quinta-feira, 16 de outubro de 2014

V Centenário Teresiano

CAPÍTULO 2

A HISTÓRIA E A ESPIRITUALIDADE DE TERESA ACENOS BIOGRÁFICOS E PROCESSO ESPIRITUAL
Frei Jesus Castellano Cervera, OCD

O tema deste capítulo é a biografia espiritual da Santa - como processo e como conteúdo - enquanto constitui premissa fundamental da sua doutrina. Nisto, a vida e a pessoa da Santa são a primeira unidade doutrinal da sua espiritualidade.

A vida espiritual da Santa é lição espiritual em dois sentidos:
a) Todo o santo é dom e palavra de Deus à Igreja; um fragmento da história da salvação; portanto tem sentido próprio, é uma “mensagem”;
b) adquire ademais o seu sentido cheio no conjunto da Igreja, que é o seu contexto (como uma “palavra” numa cláusula).

Para colher esse sentido, faz-se mister aproximar-se do santo e compreendê-lo, o que não é sempre fácil: não basta conhecer a história e a psicologia. No caso de Teresa, ao invés, sim, é tarefa fácil; isso porque ela insistiu em penetrar o sentido da sua vida, e finalmente a interpretou por escrito. Seguiremos, portanto o traçado da sua auto-interpretação.

Como já notamos, no caso pessoal da Santa o nexo entre doutrina e experiência vital é determinante, formam um tipo de díptico; portanto para compreendê-las, não se deve separar uma da outra. Melhor, conhecer a pessoa e a vida é uma premissa indispensável para compreender a doutrina.

As nossas indicações serão sumárias para colher antes as datas essenciais da sua biografia, o processo vital do seu itinerário espiritual, a interpretação que a própria Teresa oferece de sua vida e do seu itinerário espiritual.

Ulteriores aprofundamentos poderão ser colhidos na apresentação das suas grandes obras, especialmente do tríptico Vida, Caminho Castelo.

Na vida de Teresa emergem quatro datas salientes:
1515: nascimento em Ávila
1535: ingresso no Carmelo (02.11.1535: entrada; 03.11.1537: profissão).
1562: fundação do primeiro Carmelo teresiano (Ávila 24.08.1562)
1582: morte (Alba de Tormes: 04.10.1582; dia em que entrou em vigor a reforma do Calendário Gregoriano, de modo que o dia seguinte já era 15 de outubro, data que será estabelecida para celebrar a sua festa).

Essas datas dividem a vida de Teresa em três períodos ou grandes etapas:
1515-1535: vida em família: os primeiros 20 anos;
1535-1562: vida carmelitana na Encarnação de Ávila: 27 anos;
1562-1582: fundadora do novo Carmelo: 20 últimos anos.

Assim torna-se fácil captar sinteticamente as etapas da sua vida e do seu desenvolvimento interior.

1. O aspecto exterior: dados biográficos fundamentais

A. Infância e vida em família (1515-1535).
Teresa de Cepeda e Ahumada nasce em Ávila (Espanha) no dia 28 de março de 1515. Foram seus pais Alonso de Cepeda, filho de um hebreu convertido, e Beatriz de Ahumada. No dia 4 de abril recebe o batismo na Igreja de São João. Entre os onze irmãos, foi a “mais querida”. Os seus pais “virtuosos e cheios de temor de Deus” educaram-na à piedade e aos trabalhos domésticos. Na idade de 7 anos com seu irmão Rodrigo lia a história dos santos. Atraídos por essas narrações decidem ir à terra dos mouros para serem decapitados por Cristo (V 1,4). O plano faliu. Descobriu-se a fuga deles e tiveram de retornar para casa. Dedicaram-se então a construção de eremitérios e meditação sobre a eternidade (V 1,5). Quando tinha 12/13 anos ficou órfã de mãe. Ao sentir-se órfã, Teresa prostrou-se aos pés da Virgem suplicando-lhe que para o futuro fosse sua mãe. (V 1,7).

