INTRODUÇÃO ÀS OBRAS
MAIORES
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO AO LIVRO DA
VIDA
Frei Jesus Castellano Cervera, OCD
1. Um
livro íntimo, místico e carismático
O livro da Vida de Teresa de Ávila, foi
escrito originalmente para um grupo restrito de amigos íntimos, confessores e
discípulos. Nasceu humildemente da obediência aos seus confessores, para
elucidar as primeiras perturbadoras experiências sobrenaturais de Teresa,
vistas em contraluz a partir da sua vida religiosa de relativa tepidez no
mosteiro da Encarnação. Iniciado como longa e prolixa confissão dos próprios
pecados, acabou tornando-se um magnífico canto das maravilhas do Senhor, o
“Livro das misericórdias do Senhor”, como quis intitulá-lo a autora. O caráter
confidencial inicial e o profundo senso de amizade de Teresa, a sua capacidade
de efusão e de comunicação deram a este livro o tom de “confissão íntima”,
“diálogo confidencial”, “longa carta” a um amigo. Desde a primeira página
entra-se no santuário da experiência de Deus, narrada com intensidade de
participação psicológica. Azorín, grande literato espanhol do século XX,
definiu este livro “o mais profundo, denso e penetrante que exista em todas as
línguas europeias”. O leitor deve transpor a soleira desta intimidade,
deixando-se envolver pela transparência do testemunho desde as primeiras
linhas; ode considerar-se um afortunado amigo e confidente da Madre Teresa até
perceber, no milagre da contemporaneidade com ela, que permite a leitura destas
páginas, a sintonia com o pulsar de seu coração.
É uma narração de experiências místicas. As
páginas mais significativas desta narração foram lavradas a fogo, sob a força
de uma experiência sobrenatural e contam fatos que superam o vivido cristão
ordinário. Aos nossos dias muitas coisas passam com a etiqueta de fatos
místicos ou carismáticos, desde narrações de parapsicologia a experiências
esotéricas de religiões orientais, de fáceis visões e presumidas revelações a
fenômenos religiosos comunitários de exaltação. Nada disso na narração da Vida
de Teresa. Mística sim, das verdadeiras, isto é experiência de Deus em Cristo e
no seu Espírito, em perfeita sintonia com a fé revelada; uma mística descida no
dinamismo da psicologia e dos sentimentos humanos, mas continuamente passada
pelo crivo do discernimento das obras, das virtudes, dos efeitos que tornam o
místico a plenitude do ser humano em equilíbrio humano, em dinamismo de caridade
e de obras. Certas páginas podem turbar o leitor ou torná-lo cético e
suspeitoso, se não aceita antecipadamente a vibrante sinceridade com que foram
escritas. Neste livro encontram-se em abundância narrações místicas, páginas
ardentes de colóquio com Deus, experiências sobrenaturais, não nos primeiros
metros da praia, mas em alto mar, bem no coração da leitura. São oferecidos
como testemunho do Deus verdadeiro que realiza maravilhas, da força da graça
que penetra no ser humano. A leitura requer silêncio ao se penetrar nesta terra
prometida, escuta do testemunho e da mensagem. A graça do místico em particular
é falar de Deus e render-lhe testemunho com palavras de fogo. O carisma de
Teresa, como mística na Igreja, consiste em falar de Deus como ela o experimentou.
É também um escrito carismático. Para falar de
Deus dignamente precisa-se ser investido por uma força superior, pelo Espírito,
como os profetas e os apóstolos. Teresa sentiu, que, num determinado momento,
sua pena adquiria a flexibilidade para transmitir experiências inefáveis,
dificilmente documentáveis, fora portanto da linguagem comum. O seu pensamento
soltou-se para entender a graça que Deus lhe concedia e para transmiti-la na
comunicação dialógica do seu escrito. (Cfr. V 14,8; 17,5). O recurso a símbolos
e imagens, a efusividade da comunicação amigável, o enredo de páginas que são
oração porque colóquio com o Senhor, favoreceram esta transmissão do inefável
até desbordar nas confidências. Este dom insuspeito tornou Teresa ciente do
destino providencial da sua experiência: escrever para comunicar, contagiar,
estimular o apetite colocando o torrãozinho de açúcar na boca (V 18,48), para
arrastar docemente os outros na mesma aventura, como ela já tinha sido agarrada
e levada por Deus através do caminho da oração. O leitor, tornado de vez amigo
e confidente de Teresa, deverá deixar-se envolver pela força do próprio
testemunho a uma forte experiência de Deus. No fundo Teresa é ciente de que sua
vida faz as funções do espelho do que Deus quer realizar com todos, partindo da
primeira revelação de si mesmo como Criador e Pai, como amigo dos homens; é um
convite à interioridade, a empreender com o caminho da oração o empenho de
tornar-se “amigos fortes de Deus” (Vida 15,1) e “servos do amor” (V 11,1).
Teresa, mulher de grandes amizades, como
aparece no livro, é ciente de que o grupo dos amigos de Deus se alarga por
ondas, porque “a caridade cresce quando é comunicada” (V 7,22)
2.
Gênesis e aventuras de uma “joia”
Uma
“joia”. Assim, em linguagem cifrada e com certa satisfação, Teresa definiu o
seu livro quando ainda estava nas mãos da Inquisição. Esta “joia” em que Teresa
transfundira a sua vida até chegar a defini-lo também “a minha alma”, tem uma
história, quase uma aventura.
A. As
primeiras tentativas
A redação do livro da vida tem uma longa
história. Nasceu quase por acaso e com uma característica mais bem negativa, a
que apresentar a própria situação a um grupo de amigos espirituais.
Provavelmente pelo ano 1554, depois das primeiras graças de oração seguidas à
sua “conversão”, Teresa quis esclarecer com os confessores e conselheiros da
época o significado do que estava acontecendo. Com o intuito de fazer luz sobre
a sua vida e no medo de tropeçar nos erros e desvios escreveu “uma relação da
minha vida e dos meus pecados (V 23,14). Assim realizou uma primeira parte do
discernimento que lhe fora proposto; para a segunda parte, isto é aquela que
descreveria as suas experiências espirituais, sentiu-se impotente. Pode apenas
vergar algumas linhas sobre um livro espiritual, a Subida do Monte (Sião) de
Bernardino de Laredo, onde ela encontrava passagens que correspondiam mais ou
menos à sua experiência (V 23,12). O veredicto dos dois juízes, o sacerdote
Gaspar Daza e o leigo Francisco de Salcedo, foi desastroso. Temerosos pelo que
acontecia na Espanha de então, não preparados para emitir um parecer teológico
espiritual, saíram-se dizendo que tudo era obra do demônio, mas remeteram para
um veredito definitivo a um confessor da Companhia de Jesus (V 123,14). Teresa
teve de sofrer o trauma daquela resposta; a experiência ensinou- lhe a não
confiar mais em confessores “meio-doutos”. Esta primeira relação dos pecados de
Teresa, que é talvez a base dos primeiros capítulos do nosso livro, não chegou
até nós.
