quinta-feira, 23 de outubro de 2014

V Centenário Teresiano

TEMAS DE TEOLOGIA TERESIANA
CAPÍTULO 2
O CRISTO DE SANTA TERESA
Frei Jesus Castellano Cervera, OCD

Introdução

A experiência viva de Cristo acha-se no centro da espiritualidade de Santa Teresa de Jesus.

Os estudos realizados recentemente durante o IV Centenário da morte da Santa de Ávila e o balizado testemunho do magistério de João Paulo II a respeito colocaram em realce a centralidade do mistério de Cristo na mística teresiana. É ótimo que os estudiosos o tenham feito. Ao acentuar o cristocentrismo encontra-se o fecho de abóbada de toda a espiritualidade teresiana; que é assim libertada de toda a suspeita de misticismo exotérico e toda tentativa de interpretação intimista. É claro que a oração permanece a mensagem central da Santa de Ávila, a sua especialidade carismática na Igreja; mas não se pode esquecer que a oração é uma procura de Cristo e um diálogo com Ele, para tornar-se imitação e para desabrochar, por dom gratuito de Deus, na experiência mística de “vida em Cristo” que seu lógico desfecho no mistério trinitário. A oração, portanto é toda relacionada a Cristo, à comunhão com Ele, à transformação nele. O caminho da oração é um lento amadurecer da conformação a Cristo.

Se nos é consentido falar de uma “cristologia teresiana”, é somente na medida em que a experiência de Teresa a respeito traz também um profundo conhecimento do mistério de Cristo; mas os teresianistas preferem falar de uma “cristologia existencial” ou até de uma “cristopathia”, para acentuar o fato da vida, da experiência, do viver em Cristo, da penetração vital do mistério de Jesus.

A apaixonada pesquisa suscitada neste setor da doutrina teresiana é bem-vinda e oportuna neste momento. A questão sobre Jesus acha-se no centro da pesquisa bíblica, da hermenêutica, da teologia, da espiritualidade. Certamente Teresa de Jesus não pode resolver os graves problemas dos teólogos, não oferece a chave da hermenêutica bíblica. Mas Teresa de Jesus é testemunha de Cristo; fala-nos com competência da sua experiência a respeito. Fala também com a paixão de uma vida vivida com Ele e por Ele; com a profundidade de quem “viu” o Cristo e o “experimentou” na própria existência. O seu testemunho possui o toque original de uma mulher que fala de Cristo com a sensibilidade que nela suscita o fascínio de Jesus. E é a partir de Cristo que Teresa nos faz compreender o sentido da existência cristã, o valor do homem, o sentido da Igreja.

A acentuação teresiana na cristologia e na cristopathia é a divina-humanidade do Senhor, como ela o compreendeu na sua apaixonada procura juvenil, como a experimentou na sua maturidade mística.

Queremos traçar as linhas essenciais desta pesquisa e desta irrupção mística para compreender quão profundo seja no pensamento teresiano sobre a vida espiritual o cunho cristológico.

1. Modernidade da experiência teresiana
Seja-nos permitido colher logo a modernidade de Teresa na sua cristologia existencial. E modernidade neste campo não quer dizer o novo mas o verdadeiro, o tradicional e o sempre jovem sentido da Igreja, a autêntica profissão de fé.

Não é difícil colher na visão teresiana de Cristo uma série de convergências doutrinais que agora queremos apenas esboçar.

As fontes do conhecimento de Cristo para Teresa permanecem os Evangelho e as Cartas de
São Paulo. Apesar do seu conhecimento ser muito fragmentário a respeito, ela compreendeu o essencial.

A. Na linha da revelação.
Na linha dos Sinópticos, a cristologia teresiana é a procura e a complacente comunhão com Jesus de Nazaré como aparece nos evangelhos, na sua qualidade de Mestre, na sua inconfundível humanidade que, como se verá, foi determinante para salvação e a libertação de Teresa como mulher. Um ponto de referência que se transmuda também numa relação de seguimento, de imitação, de escuta que o torna próximo, contemporâneo através da Eucaristia e a oração à experiência dos discípulos.

Na linha joanina Teresa soube colher alguns traços característicos do quarto evangelista: o seu recurso às expressões-chave de João: Jesus é vida, verdade, caminho, luz, porta; o contato vivo de Jesus com a Samaritana, o cego de nascença, Lázaro ressuscitado; a lembrança das palavras mais altas de Jesus que se encontram no Evangelho: o amor fraterno, a promessa da inabitação, a oração sacerdotal, a paz do Ressuscitado, a consciência de que sem Cristo não se pode nada. Um Cristo de quem se vive, com quem se vive.

Paulo, porém permanece o ponto referencial mais próximo da experiência teresiana de Cristo. Talvez porque Teresa se considera pecadora e se espelha no apóstolo. Sem dúvida porque o Cristo da glória fez irrupção na sua vida como na de Paulo. Dele, devotíssima, Teresa pegará emprestadas as palavras da experiência cristológica nos textos autobiográficos da carta aos Gálatas, aos Filipenses, aos Colossenses, para dizer também como se vive e se morre em Cristo.

