitos.
O “profeta” não pode fingir que tudo está bem quando, em nome de princípios políticos ou interesses econômicos, as crianças são exploradas, obrigadas a deixar a escola para trabalhar, espoliadas do seu direito à segurança, ao pão, à instrução, ao futuro.
O “profeta” não pode calar-se quando os idosos são obrigados a viver com pensões de miséria, que mal dão para pagar os medicamentos, enquanto que a classe dirigente borboleteia de festa em festa, à custa dos pobres.
O “profeta” não pode fingir que está de acordo com aqueles que, em nome de Deus, alimentam a espiral de violência e despejam toneladas de bombas sobre populações inocentes.
O “profeta” não pode pactuar com aqueles que alimentam o racismo, a intolerância, a xenofobia, a divisão, o ódio.
O “profeta” não pode ignorar quando os esquemas de concorrência e o bem-estar da economia atiram com milhares de famílias para o desemprego e para a miséria.
O “profeta” não pode concordar com aqueles que fingem defender os direitos do homem, a sua liberdade e a sua dignidade, mas potenciam estruturas que geram morte, miséria, sofrimento, escravidão – seja na sociedade, seja na Igreja, seja na empresa, seja no próprio contexto da família.
• Tenho conseguido “desinstalar-me”, sair do meu cantinho, para levar a cabo a missão que Deus me confia?
• Sou capaz de me esquecer de mim, dos meus interesses, das minhas prioridades, para enfrentar o desafio de construir um mundo melhor?
• Quem manda: o meu comodismo, o meu egoísmo, a minha ambição, os meus medos, ou as propostas de Deus?
• Tenho procurado estar atento àquilo que me rodeia e ser uma voz crítica, questionante, preocupada em construir um mundo mais justo e mais fraterno?
• Tenho sido um “profeta” que não pactua com a opressão, com a injustiça, com a exploração, quer a que reside no meu coração, quer a que reside no mundo que me rodeia?

1.2 João e a “conversão”
Depois de termos refletido sobre o testemunho profético de João e as interpelações que esse testemunho nos traz, detenhamo-nos agora, um pouco, no convite que João faz aos homens (aos do seu tempo e aos de todos os tempos), no sentido da conversão.
De fato, o essencial do anúncio do “profeta” João resume-se na palavra “conversão”. “Convertei-vos”, diz ele, “porque está próximo o Reino dos Céus” (Mt 3,2; cf. Mt 3,11; Mc 1,4).

a) Significado de “conversão”
Quando falamos, neste contexto, em “conversão”, não estamos a falar de uma penitência externa, feita de exercícios piedosos, ou de qualquer experiência intelectual ou sentimental...
Estamos a falar de algo mais radical, expresso no texto pela palavra grega “metanoia” (“conversão”, “mudança” – a palavra usada neste contexto por Mateus e por Marcos): uma transformação da vontade, uma mudança radical de consciência, uma nova atitude de base, uma escala de valores onde o egoísmo, o orgulho, a vaidade não ocupam os primeiros lugares.
Falar de “conversão” é falar de uma mudança radical de pensamento, de uma viragem total do homem, de uma postura vital inteiramente nova.
No contexto bíblico, a palavra “metanoia” refere-se a um movimento radical, total, que leva o homem a re-orientar a sua vida para Deus. O nosso grande drama é que, com frequência, deixamos que outros valores (às vezes não tão “valorosos” como isso) sejam a nossa prioridade; e Deus passa para um plano absolutamente secundário na nossa vida…
A “conversão” é, pois, um re-equacionar a vida, de modo a que Deus passe a estar no centro da existência do homem. É uma inflexão do sentido da existência, de forma a que nem o dinheiro, nem o poder, nem o sucesso, nem os amigos, nem a família tenham primazia; é uma inversão das prioridades, de forma a que Deus e os seus valores passem a ocupar o primeiro lugar. É por isso que João assume um estilo de vida pobre e simples, denunciador dos valores materiais.
No Novo Testamento – e sobretudo nos evangelhos sinópticos – o conceito de “conversão” é entendido em referência a Cristo: converter-se é aderir à pessoa de Cristo, crer nele segui-lo no caminho do amor e do dom da vida, acolher o seu projeto e os seus valores, entrar no “Reino” que Ele anuncia. É aderir a Cristo e à nova proposta de vida que Ele traz. Isso implica, naturalmente, despir-se do egoísmo, do orgulho, da auto-suficiência, do comodismo, do viver virado para os bens materiais; e implica construir a própria vida de acordo com outros critérios e outros valores – os valores do Reino, os valores de Jesus.