Uma segunda tentativa foi feita logo depois
para o novo confessor jesuíta, P. Diego de Cetina, um jovem sacerdote que havia
pouco tempo viera para Ávila e fora indicado a Teresa por seus amigos. Desta
vez trata-se de uma verdadeira e própria confissão geral colocada por escrito.
Como escreve Teresa: “Comecei a esboçar a minha confissão geral, colocando por
escrito num balanço da minha vida, redigido com a maior clareza possível, todo
o bem e o mal, não transcurando nada” (V 23,15). A clareza e a objetividade da
narração deixaram na autora a impressão penosa de uma vida cheia de pecados:
“tantos males e quase nenhum bem; fiquei cheia de aflição e muito cansada” (ib.)
Toda via desta vez o parecer daquele filho de Santo Inácio foi extremamente
encorajador: tudo era claramente espírito de Deus (Ib. 16). Também esta relação
foi perdida. Pelo teor das expressões teresianas e pelos conselhos que em
seguida lhe ministrará o confessor jesuíta temos a impressão de que, além da
narração dos seus pecados, Teresa tenha acenado à sua vida de oração e em
especial ao seu modo de orar conservando ao seu lado a humanidade de Cristo,
temas que se encontram nossos primeiros capítulos do livro atual.
Talvez
por ocasião de outros encontros com personagens espirituais, das quais Teresa
procurava conselho, como São Francisco Borja ou S. Pedro de Alcântara, ela teve
de redigir outros relatórios ou fornece o que já fora escrito para o Pe Cetina.
O livro da Vida teve uma longa gestação no coração da Santa e também em
sucessivas redações que teve de fazer para seus confessores até a primeira
redação unitária.
B. A
redação de 1562
Finalmente
nova tentativa chegará a bom porto em junho de 1562, data colocada agora no fim
do livro. Mas agora tudo tem um viés diferente. Os últimos anos, sucessivos à
sua “conversão”, transcorreram num crescendo de experiências místicas; cresceu
também a capacidade de comunicar; aconteceram longos colóquios com os
confessores, muitos dos quais se tornaram seus discípulos. Um deles é o
dominicano frei Garcia de Toledo a quem se dirige frequentemente no livro. Foi
ele que solicitou a redação desta longa relação; e não tanto para que Teresa se
detivesse a contar os próprios pecados, mas para que relatasse as graças que
tinha recebido e ensinasse o caminho que o Senhor a tinha feito percorrer. A
ordem é de não calar, mas dizer tudo, de transfundir no relatório a torrente de
graças que a submerge. Talvez a leitura parcial de muitas páginas tenha também
provocado novos encorajamentos pelos confessores.
Teresa
cresce escrevendo, descobre-se comunicando, e encontra no gênero literário da
conversa amigável o segredo para expressar-se por completo. Terminado o
trabalho, não ainda dividido em capítulos, ela também, ainda que temerosa, se
mostra comprazida pela sua obra porque espelhava a ação de Deus e o ensinamento
do Mestre inteiro.
A
estadia de Toledo, no palácio de Da Luísa de la Cerda, aonde fora enviada por
um período de tempo pelos seus superiores, representa o momento feliz da
primeira redação do livro da Vida, a que tem como data o mês de junho de 1562.
C. A
redação definitiva de 1565
Como nós o temos entre as mãos, o livro da
Vida brotou do coração e da pena de Teresa num momento de forte maturidade
espiritual. O autógrafo, conservado agora no mosteiro de São Lourenço do
Escorial, perto de Madri, no lugar de honra que Filipe II lhe reservou na monumental
Biblioteca, é a cópia que Teresa fez em 1565 para enviá-la ao homem espiritual
mais conceituado da Espanha no momento, São João de Ávila, apóstolo da
Andaluzia. Assim tinha sido aconselhada por Francisco Soto e Salazar (R 4,3),
que trabalhava na Inquisição. Teresa fez a última e definitiva redação do livro
na paz do pequeno mosteiro de São José de Ávila, fundado em agosto de 1562,
envolvida no clima carismático dos inícios da Reforma (V 40,21; 10,7). Tinha-o
escrito, como ela nos recorda, roubando um pouco de tempo aqui e acolá (cfr.
Vida 10,7). Teresa lavra a redação definitiva, acrescentando os últimos
acontecimentos e as ultimíssimas graças, em especial a história da fundação do
mosteiro de São José de Ávila, maduro fruto eclesial da sua vida que se tornou
fecundo para a Igreja. Teresa ficara tão afeiçoada à narração desta história
fundacional que queria, na hipótese de darem um sumiço no manuscrito, se
conservasse pelo menos a história da fundação do mosteiro de São José.
D. Os
primeiros pareceres sobre a obra
Teresa seguiu com ansiedade o envio do livro a
João de Ávila; mais ainda, no seu desejo de segredo teria desejado que alguém
tivesse feito uma cópia para o Mestre João de Ávila, para que a sua caligrafia
não revelasse a outros a identidade da autora. Assim, através de caminhos
tortuosos mas providenciais, a íntima confissão destinada a poucos acabou na
Igreja como patrimônio de todos. João de Ávila desaconselhava na sua carta de
resposta a circulação do livro. Outro amigo e confessor de Teresa, frei Domingo
Báñez, tinha a mesma opinião: no veredicto escrito para a Inquisição, alguns
anos depois, prestará homenagem à sinceridade desta monja que “não é
enganadora” e profeticamente une quanto nele estava escrito com experiências
semelhantes, vividas por outras Santas, como S. Gertrudes e Santa Catarina de
Sena.
Mas
já eram muitos os que sabiam da existência do livro; circulavam as primeiras
cópias tiradas do autógrafo que fora parar nas mãos do Bispo amigo, D. Álvaro
de Mendoza.
Desgraçadamente
nem sempre os leitores foram amigos respeitosos e entusiastas: por exemplo a
Princesa de Éboli. Personagem esquisita da história teresiana, teve ocasião de
lê-lo e por vingança, quando a Santa fechou a fundação de Pastrana e de noite
tirou dela as suas monjas, denuncia-a à Santa Inquisição. O perigo de uma
condenação pelo tribunal da Ortodoxia nunca fora tão sério, apesar de diversas
acusações terem sido feita e Teresa foi convidada formalmente a dar explicações
através de uma relação escrita.