Aos 16 anos, após um período de relaxamento e de vaidade, o pai interna-a no mosteiro. Das irmãs agostinianas para que provejam à sua educação. Revivem na sua alma as sementes da piedade infantil e os desejos de abraçar a vida religiosa (V 2,7-8). Após um ano e meio de permanência sai do mosteiro. Entra em contato com livros espirituais e começa a fazer oração.

As Cartas de São Jerônimo levam-na a tomar a decisão de abraçar a vida religiosa (V 3,7).

B. Vida no Carmelo da Encarnação (1535-1562).
No dia 2 de novembro de 1535 Teresa foge de casa com um irmão e pede o hábito no mosteiro carmelitano da Encarnação, onde já se encontra uma amiga sua (V4,1). Faz a sua profissão no dia 3 de novembro de 1537. Alguns meses depois, uma misteriosa doença obriga-a a deixar o mosteiro. Durante o período de repouso entra em contato com livros espirituais da época, o Terceiro abecedário de Francisco de Osuna que a inicia na prática da oração mental (V 4,7).

É desse período a amizade com um sacerdote que vivia em pecado e que Teresa tem a alegria de conduzir ao bom caminho (V 5,3-6). No verão de 1539 a misteriosa doença se agrava. Por três dias fica como que morta; só a teimosia do seu pai Alonso impediu que fosse sepultada (V 5,9-10). Ainda paralisada retorna ao mosteiro onde permanece nesse estado por algum tempo (V 6,1-2). A sua saúde mal segura vai acompanhá-la pelo resto da vida. Atribui sua completa cura a São José, por quem nutrirá de agora em diante grande veneração (6,6-8). Segue na sua vida um período de relaxamento e depois de intensa vida espiritual, sem fatos externos importantes.

C. Fundadora
Já em 1560, como fruto de intensa evolução espiritual, Teresa decide com algumas amigas suas mais íntimas abraçar um estilo de vida carmelitana mais perfeita (V 32,9-010). A ideia primitiva desponta com contornos mais definitivos e num ideal de vida mais claro: retorno à Regra primitiva da Ordem, vida de solidão, mortificação e oração, num grupo pequeno e seleto (V 32,11). Recebe para o seu projeto a aprovação de São Pedro de Alcântara, que influencia na escolha da pobreza absoluta. Enquanto se solicita de Roma a Bula de Fundação, Teresa, providencialmente fora do mosteiro, prepara a futura casa da sua Reforma (V 34-35).

Em 24 de agosto de 1562 o repicar de um pequeno sino anunciava aos habitantes de Ávila a fundação do mosteiro de São José; naqueles dias as primeiras quatro carmelitas descalças recebiam o hábito. Era a semente e a primeira realização da Reforma Carmelitana. A aventura, de momento, acabou mal. O mosteiro suscitou as iras do Conselho da cidade; Teresa, por ordem do seu superior, teve de retornar à Encarnação. Tudo parecia acabado (V 36). Depois de alguns meses de contradições e perseguições, vence Teresa. O Conselho da cidade aprova a fundação e o superior permite que ela volte definitivamente a São José. A Madre adota o novo nome de Teresa de Jesus, recebe amplas faculdades de Roma com o breve da Fundação. Inicia a vida do novo Carmelo (F 1). Escreve neste período o Caminho de Perfeição nas duas redações consecutivas.

A paz e a simplicidade dos inícios do Carmelo deveriam durar muito tempo para Teresa. Quando pensava estar próxima da glória e no cume da sua vida, com predomínio de orientamento contemplativo e escatológico, torna-se uma “mulher inquieta e vagabunda, percorrendo todas as estradas da península espalhando pela Espanha imperial as sementes de vida: os seus conventos. A visita do Geral da Ordem, frei João Batista Rossi (Rúbeo) de Ravena, acontecida na primavera de 1567, marca o início da aventura de Teresa como fundadora. O horizonte se amplia. Começam as viagens da Santa e de suas monjas no lombo de mulas e nas carroças. Primeira etapa Medina del Campo. Aqui também a cidade acorda ao tintinar de um sino que anuncia, no dia 15 de agosto de 1567, a nova fundação (F 3). A mesma coisa vai repetir-se outras vezes. A lista das fundações teresianas é longa, mas vale a pena transcrevê-la: Malagón (1568), Valladolid (1568), Toledo (1569), Pastrana (1569), Salamanca (1570), Alba de Tormes (1571), Segóvia (1574), Beas de Segura (1575), Sevilha (1575), Villa Nueva de la Jara (1580), Palência (1581), Burgos (1582). A narração dessa aventura encontra-se no livro das Fundações e nas páginas de suas Cartas.