B. Na profissão de fé eclesial.
A fé cristológica de Teresa é perfeitamente ortodoxa e eclesial; é claramente calcedônica. É uma clara afirmação da divindade de Cristo e da sua humanidade. As fórmulas teresianas são límpidas: “Sacratíssima humanidade”, “divino e humano juntamente”; até a última expressão escrita no final do livro das Fundações, poucos meses antes de sua morte: “Ó meu esposo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem” (F 31,47). A insistência teresiana é motivada; não é mera afirmação da fórmula dogmática; é a reação convicta contra as tendências, recorrentes na história e presente no seu tempo, de um larvado “monofisismo”, de um neo-platonismo espiritual que colocava na sombra a plena humanidade de Cristo. Hoje talvez, o perigo é diferente: o “nestorianismo” larvado acentua a humanidade de Jesus, mas coloca na sombra a sua divindade. Teresa, porém é segura, firme na sua profissão de fé. Obviamente, nenhuma dúvida sobre a divindade do Senhor, Filho de Deus igual ao Pai; nas suas visões trinitárias frisa com precisão esta comunhão na natureza e distinção das pessoas, com fórmulas de perfeita teologia trinitária (R 16 e 33).

O perigo do seu tempo era de certo “docetismo teológico” a respeito da humanidade de Cristo, afirmada nas palavras mas negada nas consequências. Para Teresa, pois, a humanidade de Cristo é verdadeira, real, autêntica, é o princípio da sua salvação, a sua libertação; é a condição perene e providencial de Cristo enquanto mediador e mestre, caminho e porta rumo à Trindade. Combate com garra teológica, não sem vibração existencial e de sensibilidade feminina, quantos querem subtrair a humanidade de Cristo do caminho da perfeição, especialmente nos graus mais elevados da oração. E confirma com a sua experiência do Ressuscitado que no centro da mística cristã está a sacratíssima humanidade, verdadeira, real, embora gloriosa e glorificada; no seio da Trindade Cristo não é uma divindade que absorveu a humanidade. A relação de Teresa com o Senhor Jesus é cheia de condescendência e comprazimento por sua sensibilidade humana, como demonstrada nos Evangelhos; assim acontece no início da sua oração. Mas no cume da mística o estupor e, também aqui, o secreto comprazimento em ver que o Ressuscitado não é somente “divino e humano simultaneamente” na sua companhia, mas que também as suas palavras, os seus gestos são humaníssimos, em tudo semelhantes aos gestos realizados com os discípulos depois da sua ressurreição Assim Jesus Ressuscitado reparte o pão para Teresa e a convida a aproximar suas mãos do costado (cfr. Relação 15,6 e 26).

C. Na progressiva experiência cristocêntrica.
A progressividade da experiência de Cristo, como é testemunhada autobiograficamente e exposta doutrinalmente no livro das Moradas, segue o caminho clássico do itinerário cristocêntrico do discípulo de Jesus, do batizado que toma consciência do mistério da própria existência referida a Cristo. Primeiramente temos a procura de Cristo para o encontro com ele; segue a escuta da sua palavra até as exigências mais profundas; a escuta torna-se seguimento até a radicalidade de Jesus que requer a escolha total. A esta altura, a vida em Cristo, já presente no batismo, tornou-se “atração” interior rumo ao Mestre; começa a manifestar-se como graça de comunhão para permanecer nele; a conformação interior torna-se a experiência de estar escondidos com Cristo em Deus, conforme a fórmula paulina que Teresa cita. A conformação e a comunhão desenvolvem todas as possibilidades até uma transformação interior, uma “união” com Cristo na vida contemplativa e na vida apostólica; uma assimilação ao Crucificado em que o místico reproduz os traços daquele servo e escravo do desígnio de Deus Pai. Se a graça cristológica tem este dom para o discípulo, a sua participação na “Koinonia” trinitária se torna evidente na experiência inefável da inabitação trinitária e na comunhão com as três divinas pessoas, como acontece com Teresa.

Todas as etapas da vida espiritual são cristológica desde o possível ponto de partida – o pecado e a conversão - onde Cristo aparece com clareza, para mais esconder esta sua função como Salvador e Redentor. Este, por exemplo, o itinerário dos livros das Moradas onde Cristo não só aparece com caminho e imagem do homem novo, mas também como Salvador e Redentor, modelo e forma interior do cristão.

D. O sentido “teantrópico” da salvação
Na visão teresiana de Cristo e nas consequências da redenção e da vida em Cristo, o fato da “divina-humanidade” não é marginal; é essencial. Talvez quem melhor intuiu a modernidade de Teresa neste campo foi J. Moltmann que aplica com precisão o axioma teológico dos padres da Igreja à doutrina teresiana. Escreve Moltmann: “Nos seus escritos didáticos Teresa segue o antigo pensamento sobre a salvação da primitiva igreja: Deus torna-se homem, para que nós homens participemos da divindade de Deus... O caminho da perfeição e o ingresso no castelo da alma comentam a segunda parte deste pensamento: “para que os homens se tornassem participantes da divindade”. Moltmann intui mas não prova. Todavia a intuição é válida e merece uma explicação mais aprofundada.

O apego de Teresa a sacratíssima humanidade de Cristo, tornando-se tese forte da sua doutrina nos momentos polêmicos dos seus escritos, como nos capítulos 22 da Vida e 7 das 7M do Castelo Interior, coincide coma primeira parte do axioma patrístico: Deus se tornou homem; a humanidade de Cristo não é apenas aparência; é o princípio da própria salvação.

Neste princípio o fecho de abóboda da salvação humana: Cristo é modelo, e salvação e redenção por meio de sua humanidade, é o mediador. Poderia sintetizar bem esta convicção uma frase do pequeno poema de Natal onde Teresa diz: “Que ya el hombre és Dios” (O homem já é Deus). É a descida de Deus ao homem, a sua condescendência, tão apreciada por Teresa, de um Deus que encontra suas delícias com os filhos dos homens numa amizade que se torna comunhão.