Neste
tribunal estavam presentes também amigos: o tal Francisco de Soto que já estava
a par do livro e até o Arcebispo Gaspar de Quiroga que tinha uma sobrinha entre
as filhas da Madre Teresa. Os pareceres deles tranquilizaram a Madre a ponto
que ela sonhou complementar o livro com o que tinha acontecido até então,
depois da primeira redação do escrito. A longa permanência do autógrafo na
Inquisição foi providencial. Alargou-se o grupo dos leitores abalizados, que
logo se tinham tornado amigos e discípulos da Madre: eles favoreceram a
ressonância eclesial desta confissão realizada para a intimidade dos amigos;
entrementes foi descartada a ideia de completar o livro da Vida e em 1557, por
ordem de Frei Graciano, Teresa escreveu a sua obra prima, complemento e reedição
do livro da vida, com autonomia própria e com pormenores e maravilhosos
valores: o Castelo interior.
Depois
da morte da santa o livro da Vida, apesar da permanência de algumas
dificuldades, já está pronto para a impressão. O primeiro editor é um homem de
singular preparação espiritual e literária, o agostiniano, Frei Luís de León
que cuidou com amor da transcrição do autógrafo e escreveu na apresentação um
dos elogios mais bonitos jamais feitos à pessoa e à obra da madre Teresa.
Do
distante 1588, ano da primeira edição, este livro foi continuamente ditado em
espanhol e traduzido em diversas língua até os nossos dias. A história e a
aventura destas páginas se expandem a cada nova edição e através novos
exemplares, provocando encontros de Teresa com os leitores de cada época e cada
língua. O livro mais reservado tornou-se o mais universal. Assemelha-se às
Confissões de Santo Agostinho: são páginas íntimas de um diário pessoal, uma
longa carta que narra aos amigos a própria extraordinária experiência da
irrupção do sobrenatural. Os efeitos deste diálogo de Tersa através do seu
livro não se contam. Edith Stein, filósofa judia, tendo encontrado por acaso um
exemplar das obras de Santa Teresa na biblioteca da casa de amigos, durante uma
noite lê a Vida. Acabada a leitura exclama: “Esta é a verdade”. A cordial
adesão à verdade-vida encontrada no testemunho de Teresa, levá-la-á à fé, ao
Carmelo, ao martírio.
3.
Ambientes e protagonistas do livro
O
livro da Vida não é, estritamente falando, uma autobiografia. As referências
autobiográficas, datas, lugares e pessoas são escassos; intencionalmente são
cobertos pelo anonimato todos os protagonistas da vicissitude teresiana. O
leitor deve procurar nas notas que acompanham o texto os nomes das pessoas e
dos lugares, deve adivinhar através da rápida alusão espaços de vida, eventos
cobertos por um véu de discrição.
O
verdadeiro ambiente do livro é o mundo interior de Teresa com toda a riqueza de
sentimentos, de experiências sobrenaturais. A alma teresiana é um vasto espaço
onde entra também todo o mundo da graça: Deus em primeiro lugar, o Espírito
Santo, Maria e depois toda a realidade do céu, do qual Teresa goza na sua vida
mística. É preciso saber entrar neste mundo fervilhante de ressonâncias sem
parar na soleira dos dados exteriores, à procura de referência
de uma história que se desenrola fora. Do fundo deste mundo sobrenatural
extremamente rico emerge uma antecipação do “Castelo Interior” com a sua
opulência de imagens, emana luz que ilumina rostos, lugares, situações
externas, que permanecem realmente quase na sombra se comparadas com a
cintilação das experiências interiores.
Em
primeiro lugar, com tintas sóbrias, que escondem quase segredos inexpressos,
encontramos a referência à própria família no ambiente do lar de Ávila. Nos
episódios da infância e da primeira adolescência manifesta-se o ambiente
religioso da Castela do século XVI com suas fraquezas humanas nas quais é
aprisionada também a menina Teresa de Ahumada. Muitas coisas da sua família, dos
seus irmãos que partiram para a América, do ambiente um passa a juventude
permanecem na sombra.
Há
depois o pequeno mundo teresiano do Carmelo da Encarnação, onde Teresa faz seu
ingresso com 20 anos de idade. Ambiente curioso, misto de esplendor e de miséria,
de fervor e de tepidez, de empenho religioso comum e de escandalosas
desigualdades sociais entre as próprias monjas. Também aqui as tintas são
sóbrias, as alusões respeitosas, as críticas ponderadas; há mais autocrítica,
na realidade, do que repreensão para as outras. Teresa viveu o seu mal-estar
interior e as suas escaladas místicas, entre fervor religioso insuspeitado e
abusos passivamente tolerados e talvez, no caso de Teresa, encorajados. Um
pequeno mundo com mais de 200 monjas, às quais se deve acrescentar parentes e
amigos em visita. Mas Teresa aí experimenta a mais terrível solidão espiritual
(cfr. V 7,20-22). Teresa é neste mundo monacal uma privilegiada; e é também uma
“senhora “entre as monjas de alta linhagem. Têm confiança nela. O seu mundo
alarga-se desde a grade do parlatório, onde antes vinham os amigos que a
distraem e depois passam os confessores e os amigos espirituais que a ajudam e
tornam-se seus primeiros discípulos e filhos. Teresa tem a sorte de manter um
estável contato com a nata da teologia e da espiritualidade da época. Abre-se a
um confronto com os movimentos de renovação da época; através da leitura dos
livros espirituais permanece “a jornada”; no diálogo com os seus confessores
entra em sintonia com a situação espiritual da Espanha e da Igreja do seu
tempo. Algo transparece da narração da vida: é um mundo que se ilumina na
vicissitude teresiana.
Do
“cantinho de Deus”, que é o Carmelo de São José onde escreve a redação
definitiva, libra-se posteriormente por toda a Igreja. São conhecidas por ela
as crises do clero e dos religiosos, os acontecimentos envolvendo a heresia
protestante que romperam a unidade da Igreja; vive na própria pele a suspeita
da Inquisição espanhola que descobriu círculos pseudomísticas. Mas Teresa não tem
medo: a sua fé é inabalável, o seu apego à Igreja sem abalos (cfr. V 25,12;
33,5). Pouco a pouco o seu mundo interior torna-se Igreja e, na Igreja, a
oração é a sua longitude de onda para viver os acontecimentos concretos; a
verdade torna-se a sua paixão, acompanhada pelo amor pelos teólogos que ensinam
esta verdade divina.
