domingo, 7 de dezembro de 2014

SOLENIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO DA VIRGEM SANTA MARIA

Somos convidados a equacionar o tipo de resposta que damos aos desafios de Deus. Ao propor-nos o exemplo de Maria de Nazaré, a liturgia convida-nos a acolher, com um coração aberto e disponível, os planos de Deus para nós e para o mundo.

LEITURA Gen 3, 9-15.20 - Depois de Adão ter comido da árvore, o Senhor Deus chamou-o e disse-lhe: «Onde estás?» Ele respondeu: «Ouvi o rumor dos vossos passos no jardim e, como estava nu, tive medo e escondi-me». Disse Deus: «Quem te deu a conhecer que estavas nu? Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira comer?» Adão respondeu: «A mulher que me destes por companheira deu-me do fruto da árvore e eu comi». O Senhor Deus perguntou à mulher: «Que fizeste?» E a mulher respondeu: «A serpente enganou-me e eu comi». Disse então o Senhor Deus à serpente: «Por teres feito semelhante coisa, maldita sejas entre todos os animais domésticos e entre todos os animais selvagens. Hás de rastejar e comer do pó da terra todos os dias da tua vida. Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Esta te esmagará a cabeça e tu a atingirás no calcanhar». O homem deu à mulher o nome de 'Eva', porque ela foi a mãe de todos os viventes.

A nossa leitura começa com a “investigação” de Deus… Antes de proferir a sua acusação, Deus – o acusador e juiz – investiga, descobre e estabelece os fatos.

Primeira pergunta feita por Deus ao homem: “onde estás?” A resposta do homem é já uma confissão da sua culpabilidade: “ouvi o rumor dos vossos passos no jardim e, como estava nu, tive medo e escondi-me” (vers. 9-10). A vergonha e o medo são sinal de uma perturbação interior, de uma ruptura com a anterior situação de inocência, de harmonia, de serenidade e de paz. Como é que o homem chegou a esta situação? Evidentemente, desobedecendo a Deus e percorrendo caminhos contrários àqueles que Deus lhe havia proposto. A resposta do homem trai, portanto, o seu segredo e a sua culpa.

Depois desta constatação, a segunda pergunta feita por Deus ao homem é meramente retórica: “terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira de comer?” (vers. 11). A árvore em causa – a “árvore do conhecimento do bem e do mal” – significa o orgulho, a autossuficiência, o prescindir de Deus e das suas propostas, o querer decidir por si só o que é bem e o que é mal, o pôr-se a si próprio em lugar de Deus, o reivindicar autonomia total em relação ao criador. A situação do homem, perturbado e em rutura, é já uma resposta clara à pergunta de Deus… É evidente que o homem “comeu da árvore proibida” – isto é, escolheu um caminho de orgulho e de autossuficiência em relação a Deus. Daí a vergonha e o medo.

Ao defender-se, o homem acusa a mulher e, ao mesmo tempo, acusa veladamente o próprio Deus pela situação em que está (“a mulher que me deste por companheira deu-me do fruto da árvore e eu comi” – vers. 12). Adão representa essa humanidade que, mergulhada no egoísmo e na autossuficiência, esqueceu os dons de Deus e vê em Deus um adversário; por outro lado, a resposta de Adão mostra, igualmente, uma humanidade que quebrou a sua unidade e se instalou na cobardia, na falta de solidariedade, no ódio. Escolher caminhos contrários aos de Deus não pode senão conduzir a uma vida de rutura com Deus e com os outros irmãos.

Vem, depois, a “defesa” da mulher: “a serpente enganou-me e eu comi” (vers. 13). Entre os povos cananeus, a serpente estava ligada aos rituais de fertilidade e de fecundidade. Os israelitas deixavam-se fascinar por esses cultos e, com frequência, abandonavam Jahwéh para seguir os rituais religiosos dos cananeus e assegurar, assim, a fecundidade dos campos e dos rebanhos. Na época em que o autor jahwista escreve a serpente era, pois, o “fruto proibido”, que seduzia os crentes e os levava a abandonar a Lei de Deus. A “serpente” é, neste contexto, um símbolo literário de tudo aquilo que afastava os israelitas de Jahwéh. A resposta da “mulher” confirma tudo aquilo que até agora estava sugerido: é verdade, a humanidade que Deus criou prescindiu de Deus, ignorou as suas propostas e enveredou por outros caminhos. Achou, no seu egoísmo e autossuficiência, que podia encontrar a verdadeira vida à margem de Deus, prescindindo das propostas de Deus.

