terça-feira, 13 de setembro de 2016

EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ (Meditação II)

A Cruz do Gólgota foi um sinal de infâmia: os homens desonraram Cristo condenando-O à morte de cruz; mas a Cruz transformou-se numa exaltação, numa glorificação. O horizonte do Sacrifício da Cruz abraçava não só Jerusalém mas o mundo inteiro e abria-se para o horizonte da vida eterna: a Cruz ficará para sempre o sinal da Vida Eterna em Deus.

PRIMEIRA LEITURA: Números 21, 4b-9

O contexto deste relato é o da longa viagem desde a longa estância no oásis de Cadés até Moab, em que o povo se cansa com os rodeios para evitar enfrentar Edom (cf. v. 4), revolta-se e protesta contra Moisés. O que aqui se relata pode muito bem ser referido a um lugar de Arabá, a actual Timná, onde se encontrou uma serpente de bronze num antigo santuário egípcio. Às serpentes era atribuído um poder mágico

v.5 «Este alimento miserável». Referência bem realista ao maná, cuja idealização posterior o considera, pelo contrário, «pão dos fortes» e «pão dos anjos», pão com todas as delícias e com todos os sabores ao gosto de cada pessoa (cf. Sab 16, 20-21; Salm 78, 23-25).

v.6 «Serpentes venenosas», à letra, de fogo, um hebraísmo para dizer serpentes abrasadoras, cuja natureza se ignora. Há mesmo quem pense em pequenos parasitas, as filárias, que perfuram a pele, invadem e obstruem os canais linfáticos, causando a morte por filariose.

v.8 «Faz uma serpente de bronze…» O relato bíblico poderia fazer pensar, à primeira vista, num recurso à magia, rejeitada em toda a Sagrada Escritura, pois aqui a cura até parece pertencer à classe da homeopatia mágica: uma imagem do causador do mal teria o poder de o esconjurar! Talvez por isso o livro da Sabedoria tem o cuidado de atribuir a cura à misericórdia de Deus: «não em virtude do que via, mas graças a Ti, o Salvador de todos» (cf. Sab 16, 5-14). Também entre os gregos a serpente era o animal emblemático de Esculápio e conserva-se como símbolo das nossas farmácias. Como se pode ver no Evangelho de hoje (Jo 3, 14-15), este relato encerra um sentido típico visado por Deus: o poste é figura da Cruz, a serpente de bronze é figura de Cristo Salvador, que salva da morte eterna todos os homens feridos pela mordedura mortal do pecado, desde que, arrependidos, olhem para Jesus com fé.

SEGUNDA LEITURA: Filipenses 2, 6-11

A leitura constitui um admirável hino à humilhação e exaltação de Cristo, que muitos exegetas pensam ser anterior ao este escrito paulino e a mais antiga confissão de fé explícita na divindade de Cristo que consta dos escritos do Novo Testamento.

v.6 «De condição divina». Literalmente: «existindo em forma de Deus». Ora esta forma (morfê) de Deus, ainda que não significasse directamente a natureza divina, pelo menos indicaria a glória e a majestade, atributos especificamente divinos na linguagem bíblica. De qualquer modo, como bem observa Heinrich Schlier, a expressão em forma de Deus não quer dizer que Deus tenha uma forma como a têm os homens, mas significa que Jesus «tinha um ser como Deus, um ser divino».

«Não se valeu da sua igualdade com Deus». O texto original foi simplificado no texto litúrgico, pois há diversas possibilidades de tradução desta rica expressão: a) «Não considerou como um roubo o ser igual a Deus»; b) «Não considerou como algo a roubar (=algo cobiçado) o ser igual a Deus». No primeiro caso, considera-se o termo grego harpagmós em sentido activo (roubo); no segundo, em sentido passivo (coisa cobiçada). A Vulgata, seguida pela Nova Vulgata, traduz: «não considerou uma usurpação (rapinam) o ser igual a Deus» (sentido activo); a interpretação dos Padres Gregos, a que se ateve a nossa tradução litúrgica, considera o termo grego com sentido passivo: «não considerou como algo cobiçado (harpagmón). Há quem pense que S. Paulo quer fazer ressaltar o contraste entre a atitude soberba dos primeiros pais que, sendo homens, quiseram vir a ser iguais a Deus (cf. Gn 3, 5.22) e a atitude humilde de Jesus que, sendo Deus, se quis fazer «semelhante aos homens» (v. 7).