Do
ambiente do seu tempo Teresa oferece-nos assim uma luz reflexa que é a de sua
experiência sobrenatural.
Os
protagonistas da Vida de Teresa são sobretudo Deus e ela. Ao redor desta divina
amizade movem-se outras personagens que, a partir da conversão de Teresa, são
atraídos como que por misterioso imã ao círculo da comunhão espiritual. Passa
então pelo mundo teresiano os seus confessores jesuítas (Diego de Cetina, João
de Prádanos, Balatasar Álvarez), os seus amigos e mestres dominicanos (Vivente
Barrón, Garcia de Toledo, Pedro Ibáñez, Domingos Báñez), dois homens,
destacados por sua santidade (Pedro de Alcântara e Francisco Borja), os
confidentes de Ávila que constituem o grupo dos “cinco que no momento nos
amamos em Cristo” (V 16,7); entre estes uma viúva (Guiomar de Ulloa), um
sacerdote (Gaspar daza) e um leigo (Francisco de Salcedo). Emerge a figura do
pai, que com a filha aprende a orar quando ela abandonou a oração (V 7,11-15).
Em maior anonimato ficam as primeiras companheiras do mosteiro da Encarnação de
Ávila e o pequeno “colégio de Cristo”, as monjas que vivem com ela no mosteiro
São José.
4.
Testemunho de vida cristã
O Livro da Vida é, sobretudo, testemunho. A
narração detalhista dos fatos cede lugar à visão global de alguns momentos
característicos da existência onde a relação com Deus diminui ou cresce. Tudo
possui uma perspectiva meramente religiosa. Teresa quer ilustrar como Deus
procurou desde sempre realizar nela uma história de salvação, e como finalmente
logrou apesar de todas as resistências e caídas. A narração-testemunho
articula-se em diversos blocos para uma confissão das maravilhas de Deus, às
quais ela eleva o canto de glória.
A. A
minha pobre má vida pecadora
Desde
o cume da experiência humana e cristã ao qual chegou pelos cinquenta anos de
idade, Teresa lança um olhar sobre o significado da vida anterior. Para o
primeiro trato, que idealmente termina com a sua conversão (1515-1554), a visão
teresiana é ao mesmo tempo de pesar e agradecimento. Há o pesar por uma vida
constantemente tocada pela graça de Deus e consumida numa teoria de ingratidões
e de caídas. A narração que se desenrola nos capítulos 1-10 é feita nessa
perspectiva. Teresa realça como desde o início Deus se fez presente na sua vida
e ela, a tratos, sentiu-se envolvida na aventura divina (primeiros fervores da
infância, primeiras experiências de oração, vocação religiosa...). Teresa vê a
sua existência tensa entre o contínuo encalçar de Deus com abundantes e
variadas graças e a estranha resistência de sua parte que frustra a graça
divina. Mas do que em chave de “pecados”, com certa objetividade moral, é
preciso ler a narração teresiana em chave de “ingratidão” pelos dons de Deus,
de resistência às exigências do amigo fiel. Ao risco da tepidez e da
incoerência, que para o caráter apaixonado de Teresa e para a sua sinceridade
eram pecados mais graves, podia vir algo de pior. Certamente não faltava luta,
o empenho para a oração, mas havia também uma imponderável fraqueza no cortar
certas amizades e hábitos que psicologicamente a acorrentam. O momento mais
trágico da aventura de Teresa é narrado no capítulo 7 da Vida: uma divisão
interior, verdadeira esquizofrenia dilacerante, deixa Teresa num equilíbrio
instável entre Deus e os homens, entre o parlatório e a capela, entre a oração
e as conversações (V 7,17).
Deus
teve de forçar a mão e repropor-se à Teresa com o rigor do olhar além do
mal-estar interior, mas venceu com a doçura das graças, “o mais terrível
castigo”, para uma alma delicada e cheia de gratidão. A narração da sua
conversão (V 9) é a narração da derrota de Teresa
pelo amor de Deus. As lágrimas da conversão são como novo batismo, que marcam o
início de uma escalada incessante. Nunca mais Teresa voltará a lamentar-se por
ter sido infiel a Deus e às suas graças. O canto das misericórdias do Senhor,
tão presente em todo o livro (cfr. V 8,4.10; 14,10-12), parte sempre da visão
desse período infeliz. Teresa enfatiza a sua qualificação de pecadora, prefere
os santos convertidos nos quais se reflete e se consola. Mas é certo que Teresa
não é Davi, nem a Madalena nem Agostinho: o seu grande pecado foi a resistência
ao amor de Deus e o risco de perdê-lo numa cínica tibieza ou numa áurea
mediocridade. Não se deve esquecer que o pecado adquire um sentido todo
especial visto das alturas da experiência mística e do amor de Deus.
B. A
minha incompreensível vida de Graça
Igualmente
maravilhosa e desconcertante mostra-se a Teresa o outro lado da medalha. A vida
iniciada com a conversão não pára numa normal fidelidade à graça; torna-se
extraordinária experiência do amor de Deus que se manifesta “rico de
misericórdia”, melhor poderíamos dizer “opulento nas suas graças”. É comovente
o pequeno prólogo do capítulo 23 onde Teresa retoma a narração de sua vida:
“Agora começa um novo livro, uma nova vida. Aquela que até aqui foi narrada era
minha; a que vivi depois de começar a narrar essas coisas de oração é de Deus
que vive em mim” (cfr. V 23,1).
Deste
capítulo em diante assistimos à narração das maravilhas de Deus na vida de
Teresa. Depois de sua passagem do Mar Vermelho e o seu caminho para Damasco,
temos a graça da libertação interior (V 24,5-8), início de novo colóquio com
Deus, que fala interiormente e se revela até a promessa de uma só palavra de um
só livro: “Não tenhas medo: Eu dar-te-ei livro vivo” (V25-26; cfr. 26,5). Virá
em seguida a maravilhosa série de encontros com Cristo (V 27- 29), até que o
fogo queimante do Espírito se manifestara na graça da transverberação (V 29,8-
14). Conjuntamente virão às purificações interiores, das quais não está ausente
o mistério do Maligno (V 31).
Já
nos encontramos na terra prometida, no santuário onde Deus se revela e comunica
o sobrenatural. As graças são sempre maiores e marcam progressos na
reconstrução do homem interior.
Quem
queira completar quanto Teresa conta em chave autobiográfica nestes capítulos,
pode recorrer às maravilhosas descrições do tratado sobre os graus da oração,
principalmente os dois últimos, como veremos mais adiante.
