I. A QUINTA-FEIRA SANTA recorda-nos a Última Ceia do Senhor
com os Apóstolos. Como nos anos anteriores, Jesus celebra a Páscoa rodeado dos
mais íntimos. Mas, desta vez, a celebração tem características muito especiais,
por ser a última Páscoa do Senhor antes do seu trânsito para o Pai e em vista
dos acontecimentos que nela têm lugar. Todos os momentos desta Última Ceia
refletem a Majestade de Jesus, que sabe que morrerá no dia seguinte, e o seu
grande amor e ternura pelos homens.
A Páscoa
era a principal festa judaica e fora instituída para comemorar a libertação do
povo judeu da escravidão do Egito. “Conservareis a memória deste dia,
celebrando-o como uma festa em honra do Senhor: fá-lo-eis de geração em
geração, pois é uma instituição perpétua”1. Todos os judeus têm
obrigação de celebrar esta festa para manter viva a memória do seu nascimento
como Povo de Deus.
Jesus
encarregou os seus discípulos prediletos, Pedro e João, de preparar as coisas
necessárias. Os dois Apóstolos fazem esses preparativos com todo o cuidado.
Depois de terem levado o cordeiro ao Templo a fim de imolá-lo, vão à casa onde
terá lugar a ceia para assá-lo. Preparam também a água para as abluções2,
as “ervas amargas” (que representavam a amargura da escravidão), os “pães
ázimos” (que recordavam que os seus antepassados não os tinham cozido pela
pressa com que tinham saído do Egito), o vinho, etc. Estes cuidadosos
preparativos recordam-nos o esmero com que devemos preparar-nos para participar
da Santa Missa. Não nos esqueçamos de que em cada Missa se renova o mesmo
Sacrifício de Cristo, que se entregou por nós, e de que nós também somos seus
discípulos e ocupamos, portanto, o lugar de Pedro e João.
A Última
Ceia começa com o pôr-do-sol. Jesus recita os salmos com voz firme e num tom particularmente
expressivo. São João diz-nos que Jesus desejava ardentemente comer essa Páscoa
com os seus discípulos3.
Nessas
horas aconteceram coisas singulares, que os evangelistas tiveram o cuidado de
transmitir-nos em pormenor: a rivalidade entre os Apóstolos, que começaram a
discutir qual deles seria o maior; o exemplo surpreendente de humildade e de
serviço que Jesus dá quando se ajoelha e executa uma tarefa que se deixava aos
servos mais ínfimos: começou a lavar-lhes os pés; o amor e a ternura que
manifesta pelos seus discípulos: Filhinhos meus..., chega a dizer-lhes. “O
próprio Senhor quis dar àquela reunião tal plenitude de significado, tal
riqueza de recordações, tal comoção de palavras e sentimentos, tal novidade de
atos e preceitos, que nunca acabaremos de meditá-los e explorá-los. É uma ceia
testamentária; é uma ceia afetuosa e imensamente triste, e ao mesmo tempo
misteriosamente reveladora de promessas divinas, de perspectivas supremas. Está
próxima a morte, com inauditos presságios de traição, de abandono, de imolação;
a conversa decai logo, enquanto a palavra de Deus flui aos borbotões, nova,
extremamente doce, tensa em confidências supremas, pairando assim entre a vida
e a morte”4.
O que
Cristo fez pelos seus pode resumir-se nestas breves palavras de São João:
amou-os até o fim5. Hoje é um dia especialmente apropriado para
meditarmos nesse amor de Jesus por cada um de nós e no modo como lhe estamos
correspondendo.
II. E AGORA, ENQUANTO COMIAM, muito provavelmente no fim da
ceia, Jesus tem um gesto transcendente e ao mesmo tempo simples, numa atitude
que os Apóstolos conheciam tão bem: permanece em silêncio por uns instantes e,
a seguir, institui a Eucaristia.
O Senhor
antecipa de forma sacramental o sacrifício que consumará no dia seguinte no
Calvário. Até aquele momento, a Aliança de Deus com o seu povo estava
representada pelo cordeiro pascal sacrificado no altar dos holocaustos, pelo
banquete de toda a família na ceia pascal. Agora o Cordeiro imolado é o próprio
Cristo6: Esta é a nova aliança no meu sangue... O Corpo de Cristo é
o novo banquete que congrega todos os irmãos: Tomai e comei... Com a imolação e
oferenda de Si próprio – Corpo e Sangue – ao Pai, como Cordeiro sacrificado, o
Senhor inaugura a nova e definitiva Aliança entre Deus e os homens, e com ela
redime-os a todos da escravidão do pecado e da morte eterna.
Jesus se dá
a nós na Eucaristia para nos fortalecer na nossa fraqueza, para nos acompanhar
na nossa solidão e como antecipação do Céu. Na véspera da sua paixão e morte,
dispôs as coisas de modo a que nunca faltasse esse Pão até o fim do mundo.
Porque, nessa noite memorável, Jesus deu aos Apóstolos e aos seus sucessores,
os bispos e sacerdotes, o poder de renovarem o prodígio até o fim dos tempos:
Fazei isto para celebrar a minha memória7. Com a Sagrada Eucaristia,
que durará até que o Senhor venha8, instituiu o sacerdócio
ministerial.
Jesus permanece
conosco para sempre na Sagrada Eucaristia, com uma presença real, verdadeira e
substancial. Ele é o mesmo no Cenáculo e no Sacrário. Naquela noite, os
discípulos gozaram da presença sensível de Jesus, que se entregava a eles e a
todos os homens. Nós, nesta tarde, quando formos adorá-lo publicamente no
Monumento, também nos encontraremos novamente com Ele; Ele nos vê e nos
reconhece. Poderemos falar-lhe como faziam os Apóstolos e contar-lhe os nossos
sonhos e as nossas preocupações, e agradecer-lhe por permanecer conosco, e
acompanhá-lo recordando a sua entrega de amor. Jesus sempre nos espera no
Sacrário.
III. NISTO CONHECERÃO todos que sois
meus discípulos, se vos amardes uns aos outros9.
Jesus fala
aos Apóstolos da sua iminente partida, e é então que anuncia o mandamento novo,
proclamado também em todas as páginas do Evangelho: Este é o meu mandamento:
que vos ameis uns aos outros como eu vos amei10. Desde então,
sabemos que “a caridade é o caminho para seguir a Deus