sexta-feira, 17 de outubro de 2014

V Centenário Teresiano

CAPÍTULO 3

OS ESCRITOS TERESIANOS
TESTEMUNHOS DE ESPERANÇA
Frei Jesus Castellano Cervera, OCD

Para aproximarmo-nos da pessoa de Santa Teresa, da sua experiência e do seu magistério temos os seus escritos, nos quais se reflete claramente a sua pessoa e a sua história exterior e interior, o seu caminho espiritual. Os escritos teresianos, mais que os de São João da Cruz, trazem as pegadas da pessoa e a vicissitudes da sua história, embora às vezes cobertas pelo anonimato.

Uma introdução geral aos escritos teresianos do ponto de vista literário e doutrinal se faz necessária, antes ainda de passarmos em exame as três obras maiores. Para este capítulo nos servimos de bom grado de algumas páginas de frei Tomás Álvarez, por nós elaboradas.

1. Aspectos gerais, literários, históricos e redacionais

Teresa de Jesus não é somente uma santa e uma mestra da Igreja; pertence à literatura universal e em especial à literatura espanhola do século de ouro. São conhecidos os elogios feitos aos seus escritos por estudiosos a começar pelo editor das suas obras, Mestre também ele da língua castelhana, frei Luís de León. A qualidade fundamental dos escritos teresianos, sob o perfil linguístico, está em que ela transmite a linguagem clássica conversacional do século XVI presente na Castela. Por isso a linguagem original é viva e acessível, muito mais que nas traduções, frequentemente classiquejantes e barrocas. Se se entra no texto original com o desejo de compreender, basta saber ler e entrar no jogo da conversa, mesmo que se faça necessária uma adequada introdução.

Todos os escritos da Santa pertencem à época da sua maturidade, a partir de 1560 em que redige as primeiras Relações até poucas semanas antes de sua morte, com as últimas cartas.

Na juventude, diz-se que escreveu um pequeno romance de cavalaria. O saber escrever não é corrente na educação das mulheres do seu tempo. Teresa é de certo modo uma jovem privilegiada, do ponto de vista cultural.

Sobre os escritos teresianos não pairam dúvidas quanto à originalidade, como para os de Santa Catarina ou outros santos, nem questões críticas sobre a autenticidade das redações, como para alguns livros de São João da Cruz. Teresa foi de uma sorte sem par, visto que a maioria dos seus escritos se conservam autógrafos. Vida, Caminho de perfeição – primeira redação - Modo de visitar conventos, Fundações são conservados na Biblioteca do Mosteiro El Escorial, próximo de Madri. Caminho de perfeição - segunda edição está nas Carmelitas Descalças de Valladolid - Moradas ou Castelo interior conserva-se nas Carmelitas Descalças de Sevilha. Ademais existem edições fac-símiles de todos esses livros. Dos outros escritos menores - Relações, cartas, Poesias - existem alguns autógrafos. O estudo dos autógrafos permite também a análise da redação concreta e da história dos textos e das correções, como aconteceu com o Caminho de perfeição e com o Castelo Interior e recentemente para o estudo do livro da vida. Temos portanto edições críticas confiáveis, feitas geralmente sobre os autógrafos, ou sobre suas edições fac-símile.

2. Os escritos teresianos

Há diversas formas de catalogar os escritos teresianos:
- do ponto de vista histórico-biográfico-doutrinal: Vida e Fundações.
- do ponto de vista do estilo doutrinal-místico: Castelo interior, Pensamentos sobre o amor de Deus (Conceptos de amor de Dios).
- de caráter ascético-pedagógico-doutrinal: Caminho de perfeição.
- de perfil jurídico: Constituições e Modo de visitar conventos.
- de tom lírico efusivo: Poesias e Exclamações.
- de gênero epistolar e comunicativo: Cartas.
- Estilo humorístico espiritual: Vexame, Desafio.

Por interesse propriamente espiritual, devem estudar-se os livros do tríptico Vida, Caminho, Moradas e eventualmente completados com acenos a outras obras, como as Relações e os Pensamentos sobre o amor de Deus; e para a história recorrendo especialmente a Fundações e Cartas.

3. Originalidade e influxos: as fontes do seu saber

Quanto ao conteúdo, ao estilo e às fontes, os livros teresianos apresentam uma forte conotação de originalidade. Certamente as páginas da Santa não nascem do nada, pressupõem, portanto, certa preparação literária e doutrinal, refletem alguns influxos padecidos, mas prevalece finalmente a sua síntese pessoal, a sua contribuição e a riqueza da experiência espiritual.

Vida supõe e recorda diversas leituras; Caminho certamente leva em conta uma série de leituras, livros, correntes de pensamento, aos quais reage também com certo viés polêmico.

No Castelo interior praticamente não existem alusões a outros livros. É uma síntese magistral e madura. Teresa está bem a par da situação doutrinal de sua época. Não se submete passivamente às indicações para leitura, às vezes reage, pontualiza, corrige.

4. A leitura de Santa Teresa

Teresa é desde a infância leitora afortunada e apaixonada de livros; tem alguns na biblioteca de seu pai, lerá muitos romances de cavalaria quando adolescente, como fazia sua mãe Beatriz; jovem iniciar-se-á na leitura de alguns livros espirituais dos Padres da Igreja e dos autores do seu tempo, embora no início faça-o sem muita vontade. Posteriormente a sua biblioteca conventual, pessoal, será nutrida, mas seja despojada dos livros preferidos por ocasião do Decreto inquisitorial de 1559 de F. De Valdés (V 26,6). Nas constituições indicará alguns livros do tempo, essenciais como alimento para a alma, como o comer é necessário para o corpo. Sempre foi amiga de livros, de ‘letras e letrados”, da cultura espiritual (Cfr. V 5,6).

