Oito dias
depois da Natividade, primeiro dia do ano novo, o calendário dos santos se abre
com a festa de Maria Santíssima, no mistério de sua maternidade divina. Escolha
acertada, porque de fato Ela é "a Virgem mãe, Filha de seu Filho, humilde
e mais sublime que toda criatura, objeto fixado por um eterno desígnio de
amor". Ela tem o direito de
chamá-lo "Filho", e Ele, Deus onipotente, chama-a, com toda verdade,
Mãe! - Pe Paulo
Ricardo
Neste
dia, a liturgia coloca-nos diante de evocações diversas, ainda que todas
importantes. Celebra-se, em primeiro lugar, a Solenidade de Santa Maria, Mãe de
Deus: somos convidados a contemplar a figura de Maria, aquela mulher que, com o
seu “sim” ao projeto de Deus, nos ofereceu Jesus, o nosso libertador.
Celebra-se, em segundo lugar, o Dia Mundial da Paz: em 1968, o Papa Paulo VI
propôs aos homens de boa vontade que, neste dia, se rezasse pela paz no mundo.
Celebra-se, finalmente, o primeiro dia do ano civil: é o início de uma
caminhada percorrida de mãos dadas com esse Deus que nos ama, que em cada dia
nos cumula da sua bênção e nos oferece a vida em plenitude.
O
Evangelho mostra como a chegada do projeto libertador de Deus (que se tornou
realidade plena no nosso mundo através de Jesus) provoca alegria e felicidade
naqueles que não têm outra possibilidade de acesso à salvação: os pobres e os
marginalizados. Convida-nos, também, a louvar a Deus pelo seu amor e a
testemunhar o desígnio libertador de Deus no meio dos homens.
Maria,
a mulher que proporcionou o nosso encontro com Jesus, é o modelo do crente que
é sensível aos projetos de Deus, que sabe ler os seus sinais na história, que
aceita acolher a proposta de Deus no coração e que colabora com Deus na
concretização do projeto divino de salvação para o mundo.
EVANGELHO
Lc 2,16-21 - Naquele tempo, os pastores dirigiram-se apressadamente
para Belém e encontraram Maria, José
e o Menino deitado na manjedoura. Quando O viram, começaram a contar o que lhes tinham anunciado sobre aquele
Menino. E todos os que ouviam admiravam-se do que os pastores diziam.
Maria conservava todas estas palavras,
meditando-as em seu coração. Os pastores regressaram, glorificando e
louvando a Deus por tudo o que
tinham ouvido e visto, como lhes
tinha sido anunciado. Quando se
completaram os oito dias para o
Menino ser circuncidado, deram-lhe o
nome de Jesus, indicado pelo Anjo,
antes de ter sido concebido no seio
materno.
O
texto do Evangelho de hoje é a continuação daquele que foi lido na noite de
Natal: após o anúncio do “anjo do Senhor”, os pastores (destinatários desse
anúncio) dirigiram-se a Belém e encontraram o menino, deitado numa manjedoura
de uma gruta de animais. Mais uma vez, Lucas não está interessado em fazer a
reportagem do nascimento de Jesus, ou a crônica social das “visitas” que, então,
o menino de Belém recebeu; mas está, sobretudo, interessado em apresentar uma
catequese que dê a entender (aos cristãos a quem o texto se destina) quem é
esse menino e qual a missão de que ele foi investido por Deus. Nesta catequese
fica bem claro que Jesus é o Messias libertador, enviado a trazer a paz; e há,
também, uma reflexão sobre a resposta que Deus espera do homem.