Diante disto, não são precisas mais perguntas. Está claramente definida a culpa de uma humanidade que pensou poder ser feliz em caminhos de egoísmo e de autossuficiência, totalmente à margem dos caminhos que foram propostos por Deus.

Que tem Deus a acrescentar? Pouco mais, a não ser condenar como falsos e enganosos esses cultos e essas tentações que seduziam os israelitas e os colocavam fora da dinâmica da Aliança e dos mandamentos (vers. 14-15). O nosso catequista jahwista sabe que a serpente é um animal miserável, que passa toda a sua existência mordendo o pó da terra. O autor vai servir-se deste dado para pintar, plasticamente, a condenação radical de tudo aquilo que leva os homens a afastar-se dos caminhos de Deus e a enveredar por caminhos de egoísmo e de autossuficiência.

O que é que significa a inimizade e a luta entre a “descendência” da mulher e a “descendência” da serpente? Provavelmente, o autor jahwista está, apenas, a dar uma explicação etiológica (uma “etiologia” é uma tentativa de explicar o porquê de uma determinada realidade que o autor conhece no seu tempo, a partir de um pretenso acontecimento primordial, que seria o responsável pela situação atual) para o facto de a serpente inspirar horror aos humanos e de toda a gente lhe procurar “esmagar a cabeça”; mas a interpretação judaica e cristã viu nestas palavras uma profecia messiânica: Deus anuncia que um “filho da mulher” (o Messias) acabará com as consequências do pecado e inserirá a humanidade numa dinâmica de graça.

Atenção: o autor sagrado não está a falar de um pecado cometido nos primórdios da humanidade pelo primeiro homem e pela primeira mulher; mas está a falar do pecado cometido por todos os homens e mulheres de todos os tempos… Ele está apenas a ensinar que a raiz de todos os males está no fato de o homem prescindir de Deus e construir o mundo a partir de critérios de egoísmo e de autossuficiência. Não conhecemos bem este quadro?

* Um dos mistérios que mais questiona os nossos contemporâneos é o mistério do mal… Esse mal que vemos, todos os dias, tornar sombria e deprimente essa “casa” que é o mundo, vem de Deus, ou vem do homem? A Palavra de Deus responde: o mal nunca vem de Deus… Deus criou-nos para a vida e para a felicidade e deu-nos todas as condições para imprimirmos à nossa existência uma dinâmica de vida, de felicidade, de realização plena.

* O mal resulta das nossas escolhas erradas, do nosso orgulho, do nosso egoísmo e autossuficiência. Quando o homem escolhe viver orgulhosamente só, ignorando as propostas de Deus e prescindindo do amor, constrói cidades de egoísmo, de injustiça, de prepotência, de sofrimento, de pecado… Quais os caminhos que eu escolho? As propostas de Deus fazem sentido e são, para mim, indicações seguras para a felicidade, ou prefiro ser eu próprio a fazer as minhas escolhas, à margem das propostas de Deus?

* O nosso texto deixa também claro que prescindir de Deus e caminhar longe dele leva o homem ao confronto e à hostilidade com os outros homens e mulheres. Nasce, então, a injustiça, a exploração, a violência. Os outros homens e mulheres deixam de ser irmãos para passarem a ser ameaças ao próprio bem-estar, à própria segurança, aos próprios interesses. Como é que eu me situo face aos meus irmãos? Como é que eu me relaciono com aqueles que são diferentes, que invadem o meu espaço e interesses, que me questionam e interpelam?

* O nosso texto ensina, ainda, que prescindir de Deus e dos seus caminhos significa construir uma história de inimizade com o resto da criação. A natureza deixa de ser, então, a casa comum que Deus ofereceu a todos os homens como espaço de vida e de felicidade, para se tornar algo que eu uso e exploro em meu proveito próprio, sem considerar a sua dignidade, beleza e grandeza. O que é que a criação de Deus significa para mim: algo que eu posso explorar de forma egoísta, ou algo que Deus ofereceu a todos os homens e mulheres e que eu devo respeitar e guardar com amor?

* A iconografia da Imaculada pode ser motivo fecundo de meditação. As alusões bíblicas e teológicas são uma fonte de catequese de longo alcance.

O dragão pisado pela Virgem lembra antes de mais o mítico Leviatã (Is 27,1; Sl 74,14), monstro marinho que na Bíblia evoca a resistência das águas primordiais ao poder criador e redentor de Deus. Na mesma tradição, esse triunfo de Deus sobre a antiga serpente tem concretização histórica na anunciada vitória da descendência de Eva: “ela esmagar-te-á a cabeça, ao tentares mordê-la no calcanhar” (Gn 3,9-15). Ecos desse combate cósmico percorrem as visões do Apocalipse e estão presentes no sinal aparecido no céu de “uma mulher vestida de Sol, tendo a Lua debaixo dos seus pés e coroada de doze estrelas” (Ap 12,1-6.15-17).
A descendência de Eva e a mulher do Apocalipse personificam o povo de Deus de que nascerá a seu tempo o Messias, o Emanuel, Deus conosco.

