Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências
Humanas
Na
fórmula da Profissão de Fé do cristão, encontramos, aquando da proclamação da
adesão do crente à verdade segundo a qual o «Logos» de Deus «desceu dos céus e
encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria», a indicação de que se
deve fazer uma inclinação.
Para
quê e porquê? E porquê neste preciso momento e não aquando de um qualquer outro
momento? O que há de tão especial neste ato de Deus que mereça uma tal também
especial atitude de reverência, de discreta adoração?
Na
economia geral da relação de Deus com a criação e especialmente com a criação
do ser humano, este é o segundo momento mais importante, a segunda marca
absoluta, definitiva.
A
primeira deu-se quando Deus criou o mundo a partir de si como infinito ato de
superabundante amor. Neste ato de posição absoluta da possibilidade e realidade
dos seres, deu ser à humanidade, em momento de especial ápice caritativo,
momento no qual dotou algo com a possibilidade de escolher irredutivelmente o
seu porvir. Com tal possibilidade passou a haver mundanamente a capacidade de
escolher o bem, o que implica, em cada possível ato, poder não escolher o bem,
absoluto da possibilidade da origem da realidade do mal. O ser humano traz
consigo a possibilidade de bem e de mal e é tal dom que faz dele propriamente
humano, não bestial.
A
encarnação do Verbo é o momento em que deixa de haver separação entre o criador
e a criatura, em que Deus, fazendo-se carne, assume a plenitude da criação,
assumindo a plenitude de seu ápice. Não sendo possível ao ser humano assumir
Deus, é a este que compete assumir a humanidade. A encarnação cumpre a criação
em sua possível plenitude, esta em que é o próprio Deus que experimenta ser
como o melhor possível do criado. Pela encarnação, Deus pode saber como é
ser-se humano encarnadamente e a criação experimenta a presença à sua medida do
próprio criador. A encarnação é o ato de sacralização absoluta do mundo,
através da marca sacramental realíssima da carne de Jesus em seu seio. É este o
grande batismo de que João fala em Marcos. Cristo é o sacramento batismal do
mundo.
Mas
não há sacramentos mágicos ou impostos. Se a criação incoativa é uma posição
ontológica absoluta sem auscultação do criável, pela razão evidente, o
sacramento, como oferta caritativa absoluta do amor de Deus, é passível de ser
aceite ou não aceite. Nunca há violência sacramental, mesmo que de tal haja
ilusão. Ninguém é obrigado ou obrigável a ser amado. Esta aceitabilidade tem um
preço que é a maior ou menor proximidade a Deus por via da maior ou menor
proximidade ao seu ato de amor ofertado. A medida exata desta distância é
aquilo a que se chama, na sua perfeição, céu, na sua imperfeição pró-total,
inferno.
O
que o Menino cuja vinda à carne se celebra no Natal, permitida pela escolha de
Maria ao dar o seu sim a tal possibilidade, veio trazer ao mundo foi a
possibilidade da proximidade sem distância a Deus. O Antigo Testamento é a
narrativa da relação distante com Deus, mediada pela natureza bruta e por seres
humanos que agem como incarnados anjos de Deus, mantendo este a sua distância
dada pela sua pura espiritualidade. Episódios como os da sarça ardente
manifestam bem a intransponibilidade da distância entre o ser humano carnal e o
Deus puro, puro espírito, puro fogo e pura luz.
O
Menino, sendo tão espírito quanto o que a sarça representava, é de carne. O
Menino cresceu no seio de Maria, alimentando-se da matéria da Mãe por meio de
um cordão umbilical semelhante ao meu, ao teu. O Menino, já parido, já
respirando ar, bebeu leite do seio de Maria. O Menino é, precisamente, como diz
Mateus, "Emmanuel", «Deus conosco». Mas não apenas «conosco», mas da
nossa mesma carne, fazendo, assim que incarnou, que passássemos a ser da sua
carne.
Até
à encarnação do Verbo, o ser humano era de carne humana, mas, após a encarnação
do Verbo, o ser humano passa a ser da carne de Deus, pois Deus acabou de
assumir a carne humana. Sendo esta assunção perfeita, a carne deixa de ser
humana, para passar a ser divina. Algo que se esquece, mas que é fundamental,
decisivo. Desde que Cristo é carne que a carne é divina, participando nós,
seres humanos, da divina carne.