Uma profunda experiência missionária suscita em Teresa o desejo da salvação das almas. A sua ideia amadurece no projeto da fundação dos frades. A Providência faz com que se encontre com o jovem carmelita João da Cruz (agosto de 1567), que com íntima satisfação da Madre inicia a sua vida de oração e de apostolado em Duruelo no dia 28 de novembro de 1568. Duruelo , como São José, é semente do novo Carmelo Teresiano.

É difícil realizar uma síntese dos acontecimentos da aventura de Teresa fundadora. Ela vive intensamente as vicissitudes e os conflitos da Reforma. Desenvolve uma atividade epistolar surpreendente. A sua vida espiritual e o seu magistério alcançam o cume com a redação de sua obra prima o Castelo Interior (1577)

No dia 21 de setembro de 1582 chega a Alba de Tormes doente e esgotada. No dia 29 uma hemorragia obriga-a a ficar de cama. No dia 2 de outubro faz a sua confissão e no dia 4 recebe o viático; às suas filhas expressa o íntimo desejo de ir logo ver o seu Esposo Jesus Cristo, e, como numa gozosa ladainha, repete até o momento do sereno trespasse as palavras: “Enfim, Senhor, sou filha da Igreja”.

D. Glorificação
A aureola de glória que já a circundava durante a vida, desemboca logo numa veneração universal, que apressa os passos oficiais para a sua glorificação. Os seus escritos se espalharam rapidamente.

Em 1591 iniciou-se o processo de beatificação de Salamanca e Alba. Em Roma, poucos anos depois, celebrava-se já com solenidade o aniversário de sua morte. Paulo V proclamava-a bem-aventurada no dia 24 de abril de 1614. Gregório XV canonizou-a solenemente no dia 12 de março de 1622, junto com Inácio de Loyola, Isidro de Madri, Francisco Xavier, Filipe Neri.

Os últimos títulos já são de nossos dias. Paulo VI declarava-a padroeira dos escritores espanhóis, no dia 10 de setembro de 1965. No dia 15 de outubro de 1967, diante do Sínodo dos Bispos e dos representantes do III Congresso Mundial do Apostolado dos leigos, manifestava o seu desejo de proclamá-la Doutora da Igreja. O dia 27 de setembro de 1970 ficará nos anais da história como data da proclamação solene do Doutorado Teresiano.

2. O Itinerário espiritual: autobiografia interior

A. Os primeiros fervores.
A infância de Teresa é caracterizada por uma série de eventos importantes:
- a leitura das vidas dos santos que provocam a tentativa de fuga;
- os primeiros jogos infantis (“... decidimos levar vida eremítica...”) que revelam uma religiosidade precoce e acentuada;
- A meditação sobre as verdades eternas (“Sempre! Sempre!...”), que revelam sua capacidade contemplativa;
- terna devoção à Virgem Maria, herdada da mãe, que se exprime na recitação do terço, e que tem seu momento culminante no diálogo com Nossa Senhora, quando fica órfã (cf V 1).

B. Vaidade e relaxamento.
Os fervores não duram muito. Com a primeira adolescência chega a crise que se apresenta
com as características normais para uma jovem da sociedade do seu tempo:
- a leitura de frívolos romances de cavalaria (os ‘policiais’ de então) exalta a fantasia e a sensibilidade de Teresa, preenchendo-lhe a vida. O seu primeiro parto intelectual será, neste período, um pequeno romance...
- a sua requintada feminilidade leva-a a cuidar da sua beleza e a enfeitar a sua pessoa;
- completa o quadro uma historia de amor com um primo, encorajada e transformada num pequeno romance pela intervenção de uma parenta (cf V 2).