É por isso que João fala de um “novo batismo” que Jesus traz, o “batismo no Espírito” (cf. Mc 1,8; Mt 3,11): trata-se de uma nova vida que Jesus vai propor aos homens e que se concretizará através desse Espírito de vida que Jesus quer transmitir a todos. Aceitar o “batismo” que Jesus traz é aceitar essa vida nova que Jesus propõe, que transforma o homem e o coloca numa nova atitude diante de Deus e diante dos outros homens.

b) A proposta de João
É esse o centro da missão profética confiada a João: propor aos homens um novo jeito de viver, onde Deus tenha a primazia.
Se o homem se voltar para Deus e colocar Deus no centro da sua vida; se o homem acolher a proposta de Deus trazida por Jesus Cristo; se o homem aceitar transformar a sua vida, de forma a acolher o projeto de Deus (renunciando aos seus esquemas egoístas, aos seus interesses materiais, ao seu bem-estar e comodismo, ao seu orgulho e autossuficiência), Deus poderá nascer em cada coração e, através dos crentes, tornar-se uma realidade viva no mundo. Haver ou não Natal, depende do acolhimento desta proposta.
Como é que João concretiza o seu apelo à “conversão”?
João Batista propõe três atitudes concretas para quem quer fazer essa experiência de conversão e de encontro com o Senhor que vem.
1.       Ao povo, em geral, João recomenda a sensibilidade às necessidades de quem nada tem e a partilha dos bens (“quem tem duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma, e quem tem mantimentos, faça o mesmo” – Lc 3,11).
2.       Aos publicanos, pede que não explorem, que não se deixem convencer por esquemas de enriquecimento ilícito, que não despojem os mais pobres (“nada exijais além do que vos foi estabelecido” – Lc 3,13).
3.       Aos soldados, pede que não usem de violência, que não abusem do seu poder contra fracos e indefesos (“não exerçais violência sobre ninguém, não denuncieis injustamente e contentai-vos com o vosso soldo” – Lc 3,14).
Repare-se como João põe em relevo os crimes contra o irmão: tudo aquilo que atenta contra a vida de um só homem é um crime contra Deus; quem o comete está a fechar o seu coração e a sua vida à proposta libertadora que Jesus veio trazer…
Em suma, “converter-se” é voltar-se para Deus, dar-lhe prioridade, torná-lo o centro da nossa vida. Para o cristão, “converter-se” é voltar-se para Deus, aderindo à proposta de salvação que Deus faz em Jesus e embarcar na dinâmica do “Reino”. Isso implica aderir a uma lógica de partilha e de serviço, ser verdadeiro, honesto e não explorar os outros, ser justo e lutar pela paz.
João é o “profeta” cuja missão é preparar os corações dos homens para que Deus lá tenha lugar. Propondo – com palavras e com gestos – uma nova atitude, João é aquele que prepara o caminho (cf. Mt 3,3; Mc 1,3; Lc 3,4-5) para que o Senhor possa chegar ao coração e à vida dos homens.

c) A interpelação que João nos faz
Em termos pessoais, falar de conversão significa, em primeiro lugar, expulsar do nosso coração esses esquemas egoístas e esses interesses pessoais que açambarcaram a nossa atenção e que usurparam o lugar que Deus devia ocupar na nossa vida. Significa identificar e banir da nossa vida esses valores que impedem a irrupção do “Reino” no mundo e na vida de cada homem.
Quais são esses interesses?
Seguindo o itinerário de João, pensemos, em primeiro lugar, na escravatura dos bens materiais…
Constatamos, hoje, que o verdadeiro motor da história é o dinheiro: ele compra consciências, compra poder, compra bem-estar, compra projeção social, compra reconhecimento e até compra amor… Por ele, mata-se, calcam-se aos pés os valores mais fundamentais, renuncia-se à própria dignidade, destrói-se a natureza, envenena-se o ambiente (que interessa o buraco do ozônio, a poluição dos rios, o desaparecimento da floresta amazônica, se isso fizer mais ricos os donos do mundo?), escravizam-se os irmãos... O dinheiro tornou-se o verdadeiro centro de poder no mundo; é a ele que tudo se subordina e submete.