Não
é já Cristo que partilha da carne dos seres humanos, são os seres humanos que
participam da carne de Cristo. A carne é, assim, desde que Cristo a assumiu e
tornou perfeita, em si mesma, imaculada. É a nossa relação com a nossa
carnalidade que serve ou não a sua pureza, que a cumpre constantemente em sua
radical divindade ou a perverte. Mas a besta não é a carne, sou eu quando lhe
não sou fiel.
Que
lhe não sou fiel como Maria e Jesus foram.
A
divina relação carnal entre Maria e Jesus purifica para sempre o sentido da
carnalidade: por meio da liturgia soteriológica da carne de Maria, foi ao Verbo
possível ganhar carne. Ao ganhar carne, o Verbo imediatamente divinizou toda a
carne que, como Maria, é carne ao serviço da salvação do mundo. Compreende-se
melhor qual a razão pela qual Maria, em sua carne, mereceu acompanhar
imediatamente a carne de sua carne no Céu, isto é e logicamente, junto do Filho
cuja carne permitiu.
Como
o santo Evangelho, a santa caridade da boa-nova, está longe da peçonha
maniqueia e pagã da demonização da carne, impossível em termos cristãos, pois
não há perfeito Cristo sem perfeita carne, na perfeição de sua carne.
Amaldiçoar
a carne, é amaldiçoar o Verbo em sua carne. Tal é simplesmente blasfemo.
«Bendito
é o fruto de teu ventre», diz a Isabel de Lucas a Maria. Neste ventre, por este
ventre, não apenas passou, mas continua sempre a passar a salvação do mundo.
Esta salvação tem precisamente no sim de Maria o seu paradigma. Salvar-se é
acolher o Verbo de Deus em seu seio. O único necessário.
Se
o Espírito sopra de infinitas formas, como e onde quer, a encarnação é a forma
de o Espírito soprar Deus na carne. Literalmente informar-se na, para si
absolutamente nova, forma da carne. Forma velha para nós. Forma para sempre
rejuvenescida pela frescura da mocinha Maria, que permitiu ao Espírito dar-se
em puro carnal amor ao mundo, reconsagrando-o, batizando-o.
O
joanino «Logos» do princípio, eterno companheiro do Pai, na união do Espírito,
paradigma de toda a relação possível, carne lógica da caridade oblativa que
eternamente os une, enlevo do Pai, manifesta-se no mundo criatural não como
fantasma, não como terrífico poder, mas como indefeso e frágil pedacinho de
terna carne humana, de que nada há a temer – "me phobou Mariam" (não
temas Maria), diz Gabriel –, todo-poderoso como dom de possibilidade de amor e
de amor em ato. Promessa eterna de salvação que se cumpre até à morte e
ressurreição.
«Nada
temas, Maria». Nada a temer, se fores Maria. Deus põe-te como ato de amor. Se
fores fiel a este ato, nada tens de temer. Mesmo a morte de teu Filho será
vivida por ti como um ato de oblação. Nada temas. Mesmo no mais profundo
sofrimento, nunca abandonarás o teu Filho. E ele nunca te abandonará. Que
temer, então, Maria?
Ao
contemplarmos o Menino, absolutamente frágil, mas todo-poderoso como dom
absoluto de caridade divina, pensemos em como fazer da nossa carne a sua carne,
em como transformar cada um de nossos atos na carne do bem da caridade, sempre
frágil, mas todo-poderosa de cada vez que põe bem na continuidade da criação.
Lembremos
que, sendo assim, não há como pecar. A caridade é a impossibilidade do pecado.
Não a sua morte, a sua impossibilidade. Onde está a caridade, não só habita
Deus, como nunca poderá habitar o pecado.
Diz
o poeta, num momento de terrível angústia: «Meu Deus, e eu que não tenho a caridade!»
[Fernando Pessoa, "Poesias de Álvaro de Campos", Lisboa, Ática, 1980,
"Ali não havia eletricidade"], reconhecendo a absoluta vacuidade de
tudo o mais. A caridade feita frágil carne é tudo. O mais é nada.
Natal
é a caridade e a caridade é o Natal, não apenas o Natal de Jesus, mas o nosso
Natal de cada ato em cada ato de caridade, abençoada carne do amor.
Santo
Natal.
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