Como
pano de fundo do nosso texto está, portanto, a ideia de que, com a chegada de
Jesus, atingimos o centro do tempo salvífico… Em Jesus, a proposta libertadora
que Deus tinha para nos oferecer veio ao nosso encontro e materializou-se no
meio dos homens; o próprio nome (“Jesus” significa “Jahwéh salva”) que foi dado
ao menino, por indicação do anjo que anunciou o seu nascimento, aponta nesse
sentido. Por outro lado, o fato de essa “boa notícia” ser dada, em primeiro
lugar, aos pastores (classe marginalizada, considerada impura, pecadora e muito
longe de Deus e da salvação) significa que a proposta de Jesus se destina, de
forma especial, aos pobres e marginalizados, àqueles que a teologia oficial
excluía e condenava. Diz-lhes que Deus os ama, que conta com eles e que os
convoca para fazer parte da sua família.
Definida
a questão essencial, atentemos nas atitudes dos intervenientes e na forma como
eles respondem à chegada de Jesus…
Comentário do texto
Lucas 2, 8-9: os primeiros
convidados.
Os
pastores eram pessoas marginalizadas e pouco apreciadas. Viviam junto com os
animais, separados do resto da humanidade. Por causa do contacto permanente com
os animais eram considerados impuros. Nunca ninguém os tinha convidado para
visitar um recém-nascido. Mas é precisamente a estes pastores que aparece o
Anjo do Senhor para lhes transmitir a grande notícia do nascimento de Jesus.
Perante a aparição dos anjos encheram-se de temor.
Lc 2, 10-12: o primeiro anúncio da
Boa Nova.
A
primeira palavra do anjo é: Não temais! A segunda é: Alegria para todo o povo!
A terceira é: Hoje! Em seguida dá três nomes a Jesus querendo indicar-nos quem
é ele: SALVADOR, CRISTO e SENHOR! Salvador é aquele que a todos liberta do que
os prende. Aos governantes daquele tempo gostava de se lhes dar o nome de
“Salvador”. Eles mesmos se atribuíam o título de Soter (= Salvador). Cristo
significa ungido ou messias. No Antigo Testamento este era o título que se dava
aos reis e aos profetas. Era também o título do futuro Messias que cumprirá as
promessas de Deus relativamente ao povo. Isto significa que o recém-nascido,
que jaz num presépio, vem realizar a esperança do povo. Senhor era o nome que
se dava ao próprio Deus! Temos aqui os três títulos maiores que se possa
imaginar. A partir deste anúncio do nascimento de Jesus Salvador Cristo Senhor,
imagina alguém com uma categoria mais elevada. O anjo diz-te: “Atenção! Dou-te este
sinal de reconhecimento: encontrarás um menino num presépio, no meio dos
pobres!”. Acreditarias? O modo como Deus atua é diferente do nosso!
Lucas 2, 13-14: louvor dos anjos.
Glória
a Deus no mais alto do céu, Paz aos homens do seu agrado. Uma multidão de anjos
aparece e desce do céu. É o céu que desce sobre a terra. As duas frases do
versículo resumem o projeto de Deus, o seu plano. O primeiro diz que acontece
no mundo de cima: Glória a Deus no mais alto do céu. A segunda diz o que
sucederá no mundo daqui de baixo: Paz na terra aos homens que Ele ama! Se as
pessoas pudessem experimentar o que verdadeiramente significa ser amados por
Deus, tudo mudaria e a paz habitaria na terra. E seria esta a maior glória de
Deus que vive no mais alto.
Lucas 2, 15-18: os pastores vão a
Belém e contam a visão dos anjos.
A
palavra de Deus não é um som produzido pela boca. É sobretudo um acontecimento!
Os pastores dizem literalmente: “Vamos ver esta palavra que aconteceu e que o
Senhor nos manifestou”. Em hebraico DABAR
pode significar ao mesmo tempo palavra e coisa (acontecimento), gerado pela
palavra. A Palavra de Deus tem força criadora. Cumpre o que diz. Na Criação
disse Deus: “Faça-se a luz! E a luz foi feita”! (Gn 1, 3). A palavra do anjo
aos pastores é o acontecimento do nascimento de Jesus.