C. A
minha vida a serviço da Igreja
A
última parte do livro da Vida tem clara orientação eclesial (Vida 32-40). Agora
que Teresa está libertada de si mesma e está unida a Cristo (mas ainda não
chegou ao cume do matrimônio espiritual), o horizonte de sua existência abre-se
sobre a Igreja. A irrupção do fogo do Espírito, o influxo da comunicação com
grandes santos do tempo como Pedro de Alcântara e Francisco Borja, a misteriosa
visão do inferno, a inspiração da nova fundação, lançam Teresa rumo a uma
mística eclesial de serviço. Aberta sobre a problemática da Igreja sente como
próprios tormentos as suas crises, em primeiro lugar a tragédia da heresia
protestante.
A
fundação de São José de Ávila, fato culminante da narração da Vida (V 32-36),
pertence a esta esfera eclesial e carismática, em obediência a Deus que
insiste, ordena e faz promessas para o futuro mosteiro (V 32-36). Nos últimos
capítulos este processo acentua-se sempre mais. Teresa vive a Igreja da terra
que intercede, oferecendo as tribulações da própria existência; vive imersa na
Igreja do céu cuja companhia e graças goza.
No
entanto dispara irresistivelmente o desejo escatológico alimenta agora com
muitas antecipações de glória: Teresa é suavemente dilacerada pela alternativa
entre a Igreja da terra e a do céu, entro serviço daqui e o gozo lá encima.
Teresa exclama: “Ou morrer ou sofrer!” (V 40,20). Frequentemente interpretou
erroneamente este grito, que deve ser entendido à luz de outro axioma
complementar: “Felizes as vidas gastas até o fim a serviço da Igreja” (V
40,15). Sobre este fundo, tão
característico da experiência cristã (a experiência teologal da glória e o
empenho do serviço ao Reino nesta terra), em perfeita sintonia com os
sentimentos do seu amado apóstolo Paulo, termina o Livro da Vida.
A
última página do livro testemunha a paz, maravilhosa que a nossa autora vive no
momento final da redação. No pequeno cantinho de São José, como num tranquilo
porto de mar, deitou âncoras a pequena nave de Teresa. A vida parece-lhe um
sonho, vê tudo do alto (V 40,21). Mas não é ainda o prelúdio da glória. A
pequena nave, sob o ímpeto de novas inspirações sobre o mistério da Igreja e da
salvação das almas, será ainda impulsionada para águas mais profundas, o alto
mar.
Tem
início o período mais fecundo da vida de Teresa, do qual o livro é a misteriosa
preparação e o desenho não ainda completamente manifestado. Tornar-se
evangelista pelas estradas da Espanha fundando mosteiros, em viagens
apostólicas semelhantes às de Paulo. Escreverá ainda livros sobre oração,
relações sobre sua vida espiritual, a obra prima do Castelo Interior. Com as
suas cartas levará ao calor da amizade e à concretude dos acontecimentos
cotidianos o sopro do Espírito.
Novas
metas de vida espiritual ainda a esperam: o matrimônio espiritual, as graças
místicas trinitárias das quais apenas se entrevê na Vida a preparação remota.
Até à “páscoa teresiana” da morte, como “filha da Igreja”, em Alba de Tormes.
Todo
este último período obviamente não é contado na Vida, mas é implícito como a
arvore na semente. Nós recordamos isso para pôr em realce que a profunda
experiência de Deus, narrada no nosso livro, é a raiz de uma grande árvore da
qual apenas se colhem os primeiros frutos; é o interior da grande aventura
teresiana que ainda deve desenvolver-se na Igreja.
5.
Mensagem eclesial
A.
Mensagem doutrinal e testemunho místico
A
experiência mística teresiana narrada na sua autobiografia não possui especiais
revelações para transmitir aos outros, nem à Igreja do seu tempo. A sua
mensagem é global, identifica-se com a própria vida que é toda ela experiência
de Deus e da sua graça, do mistério sobrenatural. A mensagem de Teresa é
portanto o próprio Deus, a sua existência, a sua vida, a riqueza do seu amor.
Um Deus para o homem, amigos dos homens, que oferece com sua amizade toda a
vida divina, que penetra na pessoa humana e a transforma. Por isso a mensagem
teresiana não é diferente da revelação, melhor confirma-a e torna-se esplêndida
ilustração. Todo o mundo do sobrenatural, as riquezas dos dons trazidos por
Cristo são vistas desde dentro de uma experiência excepcional de vida: a
presença do Deus vivo, o mistério da Trindade, a revelação de Cristo Salvador,
o mistério da graça como comunicação transformante de vida divina sobre o fundo
realístico do pecado e da obra do mal. É o primeiro aspecto da mensagem
teresiana: a coerência entre o conteúdo do dogma cristã e experiência mística.
Uma mensagem doutrinal.
O
segundo aspecto da mensagem teresiana é a vital. O diálogo no qual Deus se
revela envolve o homem no pedido do dom de si, da própria liberdade, então Deus
atua sobrenaturalmente e pessoa entra em contato com o sobrenatural em toda a
riqueza da humanidade. A graça penetra o tecido humano dos sentimentos e das
reações, purifica e ilumina, fortalece, destrói, e constrói. Desponta uma nova
criatura refeita interiormente, potencializada nas suas possibilidades de ação
e de serviço para os outros e a Igreja: um misticismo não só contemplativo, mas
dinâmico, criativo emerge de toda a narração teresiana. Através de suas páginas
assistimos à transformação, ou, para melhor dizer, à transfiguração de uma
vida.
Pode
afirmar-se que a mística teresiana, como é proposta no livro da Vida, coloca em
realce o caráter de redenção do pecado e de salvação como comunhão e
transfiguração da pessoa. É mística soteriológica.
Dessas
duas mensagens fundamentais, dogmático e moral, flui também uma série de lições
que se podem ler entre as linhas de cada página.
B.
Algumas lições fundamentais
Antes
de tudo Teresa narra a sua vida para estimular o leitor a empreender, com a estrada
da oração, uma aventura semelhante à sua. Se nela que era pecadora Deus pode
realizar estas coisas, quantas e quanto maiores não fará com que sabe responder
logo com amor? A condescendência
teresiana é proverbial: a sua auto-apresentação como pecadora torna-se motivo
de encorajamento para todos. No fundo de sua narração está a convicção de que
tudo é graça, até os próprios pecados quando finalmente se consegue entrar em
diálogo com Deus (Cfr. V 8,5). Ou melhor
Deus se manifesta como Senhor da história e das almas, mais poderoso do que o
mal, porque, segundo axioma teresiano, dos males sabe haurir bens. Porém antes
ou depois é preciso entrar no jogo de Deus e empreender com a “conversão” a
Ele, explicitada numa firme resolução (“determinada determinação”), o caminho
cristão segundo o evangelho: o encontro
com Cristo, conversão a ele, escuta de suas palavras, seguimento e imitação,
até deixar-se tomar a vida e o coração, a própria humanidade toda. Inicia então
“uma vida nova” com imprevisíveis consequências espirituais, mas na clara
perspectiva de doação cada vez mais gratuita ao amor e ao serviço dos outros.
