Francesco Spadafora
Se
Elias não é o fundador, em sentido estrito, da vida monástica, pode ser
considerado como seu autêntico precursor. É um mestre, diz Santo Ambrósio, e os
monges são seus discípulos (Ep. 63, 82, PL 16, 1211b). Sobre esta primazia
escreve São Jerônimo: “Os nossos príncipes Elias e Eliseu e nossos chefes os filhos dos
profetas, que habitavam no campo e na solidão, construíam suas tendas perto do
rio Jordão” (Ep.
58, ad Paulinum, PL 22, col. 583).
E na Vita sancti Pauli ele apresenta, como opinião de alguns, a origem
profética da vida monástica: “Com freqüência muitos se perguntam qual foi
o monge que morou por primeiro num ermo. E alguns, remontando-se mais longe,
encontraram seu começo no beato Elias e em João Batista” (PL 23, col. 17a). A
mesma idéia nos repete Sozomeno como opinião corrente: “Os mestres desta
excelente filosofia foram, como dizem alguns, Elias profeta e São João Batista”
(l.
c., I, 12, PG 67, col. 894a).
São Nilo de Ancira chamará a Elias “iniciador de toda vida ascética” (Ep. 181, PG 79,
col. 152c). “Eles estabeleceram
as primeiras bases desta profissão”, disse Cassiano falando de Elias e de Eliseu, que
colocaram os seus fundamentos iniciais” (De institutis coenobiorum, I, 2, PL 49,
col. 61a; cf. o comentário de Hervé da Encarnação, loco cit., p. 194-195).
A pureza do coração
A
pureza do coração é o ideal monástico. Seguindo uma tradição hebraica, desde o
princípio a virgindade é atribuída a Elias. Santo Ambrósio o faz na fé (PL 16,
col. 192a). São Jerônimo atribui a virgindade também aos filhos dos profetas: “Virgens
foram Elias, Eliseu e muitos dos filhos dos profetas” (Ep. 22, 21, ad
Eustochium, PL 22, col. 408). São Gregório Magno (Hom. in Evangelia II, 29, 6,
PL 76, col. 1217b) e
São Nilo (Ep.
181, PG 79, col. 152c)
vêem no arrebatamento de Elias a recompensa de sua pureza. De outro lado, esta
deve ser entendida no sentido da pureza monástica, da “apátheia”. Elias, amando
“os
segredos da solidão e a pureza do coração”, realizou o ideal de um
monge: “sabemos que ele se uniu familiarissimamante a Deus pelo silêncio da
solidão”. (Cassiano,
Collationes 14, 4, PL 49, col. 957a). A respeito desta plena disposição de um
coração puro remetemos ao belíssimo texto de Afraates, de inspiração eliana,
citado em Élie (t. I, p. 165-166).
Além do mais, na vida de Elias se encontram os principais exercícios atléticos
do eremita: a solidão, o jejum (cf. S. Ambrósio, De Elia et ieiunio, PL 14, cols.
697-728) e a oração.
A vida de oração
Elias
era sobretudo o inspirador da vida de oração. Ele exorta a se praticar a
plenitude do amor divino. “Até quando vais estar mancando?”,
com estas palavras do profeta, Orsiesio exorta a seus monges (Doctrina de
institutione monachorum 28, PG 40, col. 882c). A oração de Elias, um homem como nós, foi
poderosíssima, por isso, sob este aspecto, se constitui num exemplo completo. O
vidente do Horeb e do Tabor é também o exemplo de grande intimidade com o
Senhor. Para Máximo, o Confessor, a visão do glorioso Elias na sua gruta é um
símbolo da mística apofática: “O Horeb representa… um exercício habitual
das virtudes num espírito de graça. A caverna é o mistério da sabedoria
escondida na alma, e seu santuário. Quem nela penetra terá a intuição profunda
e mística do saber “que supera toda ciência” e na qual se manifesta a presença
de Deus. Pois se alguém, como o grande profeta Elias, busca verdadeiramente a
Deus, deve não somente “subir ao Horeb” (e é evidente que quem se consagrou à
ação deve também aplicar-se à virtude), como também “penetrar no interior da
caverna” situada sobre o Horeb, isto é, estar completamente dedicado à
contemplação, na obscuridade e no mistério mais profundo da sabedoria, fundada
sobre uma prática habitual da virtude” (2 Centuria, citado por François de
Sainte-Marie, em Les plus vieux textes du Carmel, 47ss). Convém também citar um famoso texto
místico de São Gregório Magno (In Ezechielem, II, 1, 17, PL 76, col. 948a).