Há também o outro aspecto: “para que o homem participe da natureza de Deus”. O caminho da oração é um processo lento para tornar-se, como diz Teresa, “da condição de Deus”. A lei da amizade e da comunhão que estão à base mesma da oração no seu aspecto de transformação, garantem esta visão da participação; a oração é caminho de “deificação” numa lenta e progressiva maturação e transformação. No vértice desta transformação encontram-se as expressões da “união com Deus” que é união e comunhão com Cristo e com a Trindade, descrita com traços vigorosos nas sétimas moradas, recorrendo a textos da Escritura e simbolismos da natureza. Uma síntese nós encontramos também na ousada oração da

Exclamação 17; aqui encontramos as frases mais altas que dizem “deificação” do homem, embora mantenha a distinção pessoal entre o homem e Deus: chegar a ser “naturalizado com a própria vida do teu Deus”, “entranhados” neste “sumo bem”, tornando-se “participantes da divina natureza” (“particioneros de la divina naturaleza) (Exclamação 17, 4-5).

Mas o equilíbrio do “teandrismo” da salvação também se pode constatar com outras expressões teresianas. Se é verdade, como já afirmamos, que a humanidade de Cristo não é absorvida pela divindade e que Teresa faz questão de frisá-lo a partir da fé e da própria experiência, é também verdade que o caminho da deificação não representa para o cristão uma reabsorção da sua humanidade, uma negação do corpo e da sensibilidade e muito menos das atitudes humanas do verdadeiro amor do próximo; melhor, é na humanidade do cristão, transformado em Cristo, que a graça adquire densidade histórica, social, exprime-se em gestos e atitudes humanas. No rosto do cristão que seguiu o caminho da oração delineiam-se com clareza os traços humaníssimos de Jesus de Nazaré até a humanidade suma que aparece no Crucificado (cfr. 7M 4,4-8).

Por isso o caminho da oração é cristocêntrico e “teândrico” ou “teantrópico”, divino-humano, uma experiência em que o homem deixa espaço para Deus tornar-se nele o princípio do viver e do agir. A oração é a busca de Cristo que se torna presença interiorizada, e depois, ainda, vida emergente do mistério da comunhão com Ele, como documenta claramente toda a doutrina teresiana e toda a sua pedagogia do encontro, da escuta, da comunhão vital.

Resumindo as convicções profundas da Santa se pode afirmar que a fé lúcida de Teresa, a sua confissão sem titubeios da divina-humanidade no Cristo, se estabelece sobre este duplo princípio:

- sem a humanidade de Cristo, não há salvação para o humano, não há modelo de perfeição para o homem, não existe possibilidade de uma comunhão perfeita com Deus; com a humanidade de Cristo tem-se a fonte da graça, a porta que conduz ao Pai, o modelo da existência redimida e transformada;

- sem a divindade de Cristo, não há possibilidade de elevação, de deificação, de graça que desde dentro muda e transforma.

Na sacratíssima humanidade temos o princípio da salvação e a medida da transformação, da “deificação”; o modelo de uma santidade na qual resplandece também o rosto humano do Filho de Deus.

Esta premissa oferece-nos a chave de leitura da singular experiência cristológica teresiana na qual queremos frisar os traços divino-humanos do Senhor Jesus, amigo, esposo e salvador.

2. Um encontro decisivo em três tempos
Podemos afirmar que o encontro de Teresa com Cristo aconteceu em três tempos característicos: a procura, a crise, a presença. O livro da Vida pode ser lido nesta chave. Há uma primeira parte da vida teresiana que é toda ela o momento inicial cristocêntrico: Teresa procura Cristo; temos depois a parte final em que prevalece outro aspecto: Cristo procura Teresa; seria, pare entendermos, a primeira fase ascética que se estende da juventude à vida religiosa; e a segunda fase mística que segue à “conversão”. Mas entre essas duas fases faz-se mister colocar um período de crise que se resolve na “conversão” e que supõe uma singular experiência de salvação e de redenção. Mas não se deve esquecer que esta visão da própria existência é marcada pelo encontro com o Cristo ressuscitado, é interpretada à luz daquela “experiência pascal” que condiciona também nela a capacidade de exprimir-se para transferir por escrito a narração da própria história. Veja brevemente estes três tempos.

A. A procura do Cristo do Evangelho
Podemos dizer que uma verdadeira procura de Cristo na vida de Santa Teresa se pode documentar desde os primeiros anos da sua juventude, após a crise afetiva da adolescência que provocou o seu forçado retiro como aluna interna no mosteiro das agostinianas de Ávila. É aqui que emergem as primeiras lembranças de uma fé conscientemente endereçada ao encontro com Cristo através da leitura do Evangelho ou com referências a episódios evangélicos. O exemplo de uma sua mestra, Maria de Briceño, é determinante. É o seu testemunho pessoal que a põe em contato com o texto do Evangelho: “muitos são os chamados mas poucos os escolhidos” (V 3,1). Experimenta ler a paixão do Senhor, mas a sua insensibilidade a coloca em crise: “o meu coração era então tão duro que seria incapaz de derramar uma lágrima sequer lendo por inteiro a Paixão do Senhor: o que muito me afligia”.