Da
altura de onde Teresa contempla a sua vida é mais evidente o paradoxo
pecado-graça e portanto o jogo miséria do homem e misericórdia de Deus. O
pecado assume todas as tintas de fato teológico, de ofensa a Deus e ao seu
amor, à sua presença.
É
rejeição de um amor mil vezes oferecido, resistência a um dom gratuito.
Intuitivamente Teresa reconhece que o pecado tem um modelo na recusa de Judas a
entreter um diálogo de escuta ou de olhar com Jesus (cfr. V 19,11): permanecer
no pecado significa não querer dirigir o olhar Àquele que com amor nos fita
(cfr. V 8,1-3); converter-se é deixar-se fitar pelo amor de Deus; rezar é
manter o diálogo do olhar, a tenção em Deus que nos fita (cfr. V 13,22).
Com
sua experiência Teresa demonstra o poder que tem a intervenção forte de Deus ao
“converter”, a necessidade que temos de ser desengonçados na nossa autossuficiência
através do conhecimento de si mesmos e a abertura à ação de Deus. O homem é um
ser necessitado de renovação e purificação, mas não consegue com suas próprias
forças e os próprios programas espirituais; Deus deve intervir e refazer
interiormente o homem. A experiência mística é uma manifestação desta obra
interior do Espírito. O que o homem não consegue realizar com tantos esforços é
realizado por Deus num instante, como testemunha Teresa (cfr. V 24,6-7); Deus
comunica com o seu amor, que é transformante, virtudes sólidas como a
humildade, a caridade, a fortaleza, o desejo de sofrer e de trabalhar por ele a
serviço da Igreja (cfr. V 15,17). Mas tudo deve partir de uma interioridade
purificada, iluminada, renovada por um pacto de amor, por uma amizade divina
vivida através da oração.
6. O
caminho da oração cristã: uma divina amizade
O
segredo do testemunho teresiano e chave da sua mensagem é a sua experiência de
oração. O pequeno tratado sobre os graus da oração cristã, bruscamente inserido
e longo doze capítulos, entre a narração de sua conversão e a retomada da sua
vida nova (Vida 11-22), tem assim uma lógica colocação. Do ponto de vista do
testemunho Teresa propõe o longo caminho percorrido pela divina amizade através
da oração; do ponto de vista da mensagem Teresa oferece-o como ensinamento
característico para quem quer empreender o mesmo caminho para tornar-se “servo
do amor”.
É
certo que o discurso sobre a oração não é exclusivo dessas páginas: encontra
acenos originais já precedentemente quando Teresa nos fala das suas experiências
de oração (cfr. V 4 e 9) e quando enucleia um discurso quase doutrinal sobre a
oração (V 8). E continua depois, entrelaçado com a narração da sua experiência
espiritual. Não se pode portanto compreender o livro da Vida sem referimento à
doutrina de Teresa sobre a oração.
A.
Elogio e definição da oração
Para
compreender a importância da oração deveria partir de alguns trechos
característicos que podemos chamar “apologia da oração” ou “elogio da oração”.
Todo o capítulo 8 da Vida e a primeira parte do capítulo 11,1-5 constituem uma
espécie de grande prólogo do tratadinho sobre a oração. No capítulo 8,5
encontramos o ponto de partida na novíssima definição da oração mental: “A
oração mental nada mais é, a meu ver, do que cultivar uma relação de amizade,
tratando frequentemente na solidão com Aquele por quem sabemos ser amados”. No
centro da definição, mais experiencial do que descritiva, estão alguns
elementos característicos.
O
primeiro é a referência a Deus que nos ama por primeiro, o Deus Amor da
revelação joanina nas palavras de Jesus aos seus discípulos (cfr. Jo 15,15). A
oração é a resposta a esse amor numa dupla e inseparável relação: ser amigos de
Deus e dedicar a esta amizade momentos frequentes e exclusivos. Se a frequência
frisa a fidelidade e a perseverança dinâmica da oração, a solidão sublinha a
exclusividade e a profundidade em que acontece o colóquio e a amizade; a
solidão será depois interpretada alhures como imitação da oração de Jesus:
“porque assim fazia o Senhor quando rezava, não porque precisasse, mas para nos
ensinar” (C 24,4). Mas esta ressonância evangélica estabelece para a definição
teresiana uma luminosa e definitiva confirmação: a oração que Teresa ensina a
que foi vivida por Jesus, o modelo e o mestre da oração: um colóquio intenso e
cheio de amor com o Pai, com as notas de solidão e de frequência aludidas pelo
evangelho.
A
contribuição teresiana ao aprofundamento do mistério da oração está em algumas
notas que vai desenvolver ao longo do seu pequeno tratado e que retomará nos
outros livros: o característico relacionamento interpessoal na fé, no amor e na
esperança confiante, o dinamismo imprevisível do progressivo aproximar-se de
Deus e de sermos por ele introduzidos em forma novas de colóquio, pelo ingresso
na oração mística, a força transformante da oração, especialmente da mística
que produz efeitos maravilhosos de mudança e renovação interior.
B. Os
quatro graus da oração
Uma
bela imagem permite a Teresa de abrir logo a conversa sobre a oração que
tornar-se-á em seguida muito mais complexa de quanto possa aparecer à primeira
vista. Os quatro graus de oração indicam o intensificar-se da relação com Deus.
Teresa recorre à imagem da água (V 11,6-8), que se pode haurir de quatro
maneiras diferentes para regar:
a)
tirá-la do poço;
b)
levá-la nos aquedutos por meio de uma nora;
c)
canalizá-la de um rio pequeno ou grande;
d)
recebê-la suavemente quando chove.
A
imagem e sugestiva, e se acompanha a outras aplicações (a alma como um jardim,
as virtudes como flores e frutos que nascem crescem fecunda- dos pela água da
oração, o Senhor como jardineiro) e será retomada ao longo de todos os
capítulos do pequeno tratado. Trata-se de uma intuição que coloca em realce a
progressividade da ação de Deus na alma, ilustrada pela facilidade crescente
com que a água e levada ao jardim.