A
mística hesicasta, que vê o lugar místico na luz do Tabor (cf. art.
Contemplation, DS, II, cols. 1851-1854),
pode igualmente refazer-se no exemplo de Elias. Pedro o Atonita (séc. VIII) é,
talvez, o primeiro dos hesicastas a quem se elogia com estas palavras: “Tu
decidiste habitar no monte Athos como Elias no Carmelo, para buscar a Deus no
silêncio” (citado
por Théodosy Spasky, Le culte de prophète Élie et sa figure dans la tradition
orientale, em Élie, I, 222).
No
Oriente, na celebração litúrgica, é aplicado a Elias o título dos santos
monges: “anjo terrestre e homem celestial” (ibid., p. 221). No Ocidente se encontra apenas
algum rastro de um culto litúrgico tributado ao Santo Elias (B. Botte, Le culte
du prophète Élie dans l’Église chrétienne, em Élie, I, 213-6). Entre os próprios Carmelitas a
festa de Elias é bastante tardia (Pascal Kallenberg, Le culte liturgique
d’Élie dans l’Ordre du Carmel, em Élie, II, p. 138). O prefácio próprio da festa de
Santo Elias cantava (até a última reforma litúrgica): “coloquei os fundamentos da
vida monástica”.
ELIAS E OS
CARMELITAS
No
tempo das cruzadas, alguns soldados se retiraram ao Monte Carmelo, atraídos
pela beleza do lugar, pela sua posição geográfica e também pela lembrança do
profeta. Tiago de Vitry, a princípios do século XIII, traçou um quadro
retrospectivo do renascimento espiritual da Terra Santa depois das cruzadas dos
séculos XI e XII: “Devotos peregrinos e homens santos de diversas partes do mundo,
compareciam a Terra Santa… Varões santos, renunciando ao século, impulsionados
por vários sentimentos, desejos e tomados pelo fervor religioso, escolhiam os
lugares mais aptos para seu santo propósito e devoção… Alguns, a exemplo e
imitação do santo e solitário varão Elias profeta, no Monte Carmelo e
particularmente naquela parte que domina a cidade de Porfiria que hoje se chama
Haifa, junto à fonte chamada de Elias e não longe do monastério da virgem Santa
Margarida, levavam uma vida solitária em alvéolos de pequenas celas, elaborando
qual abelhas do Senhor o mel da doçura espiritual” (Historia orientalis
sive hierosolymitana, I, caps. 51-52; ed. J. Bongars, Gesta Dei per Francos,
Hanoviae 1611, p. 1075).