Típica reação de uma adolescente em crise de vida e de fé. Abrem brecha no coração os bons livros e as boas companhias. Teresa fala claramente da “força que exerciam no seu coração as palavras de Deus quer lidas quer escutadas” (V 3,5). Aquele coração duro, agora inicialmente amolecido pela força da Palavra de Deus, responde generosamente. A decisão por Cristo transforma-se numa escolha de vida monástica; aos possíveis medos e incertezas, compreensíveis numa jovem do seu tempo, responde com o seu olhar fixo em Cristo: defendia-me chamando à mente o que Cristo tinha sofrido, e que não era certamente grande coisas que eu sofresse algo por Ele, muito mais que a sua ajuda não teria certamente faltado”.

Mas Teresa já sentia que o Senhor estava atuando na sua vida (V 3,6 e 3).

Os primeiros anos de vida religiosa foram marcados também por especial fervor cristocêntrico. Viveu sua profissão como um “casamento” com Cristo. E a sua vida estava toda ela endereçada ao Senhor mesmo através de detalhes como o desejo de mandar pintar a sua imagem. A sua oração era também tipicamente cristocêntrica: “O meu método de oração consistia em fazer tudo para ter presente dentro de mim Jesus Cristo nosso bem e Senhor. Se meditava uma cena de sua vida procurava representá-la na alma...”. Mesmo quando não conseguia representar-se a humanidade de Cristo sentia a sua presença (V 4,7).

Nesse longo período de procura podemos colocar a descoberta de muitos textos evangélicos que Teresa cita, de tantos episódios do Evangelho aos quais é particularmente afeiçoada. A leitura pessoal que faz do Evangelho e de Cristo parece ser guiada por algumas diretrizes originais:

- sente-se em particular sintonia com alguns episódios evangélicos nos quais são protagonistas as mulheres e identifica-se com suas experiências;
- interpreta com particular sensibilidade feminina algumas passagens da vida do Senhor;
- fixa ao olhar nos sentimentos humanos de Cristo, na sua profunda e verdadeira humanidade.

Baste para ilustrar essas afirmações recordar alguns temas e alguns textos.

a) Entre as mulheres do Evangelho prefere a samaritana de quem meditou longamente seu relacionamento com o Cristo até se tornar para ela modelo e tipologia da oração e da graça da água viva. São-lhe também familiares as duas irmãs de Betânia, Marta e Maria; fala com frequência, revelando assim certa predileção, de Marta que defende sempre, invertendo uma exegese muito negativa a respeito do serviço de Marta que ao contrário, Teresa aprecia e louva. Maria Madalena, a pecadora que segue depois o Cristo até a cruz e à ressurreição, é uma personagem muito amada por Teresa que se considera também pecadora e que por muito tempo meditou sobre o episódio do evangelho que fala do perdão que Jesus lhe concede na casa de Simão.

b) São muitos os episódios evangélicos nos quais Teresa se personifica e dos quais oferece a sua original interpretação. Baste pensar até que ponto conseguiu mergulhar na meditação da oração do horto, episódio que marcou a sua oração e sua participação no mistério de Cristo (V 9,4). Curiosa também a exegese quase apócrifa, mas significativa, que desde jovem faz do ingresso de Jesus em Jerusalém: Teresa imagina a pouca delicadeza dos que o acolheram em triunfo mas não o convidaram para comer, tendo o Senhor de retornar a Betânia (?). Esta ingênua interpretação cria porém em Teresa forte participação que o Senhor recompensa um dia com uma visão cheia de condescendência (Relação 26).

c) Finalmente, é característico da Santa o contínuo recurso aos sentimentos humanos do Senhor como aparece no Evangelho. Sejam suficientes dois textos entre tantos: “Cristo é sempre um boníssimo amigo e nos é de grande companhia porque O vemos homem como nós, sujeito às nossas mesmas fraquezas e sofrimentos...”; “Compreendia que se Deus é também homem e que, como tal, não só não se admira da fraqueza humana, mas sabe também que esta nossa natureza cai muitas vezes, por causa do primeiro pecado que Ele veio reparar” (V37, 5.8).

Esta original meditação do evangelho cria pouco a pouco em Teresa profundas convicções e desencadeia com o passar do tempo experiências libertadoras. A sintonia com a humanidade de Cristo, a apaixonada defesa da oração como meditação do Evangelho e encontro com o Cristo na sua humanidade sacratíssima tem algo de visceral, de profunda ressonância humana e também de certo aspecto polêmico feminino. É fácil intuir em Teresa essas duas fundamentais convicções que amadurecem nela como experiência de alegria libertadora num particular contexto ambiental que se espelha na teologia e na espiritualidade, na vida ordinária.

1) Teresa aparece na sua autobiografia profundamente humana, sensível capaz de amar e de acolher a amizade. Os seus sentimentos humanos nem sempre encontraram equilibrada expressão. Ela mesma pode constatar em seu mosteiro, e experimentará na sua crise pessoal, que a sua humanidade até a sua corporeidade ou é assumida pela graça ou escorrega em perigosas repressões ou indevidas e morbosas aberrações. O profundo apego a Cristo é também descoberta libertadora que não deve envergonhar-se do humano que está nela, e juntamente que somente Cristo pode reequilibrar com a sua presença e o seu exemplo a própria humanidade. Cristo deverá relevar e reerguer quanto caiu na humanidade e nos sentimentos, mas não sufoca a humanidade, não a mortifica; simplesmente a salva. É a libertação do humano, a possibilidade de uma integração no caminho da santidade; sem ignorá-lo, porque “não somos anjos”; sem nos ufanarmos do humano, visto que temos necessidade redenção.