Para a Tradição cristã, esses símbolos enraízam na história. Assim, os Padres da Igreja não cessam de apelidar a Mãe de Jesus de Nova Eva, Filha de Sião, Aquela que, na sua plenitude de graça, realiza o que em Eva estava prefigurado. Não por mérito próprio, mas como a mais perfeitamente redimida ou como diz o Vaticano II: “remida de modo mais sublime” (LG 53), Maria agiganta-se, aos nossos olhos como verdadeiramente “cheia de graça”.

* Segundo o testemunho de Lucas, a maternidade de Maria implicou um ato livre de fé, mais decisivo para a história pública da salvação do que a fé de Abraão ou a Aliança do Sinai.

Ato de confiante aceitação, tornou-o possível a ação prévia da graça divina, como recorda o Anjo na sua saudação: “Salve, ó cheia da graça, o Senhor está contigo” (Lc 1,28). Na linguagem dos teólogos, a obediência na fé, sem a qual Maria não seria a Mãe de Deus, é pura graça do mesmo Deus. O Evangelho apresenta a resposta de Maria ao plano de Deus. Ao contrário de Adão e Eva, Maria rejeitou o orgulho, o egoísmo e a autossuficiência e preferiu conformar a sua vida, de forma total e radical, com os planos de Deus. Do seu “sim” total, resultou salvação e vida plena para ela e para o mundo.

Sem a graça divina, a razão e a liberdade humanas permanecem irremediavelmente fechadas em si mesmas, envolvidas por sombras e desejos de uma humanidade pecadora. A jovem de Nazaré abriu caminho à salvação de todos por um ato de desprendimento pessoal: uma resposta arriscada, mas livre e graciosa, ao apelo de Deus para ser Mãe do Salvador. A resposta nasceu de um chamamento, cuja radicalidade e liberdade plena, no caso especial de Maria, a fé cristã assinala, fazendo-as remontar ao primeiro momento da sua existência, o momento da sua Conceição Imaculada.

* Todos pecamos em Adão; e todos fomos redimidos e salvos em Cristo (cf. Rm 5,17-18).
A nossa salvação aconteceu graças aos méritos de Jesus Cristo, que por nós se entregou como Redentor dos pecados que contraímos. A salvação de Maria foi igualmente alcançada mercê da Redenção de seu Filho que Lhe aplicou os seus méritos, preservando-a de contrair o pecado.

Santo Agostinho, na senda de São Paulo, confirma que todos pecaram “exceto a Virgem Santa Maria, a respeito da qual, pela honra do Senhor, não é permitido que qualquer questão se levante relacionada com o pecado” (De Natura et Gratia, c. 42).

O pecado tolda a consciência e endurece o coração. Cheia de graça, Maria, concebida sem pecado, sofre com redobrada violência, a Paixão e Morte de seu Filho, consequência dos pecados dos homens. Bem avisava Simeão que uma espada lhe atravessaria a alma. Tudo isto, aliás, é sentido e vivido pelo povo fiel que encontra, no Coração Imaculado de Maria, um refúgio de Mãe, sempre disponível para acolher as alegrias e tristezas dos filhos e filhas de Deus. Mas o sentido da fé faz-nos ainda descobrir, em Maria, outra dimensão de vida: Ela, que não foi tocada pelo pecado, tem uma especial sensibilidade de afeto maternal para com aqueles que pecam; intercede por eles e acompanha-os, de perto, para que se convertam e vivam como verdadeiros filhos de Deus.

* Meditar no mistério da Imaculada Conceição de Maria há de levar-nos, antes de mais, ao apreço pelo mistério amoroso da ação redentora de seu divino Filho. Tal Redenção refulge, esplendorosamente, na pessoa de Maria, primeira redimida. Nela se revela a delicadeza da Providência divina que chama cada homem e cada mulher a colaborar na obra da salvação de todos: antes de mais, pelo exercício de uma grande radicalidade e liberdade interior, inspiradas nos apelos de Deus e enraizados no dom gratuito do seu amor; depois, pela correspondência a esse dom, na total fidelidade à nossa filiação divina que Maria, como Mãe, quer tornar cada vez mais sólida em nós.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

DEIXE AQUI SEU SUA SUGESTÃO