Assim era Teresa aos 15 anos. Alonso viveu momento de ânsia pela Filha e decidiu colocá-la num mosteiro onde cuidaria da sua educação. Este contraste de fervor e relaxamento que caracteriza o primeiro período da vida da Santa, deixará traços na sua existência e perdurará com acentos dramáticos até a sua conversão definitiva. A experiência da amizade marcará profundamente a vida espiritual de Teresa, o seu apostolado, a sua doutrina.

C. Iniciação à vida interior.
Com a reclusão da jovem Ahumada no mosteiro das Agostinianas começa um período de amadurecimento espiritual caracteriza por alguns elementos. A amizade com uma monja, a conduz a descobrir os valores do espírito, “as verdade de criança” (V 3,1.4). O encontro com um familiar, homem profundamente espiritual, fortalece-a nestes ideais de vida cristã (V 3,4-7). A leitura das Cartas do impetuoso São Jerônimo determina a sua vocação religiosa e a fuga da casa apesar da dor intensa provada ao abandonar seu pai (“creio que o meu sofrimento ao deixar a casa paterna não foi menor que a dor da morte. Eu tinha a impressão que os meus ossos se afastavam de mim” V 4,1). No mosteiro encontra a paz e a alegria dos primeiros anos de fervor e de oração intensa.

Ao ter de deixar o mosteiro, por causa de uma doença, os livros espirituais ajudam-na numa primeira iniciação à oração mental; dedica-se a praticá-la com assiduidade, meditando os mistérios da vida de Cristo (V 4-9).

Na vida religiosa torna-se protagonista na comunidade; desabrocham nela as virtudes domésticas, que atraem sobre ela a simpatia das co-irmãs: caridade, serviço, humildade, atenção em salvaguardar a boa fama das ausentes (V 6,3-4). Experimenta também a grande vantagem que lhe vem por ter-se colocado sob a proteção de São José (V 6,6-8).

D. A crise espiritual e a conversão
Segue um longo período difícil e obscuro que dura aproximadamente 12 anos. Teresa luta entre o fervor e a tibieza, entre a oração e o parlatório, entre o diálogo com Deus e as conversas mundanas. Continua com grande esforço de vontade, mas com pouco fruto, a vida de oração; perdura por muito tempo no estado de aridez espiritual; chega a abandonar a oração; todavia ela se converte em apóstolo da vida de oração entre os familiares e as coirmãs (V 7,11-12). Mas as conversas frívolas na grade do parlatório absorvem-na; era a moda da época: muitos desabafos amorosos entre cavaleiros solitários e moças encerradas à força nos mosteiros passavam pelas grades.

Teresa devia suscitar simpatias; e os benefícios materiais que essas amigáveis ralações procuravam ao convento mergulhado na pobreza, cegavam a mente dos superiores e dos confessores quando ela lhes manifestava seus escrúpulos. Transcorrem assim muitos anos (V 7,1-9).

Nesse período de frivolidades recebe alguma prova extraordinária do amor de Deus como bronca por sua conduta; os novos confessores ajudam-na. Duas graças interiores caracterizam, sobretudo esta “firme resolução” (determinada determinación) que marca uma verdadeira conversão na sua vida.

O encontro com a imagem de um Cristo coberto de chagas, que a enche de ternura e de dó (V 9,1). A leitura das Confissões de Santo Agostinho, nas quais Teresa vê refletida a sua vida (V9,8).

Tudo isso acontece na quaresma de 1554. Com essa decisão começa para Teresa uma “nova vida”, que coincide providencialmente com a chegada dos Jesuítas em Ávila e o início da direção espiritual por parte deles (V 23,16.18).

E. Ascensão mística
A partir da sua conversão doa-se com mais generosidade à oração e com a ajuda de bons confessores orienta a sua vida para a ascese. Bem logo se faz sentir na sua alma a intensidade da graça que a conduz por caminhos extraordinários, e a prepara para uma intensa experiência de vida ao serviço da Igreja. Eis as principais etapas:

A) A graça da união
Corresponde ao primeiro estado místico de Teresa; predomina a primeira irrupção da graça na sua alma e se caracteriza por uma generosa vida virtuosa, que a liberta completamente e para sempre de um amor humano equivocado. O afeto e os sentimentos da amizade permanecerão para sempre, mas com um novo estilo.