Livros marcam presença na vida de Teresa de modo explícito ou implícito são:
- Dos padres da Igreja: as Cartas de São Jerônimo; o Comentário em Jó ou Moralia de São Gregório; As Confissões de Santo Agostinho, e outros opúsculos pseudo-agostinianos, alguns pensamentos de São João Crisóstomo.
- Dos autores espirituais contemporâneos: os livros de Oração e meditação de Luís de Granada, de Pedro de Alcântara, de João de Ávila (O Audi filia?), os livros de Francisco de Osuna (Terceiro abecedário), de Bernardino de Laredo (Subida do monte Sião), de Alonso de Madri (Arte de servir a Deus), de Barnabé de Palma (Via Spiritus); conhece outros escritos de outros autores como S. Vicente Ferrer...
- Dos livros medievais anteriores conhece e lê A Vida de Cristo de Landulfo de Saxônia, chamado o Cartuxo; a Imitação de Cristo, o Flos Sanctorum e outros.
-Obviamente pelas referências implícitas e pela constatação do ambiente carmelitano em que vive Teresa, não podemos deixar de pensar que não tenha tido suficiente cultura espiritual carmelitana alimentada nos livros do tempo, como Speculum Ordinis com diversas obras sobre as origens do Carmelo e a sua espiritualidade.

Outras referências foram talvez recebidas simplesmente pelo ensinamento oral.

5. As correntes espirituais da época

Há também reminiscências do relacionamento e as reações de Teresa diante das correntes espirituais da época, das mais abertas como o erasmismo, promotor de um cristianismo interior em contraste com a exterioridade das praxes religiosas e das cerimônias externas, às mais perigosas dos “alumbrados” , às posições polêmicas de Melchor Cano e outros inimigos da cultura das mulheres e de sua dedicação à oração. Dessas correntes colocamos em realce sobretudo três: o movimento da “devotio moderna”, os movimentos renovadores ou reformistas, as correntes heterodoxas, mais ou menos perigosas da época. Teresa participa também com grande sensibilidade e equilíbrio no diálogo entre teólogos espirituais.

A. O movimento oracional da “devotio moderna”
Através de livros de autores franciscanos como Francisco de Osuna, Bernardino de Laredo, Pedro de Alcântara, Alonso de Madri, ou dos dominicanos como Luís de Granada, Teresa inseriu-se de maneira significativa no grande movimento de oração mental metódica, educada ao recolhimento, própria da “devotio moderna”. Mas ao lado desses livros havia também clássicos como a Imitação de Cristo e a Vida de Cristo de Landolfo de Saxônia, o Cartuxo. Fora iniciada à oração interior de recolhimento pelo tio Pedro Sanchez de Cepeda, bem antes de entrar no mosteiro, e mais tarde quando saíra para curar-se da estranha doença que por pouco não a levou à morte.

O benéfico influxo da oração metódica na sua vida tornou a jovem Teresa uma convicta propagadora da oração no mosteiro entre as suas companheiras e até com seu pai. Na perseverança da oração, interrompida somente por certo tempo, Teresa encontrou a força para colocar-se na verdade diante de Deus, até a sua conversão.

Muitos dos livros que constituíram o alimento espiritual de Teresa no momento da sua luta, conversão e renascimento espiritual, foram proibidos por um Decreto do Inquisidor Geral Fernando Valdés em 1559. A pequena mas atualizada biblioteca de Teresa ficou quase vazia. Em compensação o Senhor assegura-a com estas palavras: “Não tenhas medo, eu te darei livro vivo” (V 26,5). Era a promessa de um magistério íntimo, constante, que então inicia para Teresa, convidada assim a aprender a sabedoria aos pés do Mestre divino.

Embora tenha assumido desses livros muitas noções e adquirido certa experiência da oração, não faltarão da parte de Teresa pontualizações e contestações de alguns autores, especialmente por certos conselhos a respeito da provocação do recolhimento interior, o método do não pensar nada, o perigo que ela encontra no convite a transcender a humanidade de Cristo nos altos graus da vida espiritual (V 22).

B. Os movimentos renovadores e reformistas
Numa perspectiva mais concreta e pessoal Teresa estabeleceu rapidamente relação muito estreita com quem podia compartilhar da sua sede de renovação espiritual e comunitária. Os jesuítas, os primeiríssimos confessores que lhe vieram em ajuda no início da sua vicissitude mística, constituem um autêntico movimento renovador do qual Teresa tem plena consciência na lembrança explicita de Inácio de Loyola e Companhia de Jesus. Entre os franciscanos encontramos uma personagem da altura espiritual de são Pedro de Alcântara, confessor, confidente e protetor da Madre Teresa e de seus projetos renovadores. Ente os dominicanos a santa conta com um grupo fervoroso de amigos espirituais que acolhem através de algumas respeitáveis personagens o influxo reformista italiano de G. Savonarola: entre eles os freis Garcia de Toledo, Vicente Barrón, P. Ibáñez, D. Báñez e outros. São alguns dos representantes do movimento renovador que prepara a grande virada reformista do Concílio de Trento, e que encontrará a Espanha do século XVI já empenhada num amplo esforço de renovação e de explícita reforma religiosa, com nomes destacados como o Cardeal F. Ximénez de Cisneros.

C. As correntes heterodoxas
Não podemos esquecer, por reflexos no caso teresiano, a existência de grupos heterodoxos diversos que passam sob o nome de “alumbrados”, denominação abrange realidades bem diferentes. Uma nota comum é que na Espanha do século XVI florescem, como fruto da renovação espiritual muito sentida, grupos de cristãos que cultivam o assim chamado “cristianismo interior” erasmiano, do seu propagador Erasmo de Rotterdam, dedicam muito tempo à oração mental e formam grupos fechados que chegam a degenerar, às vezes, por falta de discernimento e do fanatismo religioso ao redor de alguma personagem “carismática”, exaltada no seu profetismo anti-eclesial ou nas suas falsas experiências místicas. Círculos de oração, cristãos atraídos pelo evangelismo erasmiano e, mais tarde, grupos pequenos tocados pela heresia protestante, põem em estado de alarme a Santa Inquisição que toma medidas drásticas nas quais se vê envolvido o Primaz da Espanha, o Arcebispo de Toledo Bartolomeu de Carranza.