Os
pastores, depois de escutarem a “boa nova” do nascimento do libertador, se
dirigem “apressadamente” ao encontro do Menino. A palavra “apressadamente”
sublinha a ânsia com que os pobres e os marginalizados esperam a ação libertadora
de Deus em seu favor. Aqueles que vivem numa situação intolerável de sofrimento
e de opressão reconhecem Jesus como o único salvador e apressam-se a ir ao seu
encontro. É dele e de mais ninguém que brota a libertação por que os oprimidos
anseiam. A disponibilidade de coração para acolher a sua proposta é a primeira
coisa que Deus pede.
Lucas 2, 19-20: Conduta de Maria e
dos pastores perante os fatos e as palavras.
Lucas
acrescenta em seguida que “Maria conservava estas palavras (acontecimentos) meditando-os
em seu coração”. São dois modos de perceber e acolher a Palavra de Deus:
1) Os pastores levantam-se e vão ver os fatos e verificar
neles o sinal que lhes foi dado pelo anjo, e depois, voltam para os seus
rebanhos glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido.
2) Maria, por sua vez, conservava com cuidado todos os
acontecimentos na memória e meditava-os no seu coração. Meditar as coisas
significa ruminá-las, iluminá-las com a luz da Palavra de Deus, para assim
chegar a entender melhor todo o significado para a vida.
Repare-se
como os pastores reagem ao encontro com Jesus… Começam por glorificar e louvar
a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido: é a alegria pela libertação que se
converte em ação de graças ao Deus libertador. Depois, esse louvor torna-se
testemunho: quem faz a experiência do encontro com Deus libertador tem,
obrigatoriamente, de dar testemunho, a fim de que os outros homens possam
participar da mesma experiência gratificante.
A
atitude de Maria é a atitude de quem é capaz de abismar-se com as ações do Deus
libertador, com o amor que Ele manifesta nos seus gestos em favor dos homens.
“Observar”, “conservar” e “meditar” significa ter a sensibilidade para entender
os sinais de Deus e ter a sabedoria da fé para saber lê-los à luz do plano de
Deus. É precisamente isso que faziam os profetas.
A
atitude meditativa de Maria, que interioriza e aprofunda os acontecimentos,
complementa a atitude “missionária” dos pastores, que proclamam a ação
salvadora de Deus, manifestada no nascimento de Jesus. Estas duas atitudes
definem duas coordenadas essenciais daquilo que deve ser a existência do
crente.
Lucas 2, 21: A circuncisão e o nome
de Jesus.
De
acordo com a norma da Lei, o menino Jesus é circuncidado no oitavo dia depois
do seu nascimento (cf. Gn 17, 12). A circuncisão era um sinal de pertença ao
povo. Dava identidade à pessoa. Nesta ocasião cada menino recebia o seu nome
(cf. Lc 1, 59-63). O menino recebe o nome de Jesus que lhe tinha sido dado pelo
anjo, antes de ter sido concebido. O anjo tinha dito a José que o nome do
menino devia ser Jesus pois “ele salvará o seu povo dos seus pecados” (Mt 1,
21). O nome de Jesus é Cristo, que significa Ungido ou Messias. Jesus é o
Messias esperado. O terceiro nome é Emanuel, que significa Deus-conosco (Mt 1,
23). O nome completo é Jesus Cristo Emanuel!
Os contrastes que mais ressaltam no
nosso texto
- Nas
trevas da noite brilha a luz (Lc 2, 8-9).
- O
mundo de cima, o céu, parece envolver o nosso mundo daqui de baixo (Lc 2, 13).
- A
grandeza de Deus manifesta-se na pequenez de um menino (Lc 2, 7).
- A
glória de Deus faz-se presente num presépio, junto de animais (Lc 2, 16).
- O
medo provocado pela repentina aparição do anjo converte-se em alegria (Lc 2,
9-10).
- As
pessoas marginalizadas de tudo são as primeiras convidadas (Lc 2, 8).
- Os
pastores reconhecem Deus presente num menino (Lc 2, 20).
