domingo, 27 de janeiro de 2013

DEI VERBUM I



A PALAVRA DE DEUS

Pe. Ney Brasil Pereira,
 Professor de Exegese Bíblica na Facasc/Itesc
 Email: ney.brasil@itesc.org.br

Entre as quatro “Constituições”, os documentos principais do Concílio Vaticano II,  as duas primeiras são qualificadas de “dogmáticas”: a Constituição sobre a Igreja, Lumen Gentium, e a Constituição sobre a Revelação Divina, Dei Verbum  (DV); a terceira, tem o adjetivo de “pastoral”, Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje, Gaudium et Spes; e a quarta não tem, mas poderia ter, o adjetivo “litúrgica”, pois é uma Constituição sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium.

Nesta série de artigos comemorativos do “Ano da Fé”, que celebra os 50 anos do início do Concílio, trataremos do segundo desses documentos, a Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina. O título Dei Verbum, Palavra de Deus, à primeira vista, poderia parecer restritivo, designando a “palavra de Deus” escrita, isto é, a própria Bíblia. No entanto, o objetivo do documento é mais abrangente, como se afirma no final do seu “proêmio”, ou seja, da sua introdução:  “Seguindo as pegadas dos Concílios Tridentino e Vaticano I, este santo Concílio se propõe expor a genuína doutrina acerca da Revelação Divina e de sua transmissão…” (DV 1)

Quanto a esses dois Concílios anteriores, importa saber de que modo  trataram “da Revelação Divina e de sua transmissão”. Iniciado em 1545, em resposta à problemática levantada por Lutero, especialmente sobre a delimitação do Cânon e o “livre exame” da Bíblia e a autoridade da Tradição, o Concílio de Trento, ou “Tridentino”, numa de suas primeiras sessões, ratificou o cânon reconhecido pela Igreja do Ocidente desde fins do século IV, incluindo os sete livros deuterocanônicos, num total de 46 livros do Antigo Testamento e 27 do Novo; e condenou o chamado “livre exame”, reafirmando por isso mesmo a autoridade da Tradição e do Magistério da Igreja. Mais de três séculos depois, no contexto polêmico do iluminismo do século XVIII e do racionalismo do século XIX, o Concílio Vaticano I, em 1869, definiu o fato e a necessidade da Revelação Divina, cujas fontes, segundo o que ensinou o Concílio de Trento,  são a Escritura e a Tradição, e cujo intérprete autorizado é o Magistério da Igreja.

Voltando à Dei Verbum, logo após enunciar a proposta  do documento, os “Padres conciliares” – isto é, os Bispos participantes do Concílio – começam a tratar do tema da “Revelação como tal”. É o assunto do primeiro capítulo, bastante breve, da Constituição. O capítulo II trata da “Transmissão da divina Revelação”. O capítulo III aborda a “Inspiração divina da Sagrada Escritura e sua Interpretação”.  O IV capítulo é dedicado ao “Antigo Testamento”; o V capítulo, ao “Novo Testamento”. Finalmente, o VI capítulo apresenta “a Sagrada Escritura na vida da Igreja”. Nesta série de artigos, iremos explicando os vários capítulos, subdividindo-os quando necessário. Comecemos com o capítulo I, sobre a “Revelação como tal”.

1. Natureza e objeto da Revelação

Etimologicamente, “re-velar” é retirar o véu, mostrar, pôr a descoberto o que estava oculto. Se o próprio ser humano, a vida em tantas formas, a natureza, o planeta, o universo, é tudo um mistério de mistérios, que a ciência se esforça por elucidar, quanto mais o Mistério por excelência, o totalmente Outro, que é o próprio Deus! Pois bem, como lembram os Padres conciliares, “aprouve a Deus , em sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e tornar conhecido o mistério da sua vontade, pelo qual os seres humanos, por intermédio do Cristo e no Espírito Santo, têm acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina”… (cf  DV 2)  Tudo isso, esse processo, esse desenrolar-se  da Revelação, foi-se concretizando no decorrer da história humana “através de acontecimentos e palavras intimamente conexos entre si ”, os fatos corroborando as palavras, e as palavras elucidando o mistério  contido nos fatos. Culminando essas “palavras e fatos”, o Pai enviou-nos seu Filho, o Cristo, “mediador e plenitude de toda a Revelação” (ainda, DV 2).