Teresa teve consciência da existência desses grupos heréticos, mencionando-os explicitamente (V 16,7). Melhor, um deles, o de Agostinho Cazalla e dos seus seguidores de Valladolid, procuraram aproximar-se de Teresa durante o tempo de sua estadia na casa de D. Guiomar de Ulloa em Ávila.

E que nesta situação houve insinuações maldosas sobre Teresa e seus amigos, constituídos num grupo de espirituais, tachando-os talvez somente com a suspeita de ser círculo herético.

Os primeiros temores de Teresa por sua pessoa envolta numa experiência mística, dissiparam-se logo ao recorrer com sinceridade aos confessores, aos quais se entregava humildemente para discernir a própria experiência. É sintomático que o grupo herético de Valladolid teve logo medo de Teresa pelo fato de ser tão aberta na busca da verdade com os seus confessores. O profundo apego à Igreja, a convicção de encontrar nela a verdade da fé, levou-a a desconfiar de algum amigo temeroso que lhe recordava o perigo da santa Inquisição: “Algumas pessoas me procuravam, com muito medo, para me dizer que vivíamos tempos ruins e que poderiam levantar contra mim falsos testemunhos, denunciando-me aos inquisidores. Achei muita graça e ri, porque nunca tive temor disso, pois bem sabia que, em matéria de fé, eu antes morreria mil vezes do que me oporia a qualquer coisa da Igreja ou a qualquer verdade da Sagrada Escritura. Eu lhes disse que não temessem quanto a isso, pois em estado bem ruim estaria a minha alma se houvesse algo nela que me levasse a recear a Inquisição; se achasse que havia, eu mesma iria procurá-la. Eu disse ainda que em caso de falsos testemunhos, o Senhor me livraria de tudo e ainda me propiciaria algum benefício” (V 33,5).

Esse texto teresiano espelha muito bem o ambiente de suspeitas e também a segurança eclesial da nossa Santa. De fato o seu caso não irá parar por enquanto na Inquisição; melhor, muito rapidamente chegará a ter amigos no santo tribunal. Enviará o manuscrito da Autobiografia para que seja revisado e avaliado por São João de Ávila. Somente mais tarde, por causas caluniosas, florescidas na fundação de Sevilha, terá de prestar testemunho diante da Inquisição da própria experiência de oração com um memorial que é uma obra prima de discernimento eclesial (R 4).

A atitude de Teresa diante dos círculos heterodoxos é bem clara: absoluta dissociação e condenação. Mas não por isso se sente inibida de promover grupos de autênticos amigos de Deus; nem retrocede no seu empenho de renovar a vida espiritual por meio da oração constantemente confrontada com as obras e o amor à Igreja. Para com as teses erasmianas Teresa teria podido experimentar algum consenso, onde o Mestre de Rotterdam propõe uma visão mais humanizante da vida cristã, um retorno ao Evangelho, a busca da oração interior.

Mas Teresa é muito “católica” para não discernir nas doutrinas erasmianas certas posições exageradas que instintivamente ele reconduz à harmonia e à recíproca e necessária integração. Assim a Santa escolhe o “tudo” católico: interioridade-exterioridade, ciência - experiência, oração vocal e oração mental, experiência interior, retorno ao Evangelho, liturgia religiosidade popular, oração-obras, seguimento de Cristo e conhecimento dos próprios pecados, juntamente com a gratidão pelo dom da graça. Com verdadeiro instinto sobrenatural, o seu “sensus Ecclesiae” deixa-a fora do perigo das teses antinômicas muito avançadas, até da heresia de reformadores e heréticos.

D. O difícil diálogo entre teólogos e espirituais
No quadro do florescimento espiritual do tempo e da vigilância inquisitorial pela pureza doutrinal, ameaçada pelo espiritualismo interno e pelo protestantismo de importação estrangeira, Teresa cai em plena polêmica doméstica entre os espirituais e os teólogos do momento. Esta vez os espirituais não são tipos possuídos como os “alumbrados”, mas homens santos e sábios como Luís de Granada, Pedro de Alcântara, Francisco Borja, Luís Beltrán, ou outros. São os teólogos que vigiam sobre a pureza da fé e estão próximos do tribunal da Inquisição como Domingo Báñez, Melchior Cana, o Inquisidor Francisco Soto, bispo de Salamanca. Teresa, amiga de uns e de outros, implicada num evento espiritual de experiência, mas desejosa de confrontar-se com a Escritura e a teologia, se encontra como a agulha da balança, o imparcial juiz de uma polêmica em que falta o verdadeiro diálogo e onde ela se torna mediadora que aproxima uns a outros.

Os teólogos repreendem os espirituais por sua insistência na experiência espiritual, este iluminismo que se subtrai à ciência que pacatamente fixa os princípios e à analise teológica na procura do discernimento da verdade. Ademais aos teólogos parece fora de medida a exagerada democratização da experiência interior cristã entre o povo, especialmente entre as mulheres. Soam fortes as acusações contra alguns espirituais que escrevem tratados de oração para “mulherzinhas, esposas de carpinteiros ...”

A acusação mais explícita e mordaz é a de Melchior Cano que afirma, com senso antifeminista: “mesmo que as mulheres com insaciável apetite reivindiquem o acesso ao livro sagrado das escrituras, é preciso arvorar uma espada de fogo que o impeça”. Ele tinha temor que essa democratização da experiência cristã por meio da oração diminuísse o papel da teologia e dizia sem meios termos: “Então será preciso fechar os livros, suprimir os colégios e as universidades; aniquilar os estudos, e depois dediquemo-nos todos à oração”.

Teresa acolheu muitas dessas acusações um pouco irracionais dos sisudos teólogos e respondeu à letra em alguns capítulos do Caminho de perfeição.