2) Os ares tipicamente femininos com que Teresa se identifica com as mulheres do evangelho tem por de trás de si uma profunda descoberta libertadora da qual Teresa vai dizer alguma coisa somente no momento oportuno. Poderia resumir-se nestas palavras: Jesus demonstrou que estava do lado das mulheres, e as mulheres demonstraram estar do lado dele.

O antifeminismo teológico e espiritual que surdamente ou abertamente podia expressar-se ao redor de Teresa, torna-se contraditório a uma simples leitura evangélica. Embora os teólogos fossem contra as mulheres, principalmente teólogos como Melchior Cano, os espirituais eram-lhe favoráveis, como caso de Pedro de Alcântara. Mas, em todo ocaso, Jesus não pensava assim. A sua condescendência e abertura, a sua delicadeza com as mulheres que aparecem no Evangelho, a sua aberta defesa das mulheres desautorizava de repente tantos antifeminismos dos teólogos. E também por isso Teresa sentia uma profunda gratidão por Jesus na sua humanidade, cheia de amor pelas mulheres; amor pelo qual Teresa sentir-se-á também profundamente envolvida, como a Samaritana, Maria de Magdala ou as irmãs de Betânia. Não nos maravilhará a sua reação em defesa das mulheres e também a sua resposta de profundo amor e serviço eclesial para o Senhor e Mestre (cfr. C 3,7, nota e R 19).

Nesses dois elementos a ponte que une as duas margens: da humanidade de Teresa à de Cristo. Uma experiência esta, na qual são amadurecidas profundas convicções espirituais.

B. As crises e conversão
A procura teresiana de Cristo passou pelo cadinho de uma crise complexa. Foi uma crise da oração e também da vida religiosa que Teresa conta com acentos dramáticos no capitulo 7 da autobiografia. De um lado, uma perseverança na oração comprometida somente por um breve período de abandono, em que não logra nada; simultaneamente temos uma crise de tibieza da vida religiosa, provocada especialmente pelo chamado de Deus a uma vida mais generosa e empenhada. O abandono da oração foi recordado por Teresa como princípio da tentação de Judas: subtrair-se ao olhar de Jesus.

Mas, a raiz de tudo, para que tenha havido uma crise cristológica apenas acenada pela santa. Ter-se-ia tratado de um temporário esfriamento com o Cristo e a sua humanidade, bem no momento em que a sua sensibilidade mais necessidade tinha, para ir à procura de novas experiências de oração sobrenatural. O pesar teresiano transparece em certas páginas autobiográficas: “Sempre fui muito devota de Cristo. Foi somente nesse tempo que abandonei a sua sacratíssima Humanidade... Será possível, meu Senhor, que tenha estado por um instante no meu pensamento a ideia de que me havíeis de impedir alcançar o maior bem?” (V 22,4). Sem este ponto de equilíbrio, toda a psicologia e toda a vida religiosa de Teresa ressentiram as consequências: aridez, fraqueza, certa esquizofrenia espiritual”, numa dicotomia entre vida de oração que queria voar rumo a horizontes espirituais inalcançáveis, e uma medíocre vida religiosa para o que podiam ser as suas aspirações, ou os “gemidos do espírito” que anunciavam os tempos de uma vida nova.

Nesta crise recebe um suplemento de graça. Uma providencial manifestação de Cristo, não sobrenatural , mas fortuita, a contemplação de uma imagem dele, provoca uma conversão que se torna o ponto decisivo na sua subida rumo a “vida nova”. Anuncia-se a mudança, a inversão de marcha: Cristo vem à procura de Teresa (V 9,1-3). O encontro da conversão, prolongado no novo fervor de vida e de oração, carrega também o sinal de uma experiência particular de Cristo na sua divindade-humanidade: Jesus é o Salvador de Teresa; diante dele se prostra como a Madalena pedindo perdão e salvação; o efeito desse encontro constitui também o início de uma vida nova que Teresa experimenta como vida para Cristo, polarizada já por uma atração irresistível que a coloca na órbita de Deus. De fato ela realiza um retorno à sacratíssima humanidade, e Cristo começa a fazer sentir sua presença ao tomar a iniciativa do encontro: Ao passo que fazendo oração eu procurava colocar-me ao lado de Cristo, como disse, e às vezes enquanto lia, sentia ser invadida improvisamente por um sentimento tão vivo da divina presença que não podia de modo algum duvidar que estivesse Deus em mim e eu nele” (V 10,1).

A crise resolveu-se numa conversão e no início de uma graça de vida em Cristo; mas a crise é salutar; aprofunda em Teresa o senso da pobreza, da humildade; supõe transferir a confiança em si mesma para Deus, para o Cristo; foi uma ressurreição, uma libertação do mais subtil dos laços, o do egoísmo e da excessiva confiança em si mesma: “Seja bendito Aquele que me manteve em vida para fazer-me sair de morte tão mortal...”; “Seja bendito o Senhor que me libertou de mim mesma...” (V 9,8; 23,1). Trata-se de uma fundamental graça cristã, a da libertação e da redenção, percebida claramente como graça e como necessidade absoluta; graça que marca para sempre a consciência que Teresa tem da sua condição de pecado e de dívida de eterna gratidão para com Deus. Também aqui o Cristo na sua condescendência desceu até o pequeno inferno de Teresa, para libertar com o seu amor cheio de humanidade uma humanidade que tinha profunda necessidade de ser salva e curada.