2. Preparação do Evangelho

A vinda do Cristo, Revelação definitiva do Pai, não se realizou, porém, de modo repentino, sem uma preparação. Além de proporcionar à humanidade um permanente testemunho de si mesmo nas coisas criadas, Deus manifestou-se explicitamente, desde o princípio, a nossos primeiros pais, prometendo-lhes a redenção após o primeiro pecado, o da desobediência. A redenção, porém, não sem luta, inerente à “hostilidade entre a serpente e a mulher” (cf Gn 3,15). A seu tempo, Deus chamou Abraão e através dele escolheu um povo; depois, enviou a esse povo Moisés e os profetas, “e assim preparou, ao longo dos séculos, o caminho para o Evangelho” (DV 3).

3. Cristo, plenitude da Revelação

Retomando a síntese do início da carta aos hebreus, os Padres conciliares lembram que o Filho, feito carne entre nós, isto é, assumindo nossa condição humana, por suas palavras e obras, e especialmente por sua morte e ressurreição e pelo envio do Espírito da Verdade, aperfeiçoou e completou a divina Revelação. [...] Já não há que esperar, portanto, nenhuma nova revelação pública antes da gloriosa manifestação do Senhor Jesus (cf DV 4). Todavia, como bem adverte o Catecismo da Igreja Católica, “embora a Revelação esteja concluída, não está explicitada por completo; caberá à fé cristã captar gradualmente todo o seu alcance ao longo dos séculos” (CIC, 66). Nesse sentido, conforme a palavra do Senhor, uma das missões do Espírito tem sido, e continuará sendo, a de “conduzir-nos à plenitude da Verdade” (Jo 16,13).

4. Receber a Revelação com fé

Diante de Deus que se revela, a única resposta razoável é a da fé, ou seja, a “obediência da fé”, expressão que os Padres conciliares retomam do apóstolo Paulo (cf Rm 16,26). Quanto à própria “obediência”, notar que, etimologicamente, essa palavra vem de “ouvir”: de fato, nós cremos não no que sai da nossa cabeça, mas naquilo que nos é apresentado pela palavra de Deus. Atitude contrária, portanto, à dos nossos primeiros pais, que preferiram desobedecer. A “obediência da fé”, porém, ao mesmo tempo que é resposta nossa,  é dom de Deus: Para que se preste essa fé, exige-se a graça prévia e os auxílios do Espírito Santo, o qual também torna sempre mais profunda a compreensão da Revelação e a aperfeiçoa por meio de seus dons (cf DV 5). A propósito, é significativa a resposta que o Senhor Jesus dá aos seus apóstolos, quando  pediam que lhes aumentasse a fé: “Se tiverdes fé, pequena como um grão de mostarda…” (Lc 17,5-6). Desse modo, eles podiam pedir um “aumento” de fé, sim, mas sem estarem desobrigados de tê-la, mesmo se inicial, mesmo se “pequena”. O passo da fé, porém, eles o deviam dar.

5. As verdades reveladas

Sem deixar de ser fundamentalmente uma atitude de confiança, a fé tem também o seu conteúdo intelectual, isto é, propõe-nos verdades a serem cridas, uma vez que Deus quis revelar-se como Uno e Trino, assim comunicando-se a si mesmo e os decretos eternos de sua vontade acerca da nossa salvação. A propósito, retomando o ensinamento do Concílio Vaticano I, os Padres conciliares asseguram que, graças à divina Revelação, podem ser conhecidas por todos facilmente, com sólida certeza e sem erro, aquelas verdades que, em matéria divina, não são de per si inacessíveis à razão humana” (cf DV 6). Quer dizer, mesmo “não sendo de per si inacessíveis à razão humana”, a graça da Revelação divina faz com que essas verdades de fé possam ser conhecidas “facilmente, com sólida certeza e sem erro”. Quanto a essa “certeza” e  “inerrância” da fé, notar, porém, que ela não exclui a humildade de quem sabe, ou devia saber, que o mistério sempre nos ultrapassa (cf 1Pd 3,15-16).

Para refletir:
1.A Dei Verbum restringe-se à “palavra de Deus” escrita, à própria Bíblia?
2.Quais os problemas enfrentados pelos dois Concílios anteriores ao Vaticano II?
3.O que é “Revelação”? Como aprouve a Deus revelar-se no decorrer da história?
4.Qual a única resposta razoável a Deus que se revela? O que é a “obediência da fé”?
5.Qual é o conteúdo intelectual da fé, além da atitude fundamental da confiança?

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