Entre as graças místicas mais importantes deste período podemos notar:
1) Experiência da presença de Deus na alma (V 10,1);
2) Escuta as palavras de Cristo: “eu te darei um Livro vivo” (V 26,5);
3) Primeiras visões de Cristo (V 27,2; 28. 29).

Essas graças cristológicas intensificam seu amor pelo Cristo, ajudam-na a superar os preconceitos de uma falsa doutrina que a aconselhava a deixar de lado nos altos graus da mística, a consideração pela Humanidade sacratíssima de Cristo (V 22). Teresa goza cada vez mais da companhia de Cristo. Vive na sua presença.

B) A graça do noivado espiritual ou período extático
Corresponde ao que na terminologia da santa se chama “noivado espiritual” com Cristo.

Predomina uma enxurrada de fenômenos somáticos (êxtases, infusões de amor) que purificam e renovam profundamente a sua vida e preparam-na para um período de intensa atividade como fundadora. Entre esses fenômenos destaca-se a graça da transverberação, ou ferida do coração (V 29,8-14). Continua a sua vida na companhia de Cristo e dos santos; inicia a compor algumas relações espirituais e o livro da Vida. Quando já toda a sua existência parece orientada para a comunhão com a Igreja celeste, em tensão escatológica, a sua vida espiritual fica profundamente abalada com os eventos da Igreja peregrina. Os anos que lhe restam convertem-se num intenso serviço de oração e de atividade na Igreja tridentina.

Uma visão do inferno aguça em Teresa a preocupação com a salvação das almas e afervora-a no desejo de uma vida mais perfeita. Desse impulso nascerá como primeiro fruto a Reforma (V 32). Em seguida as notícias sobre a revolta protestante e as lutas de religião, como as profanações e as apostasias, suscitam nela uma maravilhosa experiência eclesial que caracteriza definitivamente a sua Reforma como uma vida de oração consagrada ao serviço da Igreja (C 1-3).Enfim as notícias dos ‘conquistadores” da América alargam o horizonte missionário e as suas preocupações apostólicas. Desta experiência nascerá a reforma carmelitana entre os religiosos (F 1).

Este período caracteriza-se enfim por uma intensa atividade pedagógica, em vista da formação das primeiras Descalças quer através dos seus primeiros livros, quer com o diálogo direto. O Caminho de perfeição é deste período e reflete os objetivos e os métodos da sua pedagogia espiritual.

C) Período da união consumada e do matrimônio espiritual
Fato determinante é a graça do matrimônio espiritual acontecido em 18 de novembro de 1572 (R 35). Cessam as experiências místicas violentas e sobrevém no seu espírito a paz e a quietude (R6). A união com Deus se torna continuada. Teresa é introduzida numa altíssima experiência do mistério trinitário e numa singular participação nos mistérios de Cristo, no âmbito litúrgico. A sua atividade de escritora mística alcança os píncaros coma a redação da sua obra principal: O Castelo Interior. Desenvolve uma incansável atividade pedagógico espiritual nos seus novos mosteiros.

Sem dúvida este período se distingue por uma atividade extenuante: fundações, lutas, perseguições problemas familiares, negócios de todo tipo, incontáveis cartas... Mas é um período de plenitude espiritual e de santidade sob todos os pontos de vista.

A maturidade espiritual, a plenitude da experiência divina e do serviço eclesial, conduzem na quase naturalmente à glória. O seu corpo sempre doentio cede, numa hemorragia, ao ímpeto do amor. Os seus sentimentos. No momento da passagem, exprimem-se nestas ideias que constituíram o movente de toda a sua vida:
- O senso de ser uma pecadora,
- O desejo de ver a Deus. “É hora finalmente, meu esposo, de nos vermos”.
- A vibração plena e confiante de vida eclesial: “Sou filha da igreja”.