v.7 «Mas aniquilou-se a si próprio», à letra, esvaziou-se: Jesus Cristo, ao fazer-se homem, não se despojou da natureza divina, mas sim da glória ou manifestação sensível da majestade que Lhe competia em virtude da chamada união hipostática (na pessoa do Filho eterno de Deus, a natureza humana e a natureza divina unidas numa união misteriosa). «Assumindo a condição de servo», o que não significa a condição social de escravo, mas a «forma» (morfê) de se conduzir própria de um ser pobre e dependente, cumprindo a figura do «servo de Yahwéh», a que se refere a primeira leitura de hoje; «tornou-se semelhante aos homens, aparecendo como homem», não apenas, como queria a heresia doceta, nas aparências (skhêmati), mas no sentido em que o homem é «semelhante» (en homoiômati) dos outros homens, em tudo igual excepto no pecado (cf. Hebr 4, 15).

v.8 «Humilhou-se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz». Note-se como é posta em relevo esta obediência e aniquilamento – a kénosis – de Cristo, num sublime crescendo de humilhação em humilhação: feito homem, assume a condição de escravo, Ele obedece, e com uma obediência que vai até à morte, e não uma morte qualquer, mas a dum malfeitor, a morte de cruz – homem, escravo, malfeitor!

v.9-10 Mas este aniquilamento – o tremendo escândalo da Cruz – não foi uma derrota, o desfecho duma história trágica com que tudo acabou. Estamos perante o sublime paradoxo da sua «exaltação»: foi «por isso» mesmo que «Deus» (não Ele próprio, mas o Pai, ho Theós com artigo) «O exaltou» de modo singularíssimo (à letra, acima de tudo o que existe, tendo na devida conta a preposição hypér na composição do verbo grego, corresponde a: Deus soberanamente O exaltou), o que se deu na glorificação da humanidade de Jesus com a sua Ressurreição e Ascensão. A esta exaltação corresponde o «nome» que Lhe é dado por Deus, o mesmo nome com que passa a ser invocado pela multidão de todos os crentes de todos os tempos; já não se trata simplesmente do nome usado na sua vida terrena e que consta da sentença que o condenou à morte de cruz, Jesus, mas trata-se do mesmo nome com que o próprio Deus é designado para traduzir o nome divino «Yahwéh» – «Senhor».

v.11 A todos pertence proclamar e reconhecer a divindade de Jesus – «toda a língua proclame que Jesus Cristo é Senhor» (mais expressivo Senhor sem artigo, como no original grego) e o seu domínio sobre toda a criação – «no céu, na terra e nos abismos, para glória de Deus Pai» (A tradução da velha Vulgata neste ponto era pouco expressiva e deficiente, ao traduzir: «proclame que o Senhor Jesus Cristo está na glória de Deus Pai»).

Independentemente da discussão acerca do aniquilamento de que aqui se fala, se ele visa ou não directamente o mistério da Incarnação, fica bem claro que Jesus não é um simples servo do Senhor que vem a ser exaltado por Deus, pois Ele é Deus que se abaixa e depois vem a ser exaltado. Também fica patente que a fé na divindade de Jesus não é o fruto duma elaboração teológica tardia, pois a epístola é, quando muito, do ano 62, se não é mesmo de cerca de 56 (como hoje pensa a generalidade dos estudiosos), e, como dissemos, estes versículos já fariam parte dum hino litúrgico a Cristo, anterior à epístola.

EVANGELHO: São João 3, 13-17

O texto é tirado do «discurso» de Jesus a Nicodemos. Não é fácil distinguir nos discursos de Jesus em S. João, quando é que o evangelista apresenta as próprias palavras de Jesus de quando apresenta a sua reflexão divinamente inspirada sobre elas. Aqui costuma-se considerar a meditação do evangelista a partir do v. 13, meditação que, do v. 16 ao 21, é o chamado kérigma joanino.

v.13 «Filho do Homem» tem em S. João um sentido glorioso, indicando a origem divina de Jesus, o Filho de Deus pré-existente enviado ao mundo para salvar os homens e que «subiu ao Céu», uma realidade que pertence às coisas do Céu (v. 12); nos Sinópticos conserva mais o sentido da literatura apocalíptica (cf. Dn 7, 13; 4 Esd; Henoc Etiópico), indicando o Messias, o salvador do povo que virá no fim dos tempos e também o Messias-sofredor. Mas expressão na Filho do homem nem sempre fica bem claro o título cristológico, pois por vezes poderia não passar de um mero asteísmo, uma figura de linguagem (asteísmo) para Jesus se referir discretamente à sua pessoa: este homem = eu. J. Ratzinger/Bento XVI encara com grande profundidade esta afirmação de Jesus acerca de si mesmo (Jesus de Nazaré, cap. X)

v.14 «Elevado», na Cruz, entenda-se. Mas S. João joga com os dois sentidos da elevação: na Cruz e na glória. E isto não é um simples artifício literário, mas encerra um mistério profundo, pois é na Paixão que se manifesta todo o amor de Jesus (cf. Jo 13, 1), todo o seu poder divino salvífico de dar o Espírito e a vida eterna (cf. 7, 38; 12, 23-24; 17, 1.2.19), numa palavra, a sua glória, que culmina na Ressurreição (cf. 12, 16). Para a alusão à serpente de bronze, ver Nm 21, 4-9 (1ª leitura de hoje); Sab 16, 5-15 e o Targum que fala mesmo dum lugar elevado onde Moisés a colocou.