Os espirituais têm também sua conta aberto com os teólogos. Estão convictos de que não basta a teologia; para compreender a vida cristã é preciso a experiência; melhor, é esta que serve quando se trata de fazer uma escolha de vida. Emblemático o fato de Pedro de Alcântara que repreende a Santa que fora pedir conselho aos dominicanos em fato de pobreza, quando tinha de escutar quem da pobreza fizera a experiência radical. Eis o tom polêmico, em nada irônico, de Pedro de Alcântara: “Admiro-me que vossa graça submeta à opinião dos doutos aquilo que não é da alçada deles... Com os juristas tratam-se as disputas e casos de consciência, mas receber conselho deles em matéria de espírito é tornar-se no mínimo infiel... Se vossa graça vai procurar conselho dos “letrados” sem espírito, verá como vai acabar... Não busque o parecer a não ser daqueles que vivem o que aconselham... porque ordinariamente esses tais não compreendem mais do que fazem e vivem” (Texto em Obras de Santa Teresa III, Madri BAC, 1959, pág.s 832-833). Um verdadeiro e próprio desafio que muito impressionou Teresa, que desta vez deu toda a razão em matéria de pobreza ao radical franciscano. Mais tarde, porém, teve de recorrer à sabedoria dos dominicanos na questão da pobreza, aceitando fundar mosteiros com rendas nas pequenas cidades onde não se podia esperar viver somente com o trabalho e as esmolas.

Em outro longo texto do livro da Vida temos a mais decidida apologia dos teólogos e letrados, mesmo contra as opiniões de espirituais que queriam desacreditar a competência deles em fato de experiência espiritual. Vale a pena transcrever aqui o longo raciocínio de Teresa que se distancia claramente das teses rígidas de Pedro de Alcântara: “E ninguém se engane, dizendo que os letrados sem oração não servem para quem as tem. Tenho lidado com muitos, porque de uns anos para cá minha necessidade tem sido maior. E sempre fui amiga deles, pois, mesmo que alguns não tenham a experiência, não se opões ao que é espiritual nem o ignoram, já que nas Sagradas escrituras que estudam, sempre acham a verdade do bom espírito” (V 13,18). É importante colher com esta observação o conceito que Teresa tem do teólogo que exerce bem sua profissão; é alguém que escuta Deus nas escrituras, que propõe a verdadeira doutrina da Igreja; de início Teresa está convencida de que não pode existir contradição entre o que Deus doa na experiência e o que Deus revelou na Escritura, guardada pela Igreja; o teólogo nada mais pode fazer do que descobrir o que é de Deus nesta experiência espiritual.

Continuando na sua exposição Teresa manifesta ainda maior apreço pelo carisma dos teólogos: “Eu disse isso porque há quem pense que os letrados não servem para pessoas de oração se não seguirem o espírito. Já falei que o mestre espiritual é necessário; se contudo, este não for instruído, - e Teresa tinha feito uma experiência amarga - há aí um grande inconveniente. Ajuda muito relacionar-se com pessoas instruídas; se forem virtuosas, mesmo que não sejam espirituais, trazem proveito, e Deus fará com que entendam o que precisam ensinar e até as tornará espirituais para que nos ajudem. E não o afirmo sem ter experimentado...” E, ainda que para isto não pareça necessário ter instrução, sempre tive a opinião de que todo o cristão deve procurar ter relações com que a tenha, se puder, e quanto mais, melhor; e os que seguem o caminho da oração têm mais necessidade disso, e tanto maior quanto mais espirituais forem”. E como conclusão: “Portanto é muito importante que o mestre de espírito seja inteligente, isto é bem criterioso e que tenha experiência. E ademais é “letrado”, nada de melhor” (V 13,17.19). A apologia dos teólogos comporta em Teresa a convicção e a gratidão por eles. Melhor, parece atrair com seu raciocínio os teólogos, afim de que, tendo entrado em contato com as graças de Deus concedidas aos espirituais, por sua vez eles também se tornem, porque para a vida espiritual, pensando bem, não basta somente a teologia, mas é necessária a experiência.

Quando Teresa terá de render contas à santa Inquisição da sua experiência espiritual num memorial de autodefesa, fá-lo-á entre outras, com uma pitada de esperteza, nomeando todos os seus confessores e conselheiros espirituais; uma longa ladainha de nomes entre os quais está a nata da teologia e da espiritualidade da época, quase subentendendo, “se eu errei tendo recorrido a todos esses teólogos, deve estar em perigo toda a Espanha!” Com um texto muito bonito Teresa tece os elogios dos teólogos na Igreja e reconheceu o carisma deles: em fato de experiência, escreve Teresa, “estou bem disposta a aceitar o que disserem os eruditos, porque, ainda que não tenham passado por essas coisas, eles têm um não sei quê próprio dos grandes letrados. Como Deus destina-os a iluminar a Sua Igreja, quando se trata de uma verdade, dá-lhes luz para que a admitam; e se não são dissipados, mas servos de Deus, nunca se espantam com as suas grandezas, pois bem sabem que ele pode muitíssimo mais. Enfim quando se trata de coisas não perfeitamente esclarecidas, eles encontram meios de explicá-las por meio de outras já descritas. Através destas, veem que as primeiras são também possíveis” (5M 1,7).

Santa Teresa, mística espiritual, quer assim realizar um necessário, fecundo diálogo entre espiritualidade e teologia, entre experiência e doutrina, para que a vida cristã seja vivida conforme a verdade da Palavra, mas também para que a doutrina tenha a inspiração espiritual e o destino final naquele que doa vida em abundância.

Também esse é um aspecto relevante da presença teresiana no campo das correntes de pensamento do seu tempo com uma contribuição de sabedoria. Ela mesma, se sabe, passo pelo crivo das Escrituras a sua experiência espiritual, e realizou o esforço, iluminado pela graça do Espírito, para oferece na sua obra prima, o Castelo interior, uma síntese e experiência espiritual, de doutrina sólida, iluminada constantemente pela escritura, de pedagogia cristã que abre a todos, não somente a uma elite de doutos e espirituais, as riquezas da vida batismal, que podem desenvolver-se até alcançar os cumes da santidade como exigência de vida e como experiência do Espírito

Isso acontece em Teresa quando funde pessoalmente, por uma graça do Senhor, a profundidade da experiência e a clareza da doutrina, unindo portanto a teologia e a espiritualidade.