No
desenvolvimento desta metáfora Teresa não jamais de vista as características da
oração como divina amizade e não materializa jamais a imagem até o ponto de
perder o sentido personalístico da oração. Ela justa sapientemente na exposição
dos efeitos psicológicos vividos nos diversos estados de oração, mas sem
esquecer jamais os empenhos de vida e os frutos das virtudes que correspondem a
cada maneira de regar o jardim. Os seus conselhos pedagógicos sobre o exercício
da oração são mais concretos no primeiro grau e indicam de modo claro como se
deve rezar, recolhendo o intelecto e as outras potências (V 11-13) e evitando
as tentações pseudomísticas da busca dos altos graus de oração a bom mercado,
através de técnicas psicológicas. Com o ingresso na oração mística os conselhos
mais orientados a favorecer um comportamento coerente com a ação de Deus.
O
primeiro grau da oração (Vida 11-13) é a busca de Deus através da meditação com
uma orientação contemplativa que supera os obstáculos da contemplação adquirida
atrás do vazio da mente. Teresa insiste suavemente no endereçamento da mente e
o coração à presença de Cristo e à meditação dos seus mistérios, recomenda a
suavidade e a habilidade em avaliar os impedimentos da oração; estabelece
O
segundo grau é já orientação rumo a passividade da quietude (V 14-15) e o
ingresso em formas de oração mística, doada por Deus. Também aqui tem-se a
insistência sobre os efeitos santificantes da presença de Deus, qual garantia
de uma autêntica oração, numa colaboração sempre responsável por parte do
homem. A humildade, a abertura eclesial, a fortaleza no caminho da cruz serão
os indícios de uma vida já colocada por Deus a seu serviço.
O
terceiro grau intensifica a passividade. Aparece forma psicológicas de oração
muito características como o sono das potências; mas Teresa não fica parada a
sistemas e palavras e exprime também os sentimentos que experimenta enquanto
escreve. O Capítulo 16 da Vida é indicativo de uma forte experiência
carismática onde aparece a alegria do canto de glória ao amor de Deus e também
a experiência de um louvor que se exprime talvez no fenômeno da “glossolalia”
ou oração em línguas; mas é também o capítulo que fala da comunhão entre os que
se amam em Cristo e devem ajudar-se reciprocamente no caminho da oração e no
empenho da pregação apostólica. O capítulo 17 oferece conselhos válidos para
guiar a alma nesta oração muito atormentada ainda pela imaginação.
O
quarto grau corresponde a uma situação complexa e rica de oração mística
(18-21). Trata- se de forma inéditas de relacionamento com Deus suscitadas pelo
próprio Deus, com precisos efeitos somáticos; o homem é raptado pela força de
Deus, que agora se apresenta e se manifesta desde a profunda interioridade
humana em que ele está soberanamente presente (V 18,15). Teresa exalta os
frutos maduros que produz esta forma excelentíssima de receber a água de Deus:
humildade, caridade, abertura eclesial. Nova e imprevisíveis experiências de
Deus, com o êxtase (V 20), preparam a alma à doação total de si; a proximidade
de Deus acutiza nela o senso de ausência e de afastamento; aparecem os
primeiros sintomas da noite escura; no horizonte entreve-se já a purificação
passiva que intensifica o senso de abandono nas mãos de Deus (V 21).
Além
deste esquemático discurso há sempre na exposição teresiana a riqueza da vibração
humana, das comparações pitorescas, das suas orações que animam a exposição da própria
doutrina sobre a oração. O leitor não o deve esquecer, para não ficar
decepcionado na busca de uma rigorosa exposição científica dos graus da oração
cristã. É preciso saber captar além da terminologia e da descrição psicológica,
a linha progressiva do relacionamento com Deus no qual todo o homem é
solicitado e despertado. Muitas páginas de Teresa hoje adquirem atualidade
comparadas com as típicas experiências da oração carismática; mas o testemunho
teresiano pode servir de parâmetro e de critério de discernimento.
Deve
relevar-se ademais a insistência colocada sobre a força santificante da vida
mística: Deus, aproximando-se do homem, santifica-o e transforma-o
preparando-o, como parecem mostrar claramente os últimos capítulos do pequeno
tratado, à conformação com Cristo crucificado para o serviço da Igreja.
7. A
“Vida” é Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem
Pela
metade do livro, num capítulo que faz de charneira entre o tratado sobre a
oração e a retomada da narração da vida, Teresa inseriu um longo capítulo,
genial e polêmico, dedicado a afirmar a absoluta necessidade da humanidade de
Cristo em todos os graus e momentos da vida espiritual. Trata-se do capítulo
22, uma espécie de grito teresiano, de apaixonada cristologia, em que se
defende ao mesmo tempo a ortodoxia e a ortopraxis autenticamente cristãs: fé em
Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem; vida em Cristo, humana e divina
juntamente, como o é a sacratíssima humanidade do Senhor.
Estamos
talvez diante da chave de abóbada de todo o livro. Em Cristo encontra-se o
segredo do testemunho de Teresa. Se a oração é uma relação de amizade, não se
deve esquecer que para estabelecer o relacionamento são precisos os amigos; a
qualidade da amizade marca a possibilidade e o sentido da comunicação. O Deus
de Teresa é Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Na
realidade a figura de Cristo domina todo a história teresiana. O primeiro
encontro, que se tornou inconscientemente oração, remonta à infância: através
da contemplação do quadro de Jesus com a Samaritana ao lado do poço de Siquém,
a pequena Teresa encontrou o Cristo do evangelho e iniciou como uma pequena
samaritana o colóquio com ele (cfr. V 30,19). Temos logo depois os testemunhos
sobre a oração de Teresa jovem, toda centrada no colóquio com Cristo (V 4,7;
9,4-6). Por muitos anos Teresa procurou o Cristo; não devemos ficar admirados
se, chegado o momento, Cristo procurou Teresa; assim Jesus se tornou presente
no parlatório da Encarnação, para mostrar com o seu olhar a repreensão por uma
vida que era destinada a outra amizade (V 7,6). Cristocêntrica é também a
conversão teresiana (V 9,1-3), como uma nova experiência do caminho de Damasco,
e cristocêntrica é a retomada da vida espiritual sob a guia dos Padres da
Companhia de Jesus (V 23,17); 24,2).
A
entrada na vida mística é também na mesma linha.