3. Interpretação da própria vida e vicissitude espiritual

Nas notas biográficas e autobiográficas que precedem, acumula-se uma série de dados aparentemente desconexos, mas que parecem adquirir unidade somente na pessoa da santa.

Como acontece em toda a biografia: é o sujeito que em definitiva unifica os fatos dispersos, e até os extremos contraditórios, como graça e pecado. Porém no caso da Santa é importante realçar que aquele cúmulo de dados adquiriu aos seus olhos sentido e unidade: o seu progressivo acumular-se foi compondo uma vida a ser compreendida, cheia de sentido; sentido que transcendia os alcances da pessoa (aparentemente protagonista), porque respondia a um plano de Deus (verdadeiro diretor). Portanto Teresa para continuamente perscrutando e penetrando a própria vida (quase um objeto) para compreendê-la profundamente e vivê-la como pessoa que finalmente compreendeu o plano de Deus sobre si.

De fato é típico nela o esforço quase ininterrupto de interpretar-se e dar a versão doutrinal da obra de Deus nas suas vicissitudes pessoais. Constitui um autêntico esforço “vitalício”. O seu primeiro escrito doutrinal, como também o último, são duas Relações: a primeira de 1560; a última de 1581. As duas contém um trabalho de auto-análise para propor o seu caso ao estudo dos teólogos seus diretores, com o objetivo de fazer-se compreender a nível teológico, para ser ajudada a compreender-se melhor ela mesma. Realmente todas as suas obras são fundamentalmente autobiográficas: assim Vida, o Caminho, e as Mansões, mesmo que em três planos diferentes: expositivo, ascético e místico.

Podemos seguir a linha de interpretação de dois pontos de vista: ação e plano de Deus, história de Teresa.
- Deus, nela, coloca em luz o seu plano de salvação, por isso Ele ocupa o fundo da sua vida: inicia, preside, atende, realiza: escolhe, persiste no seu plano, impulsiona à atividade apostólica; exige mais de quanto ela poderia jamais imaginar; tem projeto e vai executando coisas absolutamente inesperadas, incríveis. Em definitiva ele traça a rota da vida, de tal modo que sem Ele seria impossível compreender o sentido da existência teresiana.
- Teresa intervém, mas não mais como protagonista, fundamentalmente, mas como pecadora, com resistências, momentos de opacidade, relações contraditórias. Frequentemente pára diante de Deus para garantir-lhe que não compreende minimamente como Ele tenha podido ter a ideia de fazer ‘tais coisas” logo ‘a uma como ela”... (V 13,3). Em seguida, consegue associar-se plenamente ao plano de Deus, quer no trabalho de santificação pessoal (mistério interior), quer na projeção eclesial (tarefa apostólica).
- Portanto, o processo de realização segue esta marcha: parte do pecado, - através da luta, -chega ao encontro com Cristo, abre-se a ele e doa-se-lhe, - segue a mútua comunicação no profundo da vida, - e finaliza no mistério da união.

Do ponto de vista teológico, a Santa vê o conjunto do seu “caso pessoal” como uma “micro-história” da salvação.

A sua vida espelha no mesmo tempo a grande “historia salutis” (linha bíblico-eclesial), e compendia a economia da salvação aplicada a toda pessoa humana (linha individual). Assim explica-se a insistência com que ela relaciona a sua vicissitude com os tipos bíblicos: Paulo, Pedro, Davi, a Madalena (os grandes convertidos)... ou com os grandes santos da Igreja como Agostinho. Assim se explica também como que os dados bíblicos tenham especial afinidade com as categorias bíblicas:
- a eleição, vista não como chamada momentânea, mas como situação determinante diante de Deus, da qual depende o sentido da vida;
- os pecados, vistos como resistência a Deus e ao seu plano;
- a conversão como retorno de toda a pessoa a Deus;
- o encontro com o Cristo: fato central e determinante; como no caso de Paulo, Cristo entra na sua vida e nela se instala;
- a aliança ou pacto recíproco de pertença e fidelidade: aliança que caracterizará e desenvolverá a vida interior como “comunhão de duas vidas” no ser e no agir (R 35; cf. 7M 2,1);
- vida teologal: ingresso no profundo do mistério da Trindade;
- inserção eclesial: endereço apostólico da vida interior, chamada a transcender os limites da esfera pessoal, e impulsionada a irradiar-se sobre os outros, na Igreja.