6. O livro vivo de Teresa: a Palavra e o Mestre

Um influxo determinante na sua experiência e nos seus escritos tem, sem dúvidas, a Escritura. Dela Teresa possui somente um conhecimento fragmentário. Não direto nem completo. Talvez jamais tenha tida nas mãos uma edição completa da Bíblia. O latim não o compreende; apesar de recitar o breviário e seguir a Missa com um pequeno missal. As reminiscências são citações dos livros, das conversas com os teólogos, de livros como a Vida de Cristo do Cartuxo Landulfo de Saxônia, na tradução castelhana de A. Montesinos, confessor da rainha Isabel de Castela, com seus textos bíblicos em vulgar da liturgia dos domingos e festas.

O amor de Teresa pela Bíblia é proverbial. Afirma: “Todo o mal que existe no mundo vem de não se conhecer claramente a Escritura” (V 40,1). Está disposta a dar a vida por uma só verdade da Escritura (V 33,5). Ama mais o Evangelho do que os outros livros de oração (C 21,4). Deseja ardentemente conhecer a Escritura para poder dizer o que é a união e expressar os mistérios da vida espiritual (7M 2,13).

Recorre facilmente a Bíblia no Comentário ao Pai nosso no Caminho de perfeição, com uma pitada de polêmica: este livro não poderão tirá-lo de vós! Comenta nos Conceitos do amor de Deus, alguns versos do Cântico dos cânticos, correndo o risco de cair na censura da Inquisição por ter comentado o livro mais perigoso da Escritura; se salva apenas a cópia do livro que o confessor mandara lanças às chamas, por medo ser também envolto nesta arriscada aventura.

O confessor parece que era frei Diego de Yanguas e as suas razões são estas no dizer do frei Graciano: “Porque pareceu ao seu confessor coisa nova e perigosa que uma mulher escrevesse sobre os Cânticos”.

Em suma, a Escritura aparece como o fundo doutrinal que inspira a Santa ou o recurso que comprova as suas afirmações. O caso do livro do Castelo interior é emblemático e surpreende pela riqueza da sua inspiração bíblica. Um rico veio que hoje é colocado em luz pelos estudiosos.

Ao lado da Bíblia Teresa teve o privilégio singular de um magistério interior do Senhor.

Anunciado coma as Palavras: “Eu te darei livro vivo” (V 26,5-6), confirmado com muitas visões, revelações, palavras de Cristo. Palavras porém simples, não discursos complicados, ensinamentos essenciais, de teor bíblico, palavras às vezes humaníssima. Ela reconhece com frequência que o Senhor foi o seu Mestre e as coisas que escreve foi o Mestre quem lhas deu a entender (V 12,6; 22,3; 39,8). Do amor pelas palavras vivas do Mestre vêm à Teresa também o grande amor pelas palavras da Escritura.

Nos altos graus da experiência mística cristológica e trinitária vêm à mente e à sua pena os textos escriturísticos mais sublimes de Paulo e de João. E em outros momentos, como final da Exclamação 17, saem, como que a borbotões, palavras que são puramente bíblicas, e se confunde então a sua expressão orante com as mesmas palavras e as orações da Escritura.

7. A riqueza da experiência pessoal

O recurso à experiência é, qual fonte primária dos escritos teresianos, a verdadeira fonte da sua inspiração. Experiência muito rica e vária na vida de uma mulher aberta ao saber, ao comunicar, ao querer aprender a verdade das coisas; experiência singular, mística, pessoal dos mistérios e do modo com que Deus se doa.

Uma primeira camada da experiência teresiana é a comum da vida com todas as suas vicissitudes humanas: experiência própria, dos ambientes em que vive, das pessoas que conhece, dos teólogos que consulta. Tudo é filtrado no momento oportuno na sua síntese pessoal, cheia de bom senso, de realismo cristão e espiritual. Outra camada é constituída pela experiência pessoal interior, oração mística. O que ela sabe, sabe-o por experiência.  Aqui está alicerçada a sua força. O que narra não foi por ter escutado. A palavra experiência é um termo chave do léxico teresiano e recorre com frequência no seu falar: sei isso por experiência, tenho experiência, sei por mim mesma. E escreve com esta última sabedoria que lhe permite desafiar os teólogos sobre certos temas ou discutir com eles sobre certas verdades que agora ela sabe por experiência. E escreve também para suscitar, enquanto possível, a experiência, confiando que somente por esta sintonia experiencial é possível compreender e crer no seu testemunho.

8. O modo de escrever

É necessário conhecer algo do seu modo de escrever. Diversas foram as circunstâncias e o modo de escrever cada livro, como podemos verificar na apresentação dos três maiores: Vida, Caminho, Castelo Interior.

O ponto de partida da redação é constituído pela obediência aos seus confessores em sentido formal, embora depois também a Santa goze por poder escrever e comunicar, e às vezes se lamente dizendo que preferiria dedicar ao trabalho de fiar a roca e o fuso (cf. V 10,8).

Certamente põe-se a escrever sem um programa, um esquema, ou esboço. Não tem diante de si outros livros dos quais haurir, não consulta sequer a Escritura, mas cita de memória, aproximadamente. O seu escrever, frequentemente de joelhos sobre o “apoio” de sua cela e à luz de uma vela e no frio clima de Ávila e de Toledo, é rápido; escrevia como um tabelião, dirá Frei Graciano. Escolhe cuidadosamente o papel, a pena e a tinta, especialmente quando suspeita que o escrito deve ir em mãos alheias.