No entanto, quando a lógica do “ter” domina o coração de alguém, nasce a escravidão que aliena, que causa injustiça, sofrimento e morte. O homem é envolvido numa lógica de “ter sempre mais” que o torna obcecado com os bens… Quando o homem se deixa apanhar por essa lógica, o dinheiro passa a ser o seu deus fundamental e a verdadeira “medida” que define a realização e a felicidade do homem. Ter mais dinheiro (mesmo quando já o temos em excesso) significa obter mais reconhecimento, mais valor, mais posição.
Entra-se numa viagem que nunca termina e que torna o coração do homem progressivamente surdo a outros valores. Ele deixa de ter tempo para Deus, para a família e para si próprio. Não acompanha o crescimento dos filhos, não tem tempo para os amigos, não tem tempo para saborear as coisas simples da vida, não tem tempo para o amor; e, algures durante essa cavalgada louca em direção à terra do “ter”, ele deixa pelo caminho todas aquelas coisas pelas quais vale a pena viver e lutar. Torna-se uma máquina de dinheiro, em cujos olhos brilham cifrões, não a felicidade.
João convida a não deixar que a escravatura do “ter” nos escravize, nos aliene, nos feche num egoísmo frio e estéril. João convida-nos a descobrir “o outro lado”, o oposto do açambarcamento egoísta dos bens. Ele garante-nos que a salvação do homem não está no egoísmo, mas num coração aberto aos irmãos. Por isso, João avisa que a “conversão” passa pela partilha…
Os bens que temos à nossa disposição devem ser sempre vistos como um dom de Deus e que, por isso mesmo, pertencem a todos: ninguém tem o direito de se apropriar deles em seu benefício exclusivo.
A busca desenfreada e obcecada dos bens materiais, a indiferença que nos leva a fechar o coração aos gritos de quem vive abaixo do limiar da dignidade humana, o egoísmo que nos impede de partilhar com quem nada tem, significam que no nosso coração ainda não há lugar para acolher Jesus e a sua proposta. Dessa forma, não podemos celebrar o Natal, a vinda de Jesus à nossa vida e ao nosso mundo.
As nossas comunidades e nós próprios damos testemunho desta partilha que é sinal do Reino proposto por Jesus?
Pensemos, em segundo lugar, na proposta que João faz aos publicanos: “não exijais além do que vos foi estabelecido”.
Os publicanos são, neste contexto, o protótipo daqueles que conduzem a sua vida por caminhos de desonestidade, de corrupção, de roubo, de exploração. Trata-se, infelizmente, de um clube com muitos adeptos, muitas vezes encapotados, mas sempre ativos e em busca de oportunidades de negócios.
Para a nossa mentalidade, são absolutamente dignos de reprovação aqueles que assaltam um banco de armas na mão ou que nos apontam uma seringa infectada para arranjar uns escudos para “o vício”; mas não nos parece tão chocante se alguém usa esquemas imorais (às vezes lícitos, do ponto de vista legal, mas imorais) para enriquecer rapidamente: achamos que eles são apenas espertos e até admiramos a sua habilidade…
No entanto, podemos pactuar com os processos mais ou menos engenhosos de fuga aos impostos, que prejudicam toda a comunidade?
Podemos aceitar os esquemas de branqueamento de dinheiro sujo (às vezes, dinheiro que vem do comércio da droga, ou do contrabando de armas), mesmo se esse dinheiro traz benefícios à economia nacional?
Podemos aceitar com indiferença as falcatruas cometidas com os dinheiros da nação – com o dinheiro que pertence a todos e que devia servir para proporcionar melhores condições de assistência médica, de educação, de segurança aos cidadãos?
Podemos achar normal que se trafique com bens de primeira necessidade, ou que se ganhe dinheiro com a venda de produtos que são um perigo para a saúde pública?
Podemos aceitar que se paguem serviços políticos ou econômicos ao partido ou à família com cargos públicos bem remunerados?
Devemos encolher os ombros e achar que “é normal” que os grandes tubarões da finança combinem negociatas que devoram os pequenos investimentos e as economias dos pobres?