Jesus
se oferece qual Mestre e Livro Vivo (V 26,5). É o prelúdio da fortíssima
experiência mística cristocêntrica: visões, palavras, presença do Senhor, até o
alcance de uma inefável “simbiose” com ele na comunhão eucarística (cfr. V
27-29; especialmente 28,8). É o início de um novo relacionamento, que se
tornará esponsal, com o Cristo da glória, “Luz da luz”, no esplendor das
magníficas visões místicas. De agora em diante a “Vida” é Cristo. O capítulo 22
é testemunho e doutrina. Os acentos polêmicos, com que interpela teólogos e
espirituais, revelam uma estranha paixão e uma inabalável segurança. Na humanidade
de Cristo, que para Teresa é como necessidade biológica de confronto e de
conforto para a sua mesma humanidade, todo o humano é salvo e valorizado (o
corpo, o sentimento, até a própria fraqueza). Mas na divindade de Cristo (a
“sacratíssima humanidade” indica indissoluvelmente este componente divino)
abre-se para o homem a possibilidade da divinização, da experiência do
sobrenatural. O dogma fundamental da Igreja, desde o concílio de Calcedônia, é
intuitivamente retomado por Teresa numa perspectiva espiritual muito semelhante
com a dos Padres da Igreja. Não se trata aqui de uma tese mais ou menos
abstrata sobre a contemplação mística e o seu sujeito: encontramo-nos diante da
afirmação da possibilidade da salvação do homem pelo Cristo verdadeiro Homem e
da possibilidade da sua divinização. Teresa abre com a firmação da
divina-humanidade de Cristo, qual mediador absolutamente necessário da vida
espiritual em todos os seus graus e momentos, o autêntico caminho para a
interpretação do misticismo cristão qual realização da “cristificação” do
homem. A mística teresiana, tão equilibrada nas aparentes contradições entre
humanismo e misticismo, natural e sobrenatural, interioridade e eclesialidade,
solidão e comunhão, amor de Deus e amor do próximo, ascese e virtudes sociais,
é inteiramente iluminada pela relação como Cristo. Ele preenche as páginas da
Vida de Teresa qual mestre, modelo, salvador, mediador, companheiro, esposo e
amigo.
Teresa
entrou em contato com o Cristo do Evangelho e assim apresenta-o para a
meditação e a contemplação; vê no Cristo da Paixão e da Cruz o modelo
incomparável do amor fiel e apresenta-o como cume da vida cristã. Experimentou
o Cristo da Ressurreição qual Senhor e mestre, companheiro da caminhada da
vida, e indica-O qual perene motivo de conforto e de alegria. Descobriu a
presença de Cristo na Igreja e no próximo e amou-O e serviu-O. Condensou a sua
fé no Cristo da Eucaristia e nele depositou todas as suas expectativas, as suas
orações e o seu amor.
Uma
atenta leitura do capítulo 22 da Vida oferece a chave de abóbada da mensagem
deste livro apaixonante. Cristo abre ao homem a possibilidade de uma penetração
do sobrenatural para participar da sua graça. O místico é perfeitamente humano,
como nos aparece Teresa, porque medido com a humanidade de Cristo.
A
mensagem teresiana é plenamente atual num mundo como o nosso, caracterizado
pela recuperação da humanidade de Cristo; mas é também atual a mensagem
teresiana que recorda com a sacratíssima Humanidade a Divindade de Cristo e
portanto a possibilidade, melhor a urgência, da nossa divinização.
8.
Chaves para a leitura
A
leitura do livro da Vida não é fácil. Não o é o estilo de Teresa, cheio de
divagações, diálogo aberto onde às vezes as ideias e os temas se sobrepões num
“desordenado colóquio”, como muitas vezes reconhece a autora. Não o é o
argumento, especialmente nas partes mais estritamente doutrinais e na narração
das experiências místicas. A leitura portanto requer empenho, perseverança,
capacidade de escuta e sintonia, que no momento oportuno são recompensados com
uma sempre mais profunda compreensão.
É
preciso lembrar a divisão do livro em quatro blocos precisos: capítulos 1-10:
narração autobiográfica da infância à conversão; capítulos 11-22: pequeno
tratado sobre os graus da oração; capítulos 23-31: continuação da narração da
vida com as primeiras experiências místicas; capítulos 32-49: narração da
fundação de São José e últimas graças místicas.
Tendo
terminado a redação, Teresa sintetizou pessoalmente o conteúdo de cada
capítulo, fazendo frequentemente a avaliação da doutrina nele contida; pode ser
uma boa chave de leitura a ser completada com as notas do texto que esclarecem
alusões e passagens de difícil interpretação.
Na
leitura do texto teresiano é preciso captar uma vibração confidencial, uma
experiência, um texto da Escritura, uma anotação psicológica ou pedagógica, a
beleza de uma imagem ou de uma arguta observação.
Deve
saber entrar no diálogo a três que permeia todo livro: Teresa, Deus, o leitor.
Faz-se mister entrar em atitude de escuta de Teresa que fala, que te fala, num
diálogo direto; isto requer capacidade de escuta e sintonia espiritual. A nossa
autora faz apelo à experiência para ser compreendida plenamente; quando a
experiência não existe, é preciso dar espaço à confiança no testemunho. Não se
deve resistir a entrar em diálogo com Deus. Teresa escreve na sua presença e
dialoga com Ele; todo o livro é oração mais do que discurso sobre oração. É
preciso deixar-se conduzir pela mão de Teresa neste colóquio com Deus, onde ela
reza conosco e por nós. Com ela somos convidados a cantar as misericórdias do
Senhor (o livro propõe-se próprio isso: testemunhar e glorificar esta
misericórdia), mesmo que Teresa reserve para si o poder cantar melhor porque
Deus perdoou-lhe muito mais (Cfr. V 14,2). O leitor pode estar certo de entrar,
com a leitura deste livro, no círculo dos amigos de Teresa e de estar já sob o
influxo da sua oração para tornar-se amigo de Deus, servo desse Senhor que
concede sem medida e que se deve também servir em absoluta gratuidade (Epílogo
30).
Bibliografia
T.
ALVAREZ , Introducción al libro de la Vida , Burgos, Monte Carmelo, 1964
E.
LLAMAS , Libro de la Vida , em Introcción a la lectura... o.c., pág.s 205-239.
M.
HERRAIZ , Introducción al libro de la vida , Castellón, 1982.
J.
CASTELLANO CERVERA , Introduzione, em Teresa d’Avila. Libro della mia vita,
Milano, Mondadori editore, 1986, p´qg.s 5-24.
ID.,
Introduzione, em Teresa d’Avila, Canto le misericordie del Signore,
Autobiografia, Firenze Ed. OCD, 1981, pág.s V-XXX.
F.
LAZARO CARRETER , Santa Teresa de Jesús escritora. El libro de la Vida , em
Congresso Internacional Teresiano, Vol I, pág.s 11-27.
R.
SENABRE , Sobre el género literário del libro de la Vida, ibd., Vol. II, pág.s
765-7776.
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