Durante a composição cresce a sua capacidade de comunicar, narra as suas experiências, divaga, conversa com o leitor. Com frequência interrompe a redação, faz digressões, lamenta-se por ter de escrever entre mil afazeres de casa e depois durante as viagens. No final sente verdadeira satisfação pelas coisas que escreveu. É em geral orgulhosa dos seus livros. A Vida, define-a como uma joia, uma pedra preciosa, a sua alma, o livro das misericórdias do Senhor. Em alguns casos a satisfação da santa aflora nos títulos que dá aos capítulos das obras, títulos escritos depois da redação, convidando o leitor a ler porque as coisas ditas são importantes e contêm coisas muito bem ditas (cf. Vida capítulos 11-15.16.18; Castelo nos títulos dos capítulos das 5, 6 e 7 Moradas). Típico é o epílogo do livro das Moradas como experiência de contentamento por ter terminado esta obra. O seu castelo interior da alma saiu belíssimo, cheio de labirintos, jardins, fontes... É um verdadeiro “castelo encantado”.

Também essas características de espontaneidade são importantes para fazer-nos compreender que nos encontramos diante de escritos fora do normal tom acadêmico e também do muito intimístico. Com características literárias próprias e conteúdos, estilo de grande nível espiritual.

9. Os recursos pessoais ao redigir

Teresa escreve partindo da sua experiência e da sua inicial preparação literária. Em certos momentos sente que a sua capacidade se bloqueia, como no início do livro das Moradas, mas depois retoma com força. Em alguns momentos ela mesma confessa de sentir-se habilitada para dizer coisas com certa facilidade e efusão. Às vezes nos testemunhos das monjas se chega até a exagerar dizendo que algumas páginas do Castelo interior foram escritas com o rosto cercado de luz ao até que se encontram páginas escritas milagrosamente... Mas já nos encontramos diante de exagerações.

Que à base do seu dizer se possa encontrar certa graça ou carisma sobrenatural do saber dizer as coisas de Deus, a “gratia sermonis” de Santo Tomás (S. Theologiae II-II, q.177, a.1, ad 3) é evidente. Mas esta graça se enxerta numa preparação pessoal, na experiência e numa série de recursos característicos que forma o estilo literário espiritual teresiano. Frei Tomás Alvarez indica claramente três grandes veios expressivos que permitem ler este tema do seu estilo literário no âmbito da espiritualidade:
a) uma espécie de ideário muito
concreto que corresponde às convicções de base;
b) o recurso a imagens;
c) a imediatez e o sentido efusivo do seu dizer com o recurso ao diálogo, ao solilóquio, à oração.

a) O ideário teresiano é composto por um modesto repertório de ideias base que à maneira de conceitos chaves condensam em palavras e frases o seu ensinamento. A Santa não tem um sistema de pensamento, nem uma bagagem precedente de cultura livresca ou de noções universitárias da teologia da época, mesmo não ignorando algumas generalidades.  Por isso evita enunciados abstratos e com realismo plasma em poucas palavras ideias fundamentais.

Teses teresianas são:
- a caducidade da vida: tudo passa;
- o valor absoluto de Deus: só Deus basta;
- a presença de Deus em todos os lugares;
- a pessoa humana como morada de Deus, criada à sua imagem e a sua semelhança, capaz de Deus e chamada ao diálogo com Ele;
- é decidida em suas convicções a respeito da humanidade de Cristo, sobre o valor da doutrina e dos ritos da Igreja, sobre o valor do apostolado: dar a vida por uma única alma; ou sobre a necessária coerência entre vida de oração e ascese: oração e vida cômoda não vão de acordo.

Detesta devoções bobas: “de devoções bobas livre-nos Deus”; critica e zomba da mistificação dos abobamentos feitos passar por arroubos (abobamentos-arroubos).

Os conceitos fundamentais da vida espiritual adquirem assim realismo e concretude: a graça é a água viva da samaritana, ou Deus que se comunica à pessoa; a alma é o palácio de Deus; o coração é o seu trono; a pessoa humana é um castelo interior; a eternidade é a percepção do “para sempre, sempre” de quando criança; a oração é “tratar com Deus”, uma divina amizade; a fortaleza é afirme decisão de seguir a Deus; o amor se demonstra com as obras; a humildade é caminhar na verdade; o caminho da oração nos conduz a tornar-nos da condição de Deus, a ser servos no amor; os santos são ‘os esquecidos de si” (los olvidados de si) e os contemplativos são os que estão “presentes e com vontade de servir” (presentes y com ganas de servir)...

b) O recurso às imagens, símbolos, alegorias é essencial para proporcionar ao seu discurso concretude plasticidade. Temos uma teologia simbólica e uma estética teológica da vida religiosa. Todos os grandes livros baseiam-se sobre simbologias estruturais: o jardim da alma (Vida), o caminho rumo à água viva e o itinerário da perfeição (Caminho d perfeição), o castelo interior. Mas logo se entrelaçam outras numerosas imagens complementares, como no Castelo quando recorre às duas fontes, ao bicho-da-seda, à alegoria matrimonial; mas está repleto de outras constelações simbólicas. Os símbolos teresianos são tomados da natureza ou da sociedade e muitas vezes acham-se presentes na Bíblia. Não são fantasiosos. Impressionam pela imediatez e procuram dizer o inefável, expressar o inexprimível que é vital e não só conceitual, provocar a experiência, encantar o leitor diante das maravilhas de Deus na natureza e na vida da graça. Prefere os símbolos da água, as metáforas militares, algumas maravilhas da natureza ou da vida humana.

c) A efusividade da autora nos seus livros é também um recurso congenial aos seus sensos de amizade e de intimidade ao diálogo com o possível leitor e com Deus. Teresa deseja contagiar, encorajar, engulosinar o leitor, quase plasmando com verdadeira unção espiritual no escrito as mesmas realidades que está vivendo, e comunicando com as ideias, num intenso diálogo afetivo-amigável a mesma vida divina que é aberta a todos. É sua convicção que Deus quer doar-se a nós sem medida, como conclui o livro da Vida. É típico da santa o seu imediato comunicar, testificar, transferir à pena o que são suas experiências íntimas, para que o leitor participe delas também e se torne um dos nossos, um do grupo dos amigos de Deus.