v.16 «Deus… entregou o seu Filho Unigénito». Parece haver aqui uma alusão ao sacrifício de Isaac (cf. Gn 22, 1-12), que os Padres consideravam uma figura de Cristo, até por aquele pormenor de Isaac subir o monte Moriá com a lenha às costas, como Jesus subindo o monte Calvário carregando a Cruz.

v.17 «Não… para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo». Jesus contraria as ideias judaicas da época, que imaginavam o Messias como um juiz que antes de mais vinha para julgar e condenar todos os que ficavam fora do Reino de Deus, ou se lhe opunham.

A CRUZ DA SALVAÇÃO

«Assim como Moisés elevou a serpente no deserto, também o Filho do homem será elevado» (Jo 13, 14).

O Senhor recorda-nos, uma vez mais, que o nosso caminho é de Cruz, cruz que temos de amar, cruz que temos de contemplar a exemplo dos israelitas no deserto, pois só nela está a Salvação. O mistério da Cruz é um mistério luminoso que dá sentido a tudo o que nós chamamos absurdo, fracasso, contradições. Contemplando os mistérios dolorosos do santo rosário, chegaremos a contemplar o rosto doloroso, de Jesus Cristo e prostrar-nos-emos em adoração: “Para transmitir ao homem o rosto do Pai, Jesus teve de assumir não apenas o rosto do homem, mas também o “rosto” do pecado. «Aquele que não havia conhecido pecado, Deus o fez pecado por nós para que nos tornássemos n’Ele justiça de Deus» (2 Cor. 5, 21). Só Ele que vê o Pai…avalia até ao fundo o que significa resistir com o pecado ao seu amor” (Beato João Paulo II, No Início do Novo Milénio, nº 26).

CIÊNCIA DA CRUZ

«Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então conhecereis que Eu sou» (Jo 8, 28)

Contemplando Jesus Cristo Crucificado, aprenderemos a verdadeira ciência da Cruz. Esta ciência não consiste simplesmente em suportar mas em compreender profundamente os caminhos dolorosos, muitas vezes incompreensíveis, através dos quais Cristo triunfa e salva. Os sofrimentos da Paixão e morte de Cristo situam-nos diante do núcleo do plano divino da nossa redenção: a destruição do pecado, em virtude do amor infinito de Deus, que se manifesta numa entrega total.

“O Senhor sofreu tanto e foi tão feliz por sofrer a condenação à morte, que padeceria mil vezes mais, se isso fosse necessário, para nos salvar de uma condenação mil vezes pior do que aquela: a da separação eterna de Deus”(Cfr. Hugo de Azevedo, a Psicologia da Cruz, Cel. Lit. 2, Ano B-1993/94).

AMAR A CRUZ

«Quando for levantado da terra atrairei todos a Mim» (Jo 12, 32)

Naturalmente não gostamos da cruz, nem da dor, nem do sofrimento, nem da morte. Não foi Deus que fez a cruz, nem a dor, nem foi Deus que desejou a morte. Tudo isso foi obra nossa. A dor entrou no mundo pelo pecado dos homens. Jesus veio ao nosso encontro com a nossa dor, com o nosso sofrimento. Não teve outra linguagem senão a linguagem da cruz, para se fazer entender. A partir do seu Sacrifício no Calvário, temos de amar a Cruz como Jesus a amou. “Longe de mim gloriar-me senão na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo”- dirá S. Paulo. Será pela porta estreita da Cruz de Nosso Senhor que todos teremos de entrar, se desejamos verdadeiramente a sabedoria divina e conseguir a salvação.

Que Deus nos conceda a graça de amarmos a Cruz, de descansar na cruz, de “alegrar-nos” nos sofrimentos suportados pelos nossos irmãos, a exemplo de S. Paulo (Cfr. Col 1, 24). Encontrar a cruz é encontrar Cristo e com Ele haverá sempre alegria, mesmo diante de injustiças, mesmo mo meio de penas abundantes, de amarguras sem conta: “ter a cruz é identificar-se com Cristo, é ser Cristo, e, por isso, ser filho de Deus” (S. Josemaria Escrivá).

“O amor verdadeiro exige sair de si mesmo, entregar-se. O autêntico amor traz consigo a alegria: uma alegria que tem as suas raízes com forma de cruz” (Forja, 28).

“Maria Santíssima, de pé junto da Cruz de seu filho, completou verdadeiramente na sua carne – no dizer de S. Paulo – como igualmente no seu coração – aquilo que faltava aos sofrimentos de Cristo”( Cfr. Beato João Paulo II, Carta Apostólica “Salvifici Doloris”, nº 25).

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