C. “O Encontro pascal”
Até este momento prevaleceu no itinerário de Santa Teresa, a procura pessoal, mesmo que obviamente apoiada e precedida sempre por uma graça na qual Deus está sempre presente, “desejoso” (“ganoso”) de receber o sim livre e consciente da sua existência aflita. Prevaleceu também a imagem do Cristo homem na moldura evangélica das suas leituras, das imagens que prefere, da oração com que o acompanha e o “representa”, no sentido de “torná-Lo presente”.

Com a conversão inicia uma nova etapa na qual prevalece, mas sem que se percam as riquezas do primeiro encontro, a graça de Cristo que toma agora a iniciativa de “tornar-se ele mesmo presente”. Ademais, ao Cristo do evangelho e ao Cristo da Paixão sucede agora uma consciência mais clara do Ressuscitado, do Cristo pascal, esplendente pela luz da divindade e do poder da vida nova, que emerge da experiência da graça como vida própria de Teresa, até tornar-se Aquele-que-a-vive desde dentro.

As etapas progressivas desta nova experiência poderiam ser avaliadas teologicamente tendo presente os conteúdos num crescente característico:

a) Revelação de Cristo como Livro vivo e mestre interior do qual Teresa torna-se discípula beneficiada. Na famosa repressão cultural realizada pela Inquisição em 1559, quando foram censurados muitos livros em língua vernácula, entre os quais a Bíblia, Jesus fê-la ouvir estas palavras significativas: “Não te aflijas porque eu te darei livro vivo...” Os efeitos foram nítidos: “O Senhor instruía-me com tanta ternura e em diversas maneiras que quase não tive mais necessidade livros... Então para aprender a verdade não tive outro livro além de Deus. E bendito esse livro que tão bem impresso o que se deve ler e praticar que não se esquece jamais!” É a revelação do Verbo Encarnado, Palavra definitiva do Pai, ou do Cristo Mestre que instrui secretamente os seus discípulos após a Ressurreição (V 26,5).

b) Revelação de Cristo como Luz, numa experiência que recorda a do Tabor. É a progressiva manifestação de Cristo como rosto luminoso, corpo glorioso, revelador do amor do Pai. É a primeira visão clara que a deixa pasma mas que a coloca em profundo estado de alegria pela manifestação do corpo de glória do Senhor. Trata-se de uma visão que se repete e da qual Teresa custa descrever os pormenores mas onde é abundante o tema da luz, da visão tabórica do Cristo que é “Luz da Luz”: “E uma luz que não ofusca, um candor cheio de suavidade, um infuso esplendor que encanta deliciosamente a vista sem cansá-la... luz sem ocaso que nada pode perturbar porque eterna...”. Mas não estamos na visão platônica onde tudo de se dissolve e desaparece. Quem aparece a Teresa é o Cristo da glória, com um clarão semelhante à luz que Paulo percebe no caminho de Damasco, mas sempre o Cristo Ressuscitado verdadeiro Deus e verdadeiro Homem: “Não é um morto que vejo, mas o mesmo Cristo vivo que se deixa ver como Homem-Deus no modo como ressuscitou, e não como estava no sepulcro”.

É interessante a insistência na divina-humanidade que lhe é manifestada no Cristo da glória; divina-humanidade que se exprimirá também em gestos e palavras humaníssimas, cheias de amor condescendente (V 27,2; 28,3. 5.8).

c) A revelação de Cristo na plenitude dos seus mistérios. A revelação torna-se presença contínua, convivência, comunhão com o Ressuscitado. Cristo é testemunha silenciosa de cada obra dela. No Cristo glorioso veem inscritos, na sua carne glorificada, os mistérios da sua bem-aventurada paixão: “Em geral o Senhor se deixava ver por mim Ressuscitado, assim como me aparecia na Hóstia sagrada. Porém alguma vez, querendo encorajar-me nas minhas tribulações, mostrava-me as suas chagas, às vezes a cruz, ás vezes o horto, ou sob o peso da cruz, raramente com a coroa de espinhos, sempre em conformidade com as minhas necessidades ou com as de outras pessoas. Mas sempre com a carne glorificada” (V 29,3-4). A precisão teológica é irrepreensível.

d) A efusão de amor no Espírito Santo. O efeito próprio desta comunhão com o Ressuscitado é uma efusão de amor que se abrasa na caridade que primeiramente é escatológica: desejo de ver a Deus; e depois se torna diaconal-eclesial: ardente vontade de servi-Lo. “Sentia que o meu amor por Ele crescia dia após dia... pouco depois o Senhor, como me prometera, começou a dar-me a entender melhor que era Ele ao fazer arder no meu coração tão alto amor de Deus, que não sabia de onde proviesse, totalmente sobrenatural e não procurado por mim. Sentia-me morrer pelo desejo de ver a Deus: Ele era a minha vida e compreendia que não poderia possuí-lo a não ser com a morte...”. Este amor sobrenatural constitui singular participação no Pentecostes do amor pelo dom inefável do Espírito Santo, graça singular que aparece na assim dita “transverberação” (V 29,8-14).

A procura tornou-se encontro e comunhão. Cristo procurado na sua humanidade retorna agora no poder da sua divindade. O Cristo do Evangelho apresenta-se a Teresa como o Cristo da Páscoa. A oração torna-se vida em Cristo, e o seguimento um ser “agarrada pelo Senhor Jesus. A parábola está concluída. O resto será progressivo crescimento, manifestação total do mistério do Senhor.