10. Aspectos doutrinais da redação dos escritos

A. O gênero coloquial
Do ponto de vista literário e doutrinal os escritos teresianos não se configuram como escrito de reflexão ou de exposição, mas sim como narração e conversação. Foi dito que são uma longa carta escrita aos seus amigos ou uma amigável conversação sobre Deus e sobre as coisas de Deus perto da lareira de casa. Do gênero epistolar e da nota coloquial conservam, portanto, o estilo, a efusividade, a imediatez da comunicação. Grande conversadora, capaz de entreter por horas em agradável conversação os seus amigos e as suas monjas, adotando o gênero literário da conversação desmancha o seu estilo e as suas resistências e consegue comunicar, tornando juntamente o seu escrever, experiência contada e pedagogia da convicção e da comunicação.

Este estilo narrativo, a arte de narrar a própria experiência, hoje recuperado a nível teológico como teologia narrativa, explica o estilo triangular com que os escritos teresianos entrelaçam o referimento a ela, escritora, implicada no fato de escrever e de narrar, a atenção ao leitor, que sempre é concreto, mesmo sabendo que poderá ser também qualquer eventual leitor do escrito. Finalmente, o contínuo remeter-se a Deus, como protagonista da vida, como termo do ensinamento, mas também como testemunha e presença viva com quem dialoga e a quem implica com orações espontâneas e invocações, em nada ponderadas ou forçadas.

Assim Frei Tomás caracteriza a nota pessoal (a protagonista), dialogal ou dialógica (o leitor ou os leitores) e teologal (Deus).

a) A Santa apresenta nos seus escritos um forte acento pessoal. Consegue afirmar a sua presença; certamente é ela que escreve e narra, exprime a sua vida, põe em luz constantemente a sua experiência, fonte se suas afirmações. Ademais, empenha a si mesma em quanto diz, às vezes sob certo anonimato, mas sempre com aquele ‘eu” robusto do seu dizer e do seu testemunhar. E comunica certamente ao todo uma sua vibração feminina de mulher, de cristã e de mística.

b) Nos escritos Teresa dialoga com o leitor, conta a pessoas concretas a sua vida, o seu caso.  No livro da Vida são os seus confessores, o grupo de amigos, às vezes a concreta referência a um confessor (Frei Garcia de Toledo), às vezes um grupinho formado pelos cinco que no momento presente nos amamos em Cristo (Cf. V 16,5-7). Com maior frequência, nas outras obras conversas com as suas monjas, o círculo mais restrito e concreto. Não um artifício literário, mas sim recurso pedagógico que tem também o inconveniente de surpreender o leitor. Os livros teresianos permanecem abertos a novos amigos que queiram fazer parte do círculo teresiano, novos leitores que entram através deste gênero literário da conversação no vivo da experiência da Mestra.

c) Finalmente nos escritos teresianos está presente Deus, como interlocutor e testemunha, com uma naturalidade desconcertante. Como está presente na vida de Teresa. O escrever torna-se frequentemente oração, diálogo com Ele, louvação do seu nome, canto das suas misericórdias. Como se Deus fosse ao mesmo tempo pessoa de que se narra a intervenção maravilhosa na sua vicissitude, objeto-sujeito para quem se endereça o pensamento do leitor, testemunha e eleitor também Ele, Deus, do acontecimento narrado ou da doutrina proposta. Dos escritos teresianos, com naturalidade, se podem haurir “orações”, invocações. Teresa fala da oração orando, e o leitor é surpreendido ao escutar o testemunho teresiano e ver-se envolto na sua mesma profissão de fé e no seu diálogo com Deus.

B. A marca feminina
Seguindo algumas considerações sobre o estilo característico da redação das obras ao feminino, podemos verificar em santa Teresa aquelas notas que as estudiosas do estilo feminino colocam em realce:
a) O estilo biográfico que emerge, mesmo com o devido anonimato, em todas as obras, distante do intelectualismo abstrato.
b) A tendência à concretude na exposição dos temas, no colóquio com o leitor, no recurso a imagens e realidades da vida cotidiana.
c) A sensibilidade pela narração histórica mesmo que parcial, que evita as generalizações e
os discursos onicompreensivos. Significativo o seu contar a própria vida, o apego à história das fundações, começando pela de São José de Ávila.
d) O tom de interioridade e ressonância espiritual, tão característico das obras teresianas, da Vida ao Castelo, onde uma leitura ao feminino evidencia as dimensões do vivido interior: castelo, salas, água viva, transformação...
e) O forte acento colocado na relacionalidade que se exprime no diálogo vivo com os leitores e as leitoras.

11. Conclusão: uma experiência cristã totalitária

Antes de aprofundar alguns dos conteúdos mais importantes da experiência e da doutrina teresianas, percorremos sinteticamente algumas palavras do conteúdo global da sua mensagem como a de uma experiência cristã totalitária. Para indicar esta totalidade de serviço sirvo-me de bom grado da expressão paulina de Ef 3,18-19, onde se fala das quatro dimensões do amor de Cristo; a saber: largura, comprimento, altura e profundidade.

a) Na largura colocamos a sua experiência horizontal de comunhão com a realidade da sociedade e da Igreja do seu tempo, que entra a fazer parte normalmente como experiência concreta, histórica, eclesial da sua vida espiritual. Ela é testemunhada em todos os seus escritos, de modo especial nas Fundações e nas Cartas. É próprio a ampla abertura , sempre maior à realidade humana e social que a cerca e que forma parte também do seu viver e da sua comunhão com Deus; não como mera anedota, ou palavreado superficial, mas como experiência de vida, ocasião de encarnação do seu zelo apostólico, viva participação nas coisas de Deus.