4. Relações entre a vida de Teresa e os seus escritos (experiência e doutrina)

Dos dados até agora propostos deduz-se a existência de certa progressividade nas obras da Santa inevitável, dada a dependência do seu ensinamento da progressiva experiência e tendo em conta que as primeiras obras teresianas (Vida e Caminho) foram compostas quando a autora não tinha ainda alcançado a plenitude da experiência.

Assim, a Vida, escrita em plena efervescência espiritual e mística, espelha mais vivamente o ardor e o frescor da própria experiência, e toma forma mais evidente de testemunho. As Moradas, em troca, contêm um pensamento mais maduro, sereno e definitivo e tornam-se um tratado espiritual.

Por essa mesma razão, em determinados pontos do seu ensinamento, a Santa passou por um processo evolutivo, que vai da Vida, às Moradas, até a última relação. Entre os temas em que se verifica esta evolução há alguns doutrinalmente importantes: a síntese mesma da vida espiritual; a interpretação das últimas etapas da vida mística; a etapa da passagem da vida ascética à vida mística; sobretudo, muitos temas de vida prática (obediência, amor fraterno, ideal religioso), que foram enriquecendo-se pelo contato contínuo com a vida e pela abertura mental da Santa.

Como conclusão, vale a pena relevar novamente a importância que a vida e a experiência da Santa tem na interpretação dos seus escritos e do seu pensamento. Como critério base, pode estabelecer-se que, metodologicamente, o estudo de qualquer setor do ensinamento teresiano deve ser elaborado partindo da experiência vivida (biografia e autobiografia da santa), para em seguida proceder-se à procura do seu pensamento (elaboração doutrinal do mesmo tema na escritora); e dessa elaboração à pedagogia ou transmissão viva e mistagógica da experiência para enriquecer e provocar a dos outros.

5. Retrato da Santa

Maria de São José, coetânea e amiga de Santa Teresa, deixou-nos o seguinte retrato da santa: “Era de estatura média, tendente à alta, robusta, bem proporcionada. O seu rosto era agradável, com testa ampla e muito bonita; os seus olhos vivos, negros, profundos, redondos cheios de alegria; as três pintas na altura da boca tornavam-na mais graciosa. Causava alegria fitá-la e escutá-la, porque era muito doce e graciosa no seu falar e no seu agir. Especial graça tinha o seu modo de andar, o seu modo de falar, de olhar, de mover-se. Tudo lhe caía muito bem”.

Esse retrato coincide com o quadro que nos deixou frei João da Miséria e que lhe valeu por parte da Santa esta doce bronca: “Deus te perdoe, frei João! Depois de pousar tanto, me fizeste feia e remelenta”.

De caráter era vivaz, extrovertida, prudente. Hábil e feliz na conversa, sabia adaptar-se admiravelmente às circunstâncias e às pessoas. Era nobre, cheia de dignidade, sincera, íntegra.

Fácil à amizade e sensibilíssima à gratidão. Hábil nos trabalhos de casa, prática, rápida como um ‘escrivão’ no manuseio da pena.

Foi amiga da cultura por causa do profundo amor que tinha à verdade. Graciosa e simpática na conversa e no trato.

As muitas e contínuas doenças, os sofrimentos e as perseguições não diminuíram seu bom humor.

Foi arrojada nas suas iniciativas e tenaz para levá-la a termo. Era dotada de grande capacidade de atrair e cativar-se os seus. Suave no governo, trabalhava com grande liberdade quando estavam em jogo os “negócios de Deus”.

A apresentação da vicissitude espiritual da Santa é premissa necessária para compreender seu ensinamento. Ulteriores aprofundamentos serão oferecidos principalmente na apresentação do livro da sua Vida.

Bibliografia: cfr. na Bibliografia geral as biografias teresianas.

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