Para uma reflexão pessoal:
• No
Evangelho que, hoje, nos é proposto fica claro o fio condutor da história da
salvação: Deus nos ama, quer a nossa plena felicidade e, por isso, tem um
projeto de salvação para levar-nos a superar a nossa fragilidade e debilidade;
e esse projeto foi-nos apresentado na pessoa, nas palavras e nos gestos de
Jesus. Temos consciência de que a verdadeira libertação está na proposta que
Deus nos apresentou em Jesus e não nas ideologias, ou no poder do dinheiro, ou
na posição que ocupamos na escala social? Porque é que tantos dos nossos irmãos
vivem afogados no desespero e na frustração? Porque é que tanta gente procura
“salvar-se” em programas de televisão que lhes dê uns minutos de fama, ou num
consumismo alienante? Não será porque não fomos capazes de lhes apresentar a
proposta libertadora de Jesus?
• Diante
da “boa nova” da libertação, reagimos – como os pastores – com o louvor e a
ação de graças? Sabemos ser gratos ao nosso Deus pelo seu amor e pelo seu
empenho em nos libertar da escravidão?
• Os
pastores, após terem tomado contato com o projeto libertador de Deus,
fizeram-se “testemunhas” desse projeto. Sentimos, também, o imperativo do
testemunho? Temos consciência de que a experiência da libertação é para ser
passada aos nossos irmãos que ainda a desconhecem?
• Maria
“conservava todas estas palavras e meditava-as no seu coração”. Quer dizer: ela
era capaz de perceber os sinais do Deus libertador no acontecer da vida. Temos,
como ela, a sensibilidade de estar atentos à vida e de perceber a presença –
discreta, mas significativa, atuante e transformadora – de Deus, nos
acontecimentos mais ou menos banais do nosso dia a dia?
Maria no Evangelho de S. Lucas:
Nos
dois primeiros capítulos do seu evangelho, Lucas apresenta Maria como modelo
para a vida das comunidades. A chave é-nos dada por aquele episódio em que uma
mulher do povo elogia a mãe de Jesus ao dizer: “Felizes as entranhas que te
trouxeram e os seios que te amamentaram” (Lc 11, 27). Jesus modifica o elogia e
diz: “Felizes, antes, os que escutam a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc
11, 28). Aqui está a grandeza de Maria. É no modo como Maria se refere à
Palavra de Deus que as comunidades contemplam a maneira mais correta de se
relacionar com a Palavra de Deus: acolhê-la, encarná-la, vivê-la, aprofundá-la,
ruminá-la, fazê-la nascer e crescer, deixar-se plasmar por ela, mesmo quando
não se entende ou faz sofrer. É esta a visão que está subjacente nos dois
primeiros capítulos do evangelho de Lucas, que falam de Maria, a Mãe de Jesus.
1 - A Anunciação (Lc 1, 26-38): “Faça-se em mim segundo a tua
palavras!”. Saber abrir-se de modo que a Palavra de Deus seja acolhida e
encarne.
2 - A Visitação (Lc 1, 39-45): “Feliz aquela que acreditou!”.
Saber reconhecer a Palavra de Deus nos acontecimentos da vida.
3 - O Magnificat (Lc 1, 46-56): “O Senhor fez em mim grandes
coisas!”. Um canto subversivo de resistência e esperança.
4 - O Nascimento (Lc 2, 1-20): “Ela conservava todas estas coisas,
meditando-as no seu coração”. Não havia lugar para eles. Os marginalizados
acolhem a Palavra.
5 - A Apresentação (Lc 2, 21-32): “Os meus olhos viram a salvação!”.
Os muitos anos purificam o olhar.
6 - Simeão e Ana (Lc 2, 33-38): “Uma espada trespassar-te-à a
alma”. Ser cristão quer dizer ser sinal de contradição.
7 - Aos doze anos (Lc 2, 39-52): “Não sabíeis que devo ocupar-me das
coisas do meu Pai?”. Eles não entenderam o que lhes dizia.
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