b) A segunda dimensão é o comprimento. Interpretamo-la neste momento como consciência do longo itinerário que se abre diante da vida cristã; itinerário ou caminho por ela percorrido e por ela indicado como caminho a ser percorrido, com etapas progressivas e sucessivas, como uma história de salvação: vocação, escolha, pecado, conversão, encontro com Cristo, vida em Cristo, aliança esponsal, tensão escatológica, pregustação da glória... E nisto Teresa é testemunha do grande tema do itinerário espiritual, com o seu início ascético e a sua culminação mística. Um dinamismo de caminho, de cumprimento, de crescimento progressivo podemos encontrá-lo nas três grandes obras teresianas: Vida, Caminho, Moradas. As Fundações são a documentação do caminhar apostólico e eclesial do serviço concreto a Cristo.

c) Na dimensão da altura, podemos colocar todas as realidades místicas, que como desde a altura de Deus e na altura de Deus são contempladas e vividas por Teresa. O mistério de Deus e o mistério do homem são, como já assinalamos, os objetos da contemplação e da experiência teresiana: Deus Trindade, Cristo, Espírito Santo, Maria, comunhão dos santos; a presença de Deus nas criaturas, a inabilitação trinitária, os mistérios de Cristo, a presença do Senhor na Eucaristia e a eficácia dos sacramentos, a verdade da graça e da justificação, a verdade e a força da Palavra de Deus, o senso e a realidade do pecado. Tudo é doado com simplicidade, e não existe uma única experiência sobrenatural da qual Teresa não procure apresentar o fundamento bíblico e teológico, unindo a sim experiência e doutrina. Podemos aplicar a Teresa a expressão de Paulo VI, referida, segundo Jean Guitton, aos místicos como “cosmonautas do espírito”, pessoas atraídas à esfera de Deus que do alto contemplam por graça o mistério de Deus e os mistérios da humanidade. É esta a genuína experiência mística.

d) Por último notamos a dimensão da profundidade. O mistério de Deus realiza-se na pessoa humana na dupla verdade da revelação na fé e na comunicação da graça. Deus de fato é verdade e vida. Através dos escritos teresianos podemos colher como Deus atua em profundidade na pessoa humana. Da periferia dos sentidos até a profundíssima morada do Rei, no Castelo interior das muitas moradas, temos uma imagem viva da pessoa humana que pouco a pouco se enche de Deus, que se comunica e penetra, purificando, iluminando e transformando a pessoa concreta. Não se trata de psicologismo, mas de realismo de participação de toda a humanidade do crente na vida de Deus, até às profundezas da inabilitação trinitária e a total purificação e união mística. Isso comporta reações psicológicas, um refazimento da pessoa, uma sanação e libertação das próprias capacidades, uma unificação interior sempre mais viva.

Teresa de Jesus é testemunha da experiência cristã em todos os seus componentes. No seu testemunho entrelaçam-se a experiência sobrenatural e a percepção psicológica; são atendíveis as suas afirmações densas de ardorosa sinceridade humana e de forte vibração mística. Nela encontramos uma síntese adequada da mística objetiva dos mistérios revelados e comunicados e da mística subjetiva da concreta percepção desses mistérios. Nisso consiste sem dúvida, a originalidade dos escritos teresianos e a sua perene mensagem na Igreja.

Bibliografia
1. Para o estudo das fontes literárias de Santa Teresa, além dos estudos já citados conferir os dois clássicos:
G. ETCHEGOYEN, l’amour divin. Essai sur les sources de S Thérèse, Paris 1923;
R. Hoornaert, Sainte Thérèse ecrivain: son milieu, ses facultès, son oeuvre, Paris 1922;
T. ALVAREZ, Santa Teresa e i movimenti spirituali del sua tempo, em AA.AA., Santa Teresa maestra di orazione, Teresianum,Roma 1963, pág.s 7-54.

2. Novas pistas sobre leituras teresianas:
Introdução de T. ALVAREZ à edição fac-símil do Camino de Perfección, Roma 1965.

Sobre a importância da experiência confere.
M. HERRAIZ, Experiencia y teologia. Teresa de Jesús vida e palabra, em “Teologia Espiritual”
22(1978) 7-36
Id., Teresa de Jesús Maestra de experiencia, em “El Monte Carmelo” 88(1980) 269-304
D. De Pablo, Santa Teresa y el protestantismo español, em “Revista de Espiritualidad” 40(1981)253-275
Id., Las lecturas de Santa Teresa, Madrid 2009; M. ANDRÉS MARTIN, Erasmismo y tradición en lãs Cuentas de Conciencia, em “Revista de Espiritualidade” 40(1981)253-275.

Alguns pareceres sobre o estilo literário em:
Obras de Santa Teresa, Madrid, Bac, 1951, 7-18.
V. GARCIA DE LA CONCHA, El arte literário de Santa Teresa, Barcelona, Ed. Ariel. 1978; Id., Santa Teresa, em Al aire de su vuelo, Barcelona, Galaxia Gutember, 2004, pág.s 17-106
F. MARQUEZ VILLANUEVA, La vocación literaria de Santa Teresa, em “Nueva Revista de Filología Hispánica” 32(1983)355-379
G. VEGA, La dimensión literaria de Santa Teresa, em “Revista de espiritualidad” 41(1982)29-63
J.A.Marcos, La prosa teresiansa. Lengua y literatura, em Introducción a la lectura..., pág.s 283-329.

Para alguns aspectos relativos à revisão dos escritos cfr.:
A.MAS, Acerca de los escritos autógrafos teresianos: Vida, Castillo interior, Relaciones, Ib pág.s 81-134
G. Vega Garcia Lluengos, Santa Teresa de Jesus ante la crítica literária del siglo XX, Ib., pág.s 135-142
J.A. MARCOS, Recurrencias y concatenadores: la cohesión en el discurso teresiano, Ib., pág.s 153-170
P. CEREZO GALÁN, La experencia de subjetividad en Teresa de Jesus, Ib., pág.s 171-240.

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