Estamos no início da vida mística de Teresa - pelos anos 1561-1562, quando se abre para ela a maturidade da vida de fundadora e de mestra. Plenitude de vida que não se pode compreender a não ser na luz desta realidade interior do Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem que, tomando-a de dentro, a plasma à sua imagem.

3. Perspectivas de experiência espiritual e de doutrina
Da altura de sua experiência espiritual do mistério de Cristo, Teresa move-se com liberdade para a plenitude de vida da qual brotam convicções profundas a nível doutrinal. O valor destas intuições é perene e hoje de particular atualidade. Vale a pena assinalar alguns traços emergentes.

A. De Cristo para a Trindade e para a humanidade
A progressiva manifestação do mistério de Cristo que se expande poderosa até a morte de Santa Teresa durante uns vinte anos com autêntica plenitude, parte obviamente da contemplação existencial do mistério de Cristo à qual prestamos a nossa atenção nas páginas precedentes. E é na divina-humanidade que encontramos a chave de abóbada para compreender o evoluir-se da vida de Teresa num crescendo de experiências místicas e numa vertiginosa ação em prol da Igreja.

Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, torna-se caminho ao Pai, porta aberta para o mistério trinitário; os primeiros clarões da luz trinitária onde o Verbo Encarnado e glorificado está no seio do Pai, são já percebidas nas experiências que coram o livro da Vida e remontam ao período de 1562-1565, data da redação final do livro. Mas a revelação do mistério trinitário, qual compreensão da pericorese das três pessoas” numa só natureza, a percepção da inabitação trinitária na alma em graça, particulares luzes sobre o mistério trinitário como se revela na Eucaristia já estão presentes do decênio 1570-1580. Vê-se claramente no suceder-se das experiências que Cristo é o revelador do mistério trinitário e aquele que introduz a alma na perfeita participação da vida divina da Trindade. Entretanto intensificaram-se as comunicações cristológicas que chegam em 1572 à graça do “matrimônio espiritual”, justamente, numa maravilhosa revelação da Humanidade gloriosa do Senhor, depois da comunhão eucarística. O testemunho que sobre o mistério trinitário nos oferece Teresa é plenamente ortodoxo, confronta-se com os textos das Escrituras e com as afirmações teológicas de textos veneráveis como o assim dito “Símbolo de santo Atanásio”, Quicumque vult. Mas na Trindade a Humanidade de Cristo não desapareceu, não foi absorvida; é como a revelação de um Deus em três pessoas que no rosto de Cristo recupera também uma face e uma figura- não meros símbolos” - para o Pai e para o Espírito Santo.

Quando a vida de Teresa está chegando ao ocaso, na última Relação, que remonta a 1581, permanecem fundamentais as duas experiências místicas da humanidade de Cristo e da Trindade, tão originalmente características da vida sobrenatural do cristão. No último instante, através da Eucaristia, presença de Cristo glorioso, Teresa alcança, enfim, sem véus a plenitude da vida trinitária.

Desde a outra margem da divina-humanidade o Cristo revela e comunica a Teresa o seu prolongamento na Igreja e nos homens.

A descoberta lógica que segue à revelação do mistério de Cristo é a da Igreja, corpo de Cristo, Esposa de Cristo. Sem poder encontrar fórmulas dessa profunda identificação nos escritos teresianos, encontra-se uma lógica continuidade entre Cristo e a Igreja em dois pormenores:

1) A mudança sensível realizada em Teresa a partir da revelação do Senhor; num primeiro momento a forte concentração da esperança escatológica que lhe faz ansiar por “estar com Cristo” na glória; é o desejo de morrer para ver a Deus. Depois este desejo transforma-se em concentração de energias, mas também em novíssimas possibilidades, para “servir o Senhor”; portanto não mais desejo de morrer mas sim de viver de dar a vida mil vezes a própria vida pelo Reino de Cristo, pela obra da salvação, para cooperar com Cristo. A visão de uma Igreja lacerada acentua com força esta mudança de perspectivas (V 40,15.20.23; C 1,3).

2) Há uma identificação entre o Cristo da paixão que foi condenado e a nova paixão da Igreja na qual novamente se quer condenar o Cristo: “os ímpios, por assim dizer, anseiam condenar ainda Jesus Cristo, levantam contra Ele uma infinidade de calúnias e se empenham em mil maneiras para destruir a sua Igreja” (C 1,5). A identificação é bem mais tocante enquanto o ponto de encontro entre Cristo e a Igreja é a Eucaristia. Profanar a Eucaristia ou o sacerdócio é atentar contra o próprio Cristo e contra a própria Igreja (C 35,3-5).

Neste prolongamento Cristo-Igreja a resposta de amor de Teresa, qual esposa que sente que as coisas de Cristo são suas, torna-se incansável obra de renovação e de reconstrução da Igreja na sua santidade. Vai fazê-lo com a incansável obra das fundações que é a melhor contribuição que lhe é oferecida para servir o Cristo e Igreja.

Mas não é somente a Igreja prolongamento de Cristo. A sua presença está também em cada cristão, melhor em cada ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus. A lembrança das palavras do Senhor: “O que fizestes ao menor, fizeste-o a mim”, o primado da caridade e a prioridade do amor fraterno, a afirmação granítica “Quem não ama o próximo não vos ama Senhor” (Exclamação 2,2; F, 5,3). São outras convicções teresianas que levam ao amor por Cristo nos irmãos. Pode compreender-se então o desejo de servir o próximo, a sua especial caridade pelos pobres e os doentes, a sua ampla visão da dignidade do ser humano que não deve ser pisado porque imagem de Deus, a morada de Deus, uma criatura chamada a comunhão com o Senhor. Este amor por Cristo presente nos irmãos, mesmo nos pecadores, que fere o coração de Teresa e a faz exclamar em ardentíssimas orações pela salvação universal (Exclamação 8-10).