Entre
os anos 1206-1214, um grupo de monges latinos, que viviam “junto à fonte no Monte
Carmelo”, receberam das mãos de Alberto, patriarca de Jerusalém, uma “norma
de vida”, confirmada depois pelo papa Honório III em 1226. Estes viriam
a ser os Carmelitas, os irmãos de Nossa Senhora do Carmelo e os filhos de
Elias. Não é certo que fora a veneração do profeta Elias o que atraiu estes
eremitas ao Monte Carmelo. A Regra não fala de uma inspiração eliana da vida
carmelitana. Mais tarde, Nicolau Gálico, ao expressar seu desejo de que os
Carmelitas recobrassem a pureza da vida eremítica, não invoca em sua Ignea
sagitta o exemplo do grande solitário do AT. É mais provável que o nascimento e
desenvolvimento da devoção a Santo Elias tenha surgido do fato de habitarem o
Monte Carmelo e, mais tarde, a lembrança conservada. Só ao longo da história é
que o tema de Elias se tornou “parte integrante” da espiritualidade
carmelitana. Alguma alusão à lenda sobre uma vida eremítica ininterrupta no
Monte Carmelo desde o tempo de Elias até as Cruzadas, se encontra na rúbrica
prima das Constituições do Capítulo de Londres do ano 1281:
“E
assim dizemos, dando testemunho da verdade, que a partir dos profetas Elias e
Eliseu, devotos habitantes do Monte Carmelo, alguns santos padres, tanto do
Velho como do Novo Testamento, realmente apaixonados pela solidão deste monte,
tão adequado à contemplação das coisas celestiais, viveram ali, sem dúvida, de
modo digno de louvor, junto à fonte de Elias, em santa penitência, praticada
sem interrupção com santos resultados. E nos tempos de Inocêncio III, Alberto
patriarca da igreja de Jerusalém reuniu numa comunidade (“collegium”) os seus
sucessores e lhes escreveu uma regra, que o Papa Honório, sucessor de
Inocêncio, e numerosos outros depois dele, aprovando esta Ordem a confirmaram
tão devotamente, como o atestam suas bulas. E nesta profissão que nós, seus
discípulos, servimos ao Senhor até o dia de hoje nas diversas partes do mundo” (texto latino em AnalOC, XV [1950], p.
208).
Se
havia ainda uma diferença entre os primeiros eremitas do Antigo e do Novo
Testamento e seus sucessores da época de Inocêncio III, na primeira rubrica das
Constituições de 1324, os sucessores aparecem já nos tempos de Cristo. É assim
que se forma a idéia da ininterrupta sucessão hereditária da Ordem do Carmelo.
Esta convicção desembocará no tão penoso litígio entre os Carmelitas e Daniel
Papenbroek. Entretanto, a figura de Elias foi se tornando cada vez mais
significativa na espiritualidade da Ordem. No século XV Tomás Waldense escreve,
sem ulteriores correções: “nossa profissão religiosa nos estimula a
viver segundo sua inspiração” (Mhc, p. 446).
Tudo
indica que foi João Baconthorp, morto em 1346, quem pela primeira vez uniu a
devoção mariana da Ordem do Carmelo com a lembrança do profeta Elias: “Segundo
os profetas (as profecias?), os Frades do Carmelo nasceram especialmente para
venerar à Santíssima Virgem Maria… E posto que [a Virgem Maria] é honrada e
pregada através do Carmelo, convém que no Carmelo, dado a ela, exista os
carmelitas que a venerem de um modo especial. E assim foi na antiguidade. Na
realidade as profecias se compreendem à luz dos acontecimentos… Quantos
profetas e reis estiveram no Carmelo rendendo honras à Senhora do lugar, a
bem-aventurada Maria! Para continuar o culto à Virgem Maria em seu Carmelo,
nasceu a Ordem dos Irmãos do Carmelo. Porque o culto celebrado nos lugares dos
santos é tributado primeiro a Deus e depois aos próprios santos… Mas também se
todos aqueles que deveriam ser salvos na época dos profetas honraram ao futuro
Filho da Virgem Maria…, com muito maior razão os religiosos do Carmelo,
venerando no tempo de Elias e Eliseu aquele que havia de vir, instauraram no
Carmelo sua Ordem da bem-aventurada Maria… Consequentemente é para este culto
que tiveram origem” (Speculum de institutione Ordinis, cap. I; texto latino
também em Élie, II, p. 42-43).
A
forma mais completa desta espiritualidade eliana e profética encontra-se num
escrito do séc. XIV, o Liber de institutione primorum monachorum (texto também
em AnalOC, II [1914-16], p. 347-49).
LEIA, ABAIXO, A LECTIO DIVINA DA SOLENIDADE E A LITURGIA DAS HORAS DO PRÓPRIO DA ORDEM DOS IRMÃOS DA BV VIRGEM MARIA DO MONTE CARMELO
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