João Batista acha que não e não fica indiferente nem calado diante de um quadro de desonestidade, de especulação, de exploração. Ele sabe que numa sociedade onde alguns, para salvaguardarem os seus interesses egoístas, prejudicam toda a comunidade, não há lugar para Jesus nem para o “Reino”.
Pensemos, em terceiro lugar, na questão da violência, da opressão, da injustiça. A pergunta dos soldados (“e nós, que devemos fazer?”) dá a João, a oportunidade para abordar esta questão.
No séc. I, o Povo de Deus conhecia a dura experiência da opressão. Os mercenários romanos comportavam-se verdadeiramente como senhores absolutos em terra conquistada. Impunham-se pela força, aterrorizando as populações; mal pagos, exigiam com frequência tributos para deixar as aldeias e as pessoas em paz. É o problema da violência gratuita e injustificada por parte daqueles que detêm o poder das armas, frente aos pobres e débeis.
Este problema continua a ser de uma atualidade impressionante. Os militantes de qualquer grupelho terrorista fazem explodir aviões cheios de inocentes, destroem prédios onde vivem milhares de pessoas, colocam bombas que matam indiscriminadamente, em nome da luta pela a justiça e pela liberdade; os governos instituídos respondem na mesma moeda, lançam toneladas de bombas sobre “alvos seletivos”, massacram populações inteiras e justificam-se dizendo que são os “danos colaterais” da guerra contra o terrorismo…
Os estados promulgam leis violentas, que reduzem os direitos dos trabalhadores e que saqueiam os bolsos dos pobres; reprimem os imigrantes clandestinos e repatriam-nos, condenando-os a uma vida sem qualquer perspectiva, de miséria e de morte…
Nos tribunais, os pobres têm de esperar vários anos, antes que lhes seja feita justiça (e, muitas vezes, não há justiça, porque o crime prescreveu, ou o juiz não tem a coragem de afrontar os direitos dos ricos e dos poderosos); nas repartições públicas, os funcionários gastam o tempo a tomar café ou a conversar sobre assuntos triviais e deixam as pessoas a esperar, durante várias horas, que alguém se digne prestar-lhes atenção; nos hospitais, as pessoas fragilizadas pela doença têm de esperar várias horas nos corredores, antes que alguém se digne atendê-las e tomar conta dos seus padecimentos…
Nas próprias famílias, acontecem casos de crianças maltratadas, impedidas de viver uma infância normal; e, tantas vezes, a violência familiar derrama-se sobre as pessoas mais frágeis, quer do ponto de vista físico, quer do ponto de vista psicológico, quer do ponto de vista econômico…
É neste contexto que continua a ecoar a palavra de João: “não exerçais violência sobre ninguém”…
É um apelo a respeitar o outro, a respeitar a sua dignidade e integridade, a respeitar os direitos de todos aqueles que vivem ao nosso lado numa situação de fragilidade e de debilidade. É um apelo a substituir as relações baseadas no poder, na prepotência, por relações baseadas no amor e no serviço.
O apelo do profeta João é claro: não é possível acolher o Senhor que vem e embarcar na proposta do “Reino”, enquanto houver nos nossos corações sinais de intolerância, de prepotência, de abusos de autoridade, de indiferença pela sorte dos irmãos que sofrem e que dependem de nós; não é possível Jesus nascer no nosso coração e na nossa vida quando ainda não nos livramos da tendência para a injustiça, para a violência e não assumimos uma atitude de humildade, de simplicidade, de amor e de serviço.
• Diante do apelo à “conversão”: estou disposto a pôr em causa os meus esquemas (se chegar à conclusão que eles não se regem pelos critérios de Jesus)?
• Aceito tentar a ruptura com os valores egoístas e comodistas que ainda podem residir em mim?
• O que é que eu teria – prioritariamente – de mudar, a fim de que Jesus encontre um lugar quente e acolhedor no meu coração e na minha vida?
• Tenho lugar para as propostas libertadoras que Ele traz, ou estou demasiado apegado às minhas coisas, aos meus interesses, aos meus pequenos egoísmos?
• Estou disposto a acolher Jesus – sabendo que acolher Jesus é aderir aos seus valores e às suas propostas – e, depois, a anunciá-lo, a dá-lo aos meus irmãos?

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