Identificada com Cristo, Teresa abre-se para o divino até à Trindade; impulsiona-se para o humano, para a Igreja e a humanidade.

B. O perene valor da Humanidade de Cristo para a salvação
Com esta formula que recorda um famoso artigo de K. Rahner, se pode definir a tese fortemente sublinhada por Teresa em alguns textos de suas obras. O primeiro, a nível autobiográfico e doutrina, o do livro da vida capítulo 22; mas também o capítulo 37, onde a ilustração deste princípio é vedada por fino humorismo. O segundo, em nível de proposta doutrinal, mas não priva de elementos autobiográficos, nos capítulos 7 e 8 das sextas Moradas.

Contra qualquer tentativa neoplatônica que visa obscurecer a presença de Cristo Senhor, temos uma afirmação articulada de sua absoluta necessidade. Teresa emprega com clareza em todo o seu discurso os textos joaninos que falam do Cristo, caminho, verdade, vida; parte também da extrema necessidade da pessoa humana de ser salva por Cristo verdadeiro Homem e verdadeiro Deus. Inspira-se na liturgia da Igreja que celebra os mistérios do Senhor na carne; recorda multidão dos Santos que na Idade Média descobriram com grande devoção o mistério da sacratíssima humanidade. Chega até , em subtil dialética, a afirmar que todo atentado neste campo poderia colocar em perigo a fé e a devoção pela Eucaristia; de fato, quem quisesse prescindir da Humanidade de Cristo poderia logicamente prescindir também da mediação da Igreja e da estrutura sacramental da comunicação de Cristo na Eucaristia (V 22; 37; 6M 7,5-14).

Assim, a afirmação do mistério do Senhor Jesus na sua Humanidade, fonte da graça e das graças, salvaguarda o verdadeiro relacionamento com Deus na Igreja e nos sacramentos, contra todo o espiritualismo que poderia desembocar numa absorção panteísta. Mas, ao mesmo tempo, o relacionamento com a Humanidade do Senhor garante o verdadeiro sentido da vida cristã como vida em Cristo na plenitude da vida humana dos fiéis. E nisso Teresa oferece também o exemplo de uma santidade e de um misticismo permeados por profunda e terna humanidade.

C. O cristocentrismo da salvação cristã
Uma última reflexão sobre o cristocentrismo teresiano permite-nos colher alguns traços significativos.

1) A cristologia teresiana acentua o para nós da encarnação, da paixão e da ressurreição, próprio na insistência com que acentua a presença da Humanidade de Cristo como condescendência misericordiosa de Deus com o homem. É toda a força da misericórdia e do perdão que desemboca na vida de graça.

2) Na mesma linha manifesta-se na Humanidade de Cristo o mistério da presença em nós, da sua companhia. O Cristo de Teresa não é distante; é amigo presente, testemunha silenciosa, “companheiro nosso no Santíssimo Sacramento”. Teresa experimentou a múltipla presença do Senhor na força da sua palavra, na Eucaristia, no íntimo da alma, nos irmãos e entre os que se reúnem no seu nome, qual pequeno “Colégio de Cristo”. A presença torna-se comunhão de vida (Cfr. V 16,5; 34,17; 35,12; CE 20,1; CV 17,6).

3) Enfim, a grande insistência na perfeita Humanidade de nosso Senhor, junto com a afirmação da sua Divindade, coloca em realce antes o como nós da identificação na encarnação; mas depois o como Ele da graça, da vida em Cristo e da união com o Senhor que tem como termo último e media a unidade das divinas pessoas, como Teresa diz ao invocar os textos de João na oração sacerdotal de Jesus (7M 4,7-8).

4) Deste modo, com os olhos fixos sempre em Cristo, como aconselha frequentemente Teresa, o caminho do cristão é traçado; a companhia de Cristo é garantida; a santidade terá de medir-se com os sentimentos de Cristo Jesus até o cume da doação sobre a cruz. O vértice da santidade consistirá em ser semelhantes a Cristo Crucificado (7M 4,4-8).

Conclusão
Quisemos oferecer uma leitura sintética da cristologia teresiana insistindo particularmente sobre o tema da divindade-humanidade de Cristo, tema particularmente sublinhado por Teresa no seu ensinamento.

A espiritualidade teresiana tão atenta ao primado de Deus aparece-nos assim aberta ao mistério do homem. Os místicos são aqueles que melhor e mais profundamente conhecem o mistério da humanidade e com maior impulso se aplicam em servir o desígnio de Deus em prol do homem. A união com Cristo conduz à adoração do Deus Trino; o amor pela sua humanidade prolonga-se num grande afeto pela pessoa humana, venado pelos mesmos sentimentos do coração de Cristo. O sentido e o valor do serviço dos homens é medido pela obra mesma do Cristo: conduzir ao Pai todos os filhos dispersos; revelar a cada pessoa a sua dignidade de filho de Deus, criado à sua imagem e semelhança, tornado templo e morada de Deus, chamado à comunhão com Ele. Teresa aprendeu tudo isso e o repete para nós com os olhos fixos em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem.

Bibliografia
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