Maria
é o modelo da vida oração do Carmelo. De fato, o Carmelo vê o seu carisma
personificado em dois grandes modelos bíblicos: o profeta Elias, do AT, e a
Virgem Maria, do NT: “Reconhecemos na Virgem Maria e no Profeta Elias os
modelos inspiradores e paradigmáticos [= modelares e significativos] desta
experiência de fé, guias seguros na travessia dos árduos caminhos que levam ao
cume do monte, Nosso Senhor Jesus Cristo” (ROTC 31). Deter-nos-emos hoje apenas
em Maria, deixando Elias para depois.
1. A presença de Maria no Carmelo
desde as origens da Ordem
A
presença de Maria é uma constante no Carmelo desde as origens da Ordem. Sendo o
propositum (a opção/empenho/regra de vida) dos primeiros carmelitas “viver em
obséquio de Jesus Cristo”, venerado como Dono e Senhor da terra que adquiriu
com a efusão do próprio Sangue (a Terra Santa, a princípio, o mundo inteiro, na
realidade), isso trouxe espontaneamente consigo, dentro da mentalidade feudal
do tempo, o relacionamento com Maria, a Mãe de Jesus. Ela é invocada como a “Dona
e Senhora” do lugar (o Carmelo; daí o diadema ducal que coroa o escudo do
Carmelo), como aquela que está atenta e cuida das necessidades dos servos do
seu Filho, os quais, graças à redenção já operada por Cristo e à recepção do
Espírito Santo, se sentem agora como seus “filhos” (no Filho) e “irmãos”, pois
querem seguir o Senhor, tal como Maria, escutando a Palavra de Deus e pondo-a
em prática (cf. Mc 3,35; Mt 12,50).
A
entrega a Maria é expressa na dedicação do oratório, construído no centro das
celas dos frades no Monte Carmelo: Os Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria do
Monte Carmelo estabeleceram-se em finais do s. XII “no Monte Carmelo, junto à
fonte de Elias e receberam, a seu pedido, uma Fórmula de Vida, de Alberto,
Patriarca de Jerusalém (1206-1214) que os constituiu numa única comunidade de
eremitas, reunidos ao redor de um oratório dedicado a Maria” (ROTC 5). “Esta
dedicação indica claramente a escolha pelos carmelitas, de Maria como Patrona”,
o que implica “uma orientação espiritual de serviço,… de se colocar
inteiramente à disposição, de se consagrar e viver em ‘obsequium’, não só de
Jesus, mas também de Maria” (E. Boaga, Como pedras vivas, Roma 1989, 75). Por
isso a profissão religiosa no Carmelo se fazia primeiro a Deus e logo a seguir
“à bem-aventurada Virgem Maria”, o que na época traduzia “o desejo de ser parte
viva na reforma da Igreja” (ibid.).
Aquele
costume manteve-se até hoje dentro da Ordem, tendo os carmelitas dedicado
sempre as suas Igrejas à bem-aventurada Virgem Maria onde quer que se fixavam.
Estas Igrejas tinham quase sempre confrarias marianas (p. ex., a de Toulouse
contava em 1267 com 5.000 membros de ambos os sexos, de onde, no s. XIV, se vêm
a formar as monjas e as Ordens Terceiras, as quais, desde 1599 (Roma, San
Martino ai Monti) se enriquecem com as Confrarias do Escapulário (cf. J. Smet,
Los carmelitas, I, 33; Boaga, o.c., 149;)
Da
dedicação do oratório a Maria, nasceu, por tradição popular local, o título de
“Irmãos (isto é, religiosos) da Bem-aventurada Virgem Maria” a que mais tarde
se acrescentou “do monte Carmelo” (1252). Tendo o título sido contestado por
outras Ordens religiosas, a controvérsia atingiu o seu ápice na Universidade de
Cambridge, na célebre disputa entre o carmelita João Horneby e o dominicano John
Stokes, vencida pelo primeiro. Isto ocorreu a 17 de Julho de 1374, no mesmo dia
em que exatamente cem anos atrás o 2º Concílio de Lião, na sexta e última
sessão, aprovava os Franciscanos e Dominicanos, concedendo que os Carmelitas e
os Agostinhos fossem aceitos como estavam, até que outra coisa se decidisse
acerca deles, o que aconteceu aquando a aprovação definitiva da Ordem por
Bonifácio VIII, em 5 de Maio de 1298 (cf. L. Saggi, Santos del Carmelo, Madrid
1982, 168).
Terá
sido este fato a levar os Carmelitas de Inglaterra, a celebrar a Solene
Comemoração de Nossa Senhora do Carmo no dia 17 de Julho, data que, ao
difundir-se a Comemoração por toda a Europa, foi transferida para a véspera,
dia 16, uma vez que no dia 17 já se celebrava S. Aleixo. Desde então é esta a
data da nossa festa e o título oficial da Ordem, onde a Virgem Maria é venerada
como “Mãe e Irmã de todos os Carmelitas” (Joseph Chalmers, ROTC, p. 9), razão
pela qual a Ordem Terceira do Carmo também se pode chamar “Ordem Secular
Carmelita da Bem-aventurada Virgem Maria do monte Carmelo”, tendo a sua Regra
sido promulgada a 16 de Julho e entrado em vigor a 8 de dezembro de 2003 “para
demonstrar o lugar de Nossa Senhora na vida carmelita” (ibid.).
O
caráter mariano do Carmelo exprime-se ainda na convicção, expressa desde as
origens, de que a Ordem foi fundada “em honra de Maria” (cf. carta do Prior
Geral, Pedro de Millaud, ao rei de Inglaterra, em 1282) e “para o seu serviço”
(Capítulo Geral de Montpellier 1287). O Carmelo reconhece-se desde então “todo
de Maria”, atribuindo à Virgem Maria a sua fundação, motivo pelo qual decidiu,
ainda no século XIII, destruir todos os documentos relativos à origem da Ordem
anteriores a 1247, a fim de se atribuir apenas a Maria a honra da fundação do
Carmelo e de sublinhar que nele tudo se deve a Maria.
Em
conformidade com a mentalidade medieval, a pertença a Maria traduz-se no hábito
carmelita, chamado “o hábito de Maria”, tendo sido substituída, entretanto, a
capa original barrada (sete barras raiadas, na vertical, evocando os sete dons
do Espírito Santo) pela capa branca, no mesmo Capítulo Geral de Montpellier,
como sinal “de humildade, honestidade e pobreza”, a fim de evocar “a veste
branca do batismo”, sublinhando o seguimento de Cristo, “de coração puro”, sendo
designada, logo no século seguinte, “o manto de Maria”, e tida como símbolo da
sua pureza (Boaga, o.c., 49).
2. Maria, Virgem puríssima, Flor do
Carmelo, Estrela do Mar.
De
fato, desde o princípio, Maria é invocada no Carmelo como “Virgem puríssima”,
tendo, por isso mesmo, sido originalmente celebrada a festa de Nossa Senhora do
Carmo no dia 8 de Dezembro, tendo-se transferido depois para 16 de Julho, a fim
de a Ordem não se envolver nas disputas que se prolongaram entre as Ordens
religiosas desde o s. XIII até ao XVI sobre a Imaculada Conceição da Virgem
Maria.
Por
isso, o ícone de Maria “La Bruna”, tido na Ordem como o que originalmente se
venerava na Igreja do Monte Carmelo, apresenta a Maria com o manto azul da
Imaculada Conceição. Aí o manto tem uma “estrela” sobre o ombro direito, em
forma de flor e astro ascendente, símbolo da virgindade daquela que invocamos
como “Flor do Carmelo”. Tendo os olhos fixos na Trindade, a cuja luz contempla
o mistério do Verbo encarnada, com a cabeça ligeiramente inclinada, num gesto
terno, manso e humilde, Maria estreita o seu Filho contra o coração,
segurando-o num véu de fogo, em gesto oblativo a Deus e aos homens, e tendo a
túnica real, de púrpura vermelha, bordada a ouro e orlada, tal como o manto,
com o ouro da caridade, ao mesmo tempo que aponta para Jesus, o Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo (a cor da túnica do Menino), o qual a acarinha,
e, agarrado às suas vestes, nos convida a caminhar com Ele unidos a ela.
Além
de “Mãe” e de “Irmã”, Maria também é invocada como “Decoro” do Carmelo (do
latim Decor Carmeli, expressão que ocorre em Is 35,2, onde significa o
“esplendor”, o “ornamento” ou “adorno”, traduzindo a mais alta e sublime
expressão da alma, como dom e participação na própria glória de Deus) e como a
“Estrela do Mar” que nos guia “no nosso desejo de seguir fielmente o seu Filho”
(Joseph Chalmers, ROTC, p. 9).
3. Maria, inspiração e guia
O
caráter mariano da Ordem decorre do trato familiar, contínuo e quotidiano, com
Maria, que, no Carmelo, é tida como fonte inspiradora e guia no obséquio a
Jesus Cristo, inspirando a nossa existência cristã no seu tríplice múnus
decorrente da consagração batismal.
1) Múnus sacerdotal. Como diz a ROTC 34, Maria é
“imagem” (isto é, modelo e espelho) e “flor primogênita” (primeira floração) da
santidade da Igreja, ocupando um lugar de destaque, não entre os grandes e
sábios, mas “entre os humildes e pobres do Senhor”, sentindo-se os terceiros
carmelitas “chamados”, como ela, “a glorificar as maravilhas realizadas pelo Senhor
na sua vida”, exercitando assim o seu múnus sacerdotal.
2) Dimensão profética. Maria leva-nos a imitá-la na sua
adesão plena a Cristo, que nos seu seio se fez carne e vida. “Com Maria” os
terceiros carmelitas aprendem antes de mais “a acolher com disponibilidade e
adesão plena a Palavra” e “a confrontar os episódios frequentemente tormentosos
da vida quotidiana com a Palavra de Deus”, Isto implica deitar mão aos recursos
que lhe facilitam tal adesão. A oração contínua, o exercício da presença de Deus;
a meditação da Palavra de Deus (lectio divina), as práticas litúrgicas e a
participação na Eucaristia, os votos, as reuniões etc. permitem-lhes viver mais
comprometido com o Evangelho, concretizando assim o ideal de santidade para o
qual é chamado.
Ao
mesmo tempo, invocada como “Virgem fiel”, porque acreditou e permaneceu firme
na fé, na esperança e no amor (pois “fidelidade” é o nome do amor que se
estende até ao fim, no tempo), Maria é fonte de inspiração do terceiro
carmelita no exercício da sua missão profética, pois a Palavra também deve
encarnar na sua vida, de modo a ser, como Maria, ‘teóforo’ ou ‘cristóforo’,
isto é ‘portador de Deus e de Cristo’, tornando-se assim verdadeiro apóstolo e
evangelizador – porque evangelizar é ter Cristo em si e comunicá-lo aos outros
–, cooperando fielmente na obra do Senhor: “Maria, em quem a Palavra se faz
carne e vida, inspira-lhes a fidelidade à missão” (ibid.).
3) Múnus real. A missão do terceiro carmelita,
continuador da missão de Cristo, traduz-se, tal como no Senhor e à imitação da
Virgem Maria, numa “ação animada pela caridade e pelo espírito de serviço”
(ibid.). Porque fiel, o carmelita esquece-se de si mesmo, para doar tudo e se
doar totalmente, colocando-se numa atitude permanente de serviço, proximidade e
disponibilidade aos outros, dando assim mais uma prova de amor.
Desta
forma, o leigo carmelita coopera efetivamente “na realização da obra de
salvação” (ibid.), tal como Maria nos inspira na nossa vida diária. Ninguém,
mais do que Maria esteve tão ligada e comprometida com a obra da salvação! E
ninguém como ela no-lo ensina a fazer na simplicidade da nossa vida quotidiana,
nos meios onde vivemos e agimos, através de uma inserção harmônica na ação da
Igreja, em conjunto e em comunhão com os irmãos.
Maria
é também a guia que acompanha o leigo carmelita no caminho da união com Deus
por meio de Cristo, de modo ser uma pedra viva na edificação da Igreja: “Com
Maria avançam pelos caminhos da história, atentos às genuínas necessidades
humanas, sempre prontos a partilhar com o Senhor o sacrifício da cruz e a
experimentar com Ele a paz de uma vida nova. Maria como membro singular e
eminente da Igreja, participou de forma especial e crescente da única mediação
entre Deus e os homens, manifestada em Cristo Jesus, da qual a Igreja é hoje
portadora e mediadora na história. Os leigos carmelitas deixam-se acompanhar
por Maria na aceitação gradual da responsabilidade de cooperar na ação de
salvação e de comunicação da graça específica da Igreja” (ibid.).
4. O Escapulário, sinal da vida em
obséquio de Cristo à imitação de Maria
A
dedicação do terceiro carmelita a Maria é também expressa pelo uso do
Escapulário. Este sacramental, consistindo em dois pedaços de pano, da cor do
hábito carmelita, ligados por dois fios, impostos sobre os ombros de modo a
pender sobre o coração de ambos os lados do corpo, pelo peito e pelas costas,
atualmente de uso devocional, teve a sua origem no Escapulário noturno usado
pelos religiosos para não abandonar, nem mesmo durante a noite, o seu próprio
hábito, considerado então apostasia. A este propósito afirma a ROTC 40: “Os
leigos carmelitas trazem com grande veneração o santo escapulário, símbolo da
caridade maternal de Maria, que, tomando a iniciativa, guarda os irmãos e irmãs
carmelitas no coração e desperta neles o desejo de imitar as suas virtudes: caridade
universal, amor à oração, humildade, pureza, modéstia. Quem usa o escapulário é
chamado a revestir-se interiormente de Cristo, para manifestar na sua vida a
sua presença salvífica em favor da Igreja e da humanidade. O escapulário, além
de recordar a proteção que Maria nos concede ao longo de toda a existência, e
também no trânsito definitivo até a plenitude na glória, recorda-nos que a
devoção Mariana, mais do que um conjunto de práticas piedosas, é um verdadeiro
“‘hábito’, ou seja, uma orientação permanente da própria conduta cristã”.
5. Conclusão
A
presença de Maria e familiaridade com ela no nosso dia-a-dia, como Mãe, Irmã,
Senhora e Padroeira, Inspiradora, Modelo e Guia, é tida no Carmelo como uma
graça, expressão do amor maternal de Maria, a quem todo os carmelitas se sentem
chamados a co-responder também com amor, prolongando sobre a terra o amor que o
Filho de Deus lhe dedicou na sua existência terrena: “No Carmelo, esta obra
tradicionalmente tem sido vivida como o amor maternal da Virgem Maria para com
os seus filhos. Os carmelitas, sentindo-se chamados por uma tão grande e tenra
mãe, não poderiam deixar de amá-la. Assim o ideal carmelita é o de ‘perder-se
em Deus no calor materno da Santa Virgem’”, como escreve Bartolomeu Xiberta,
O.Carm. (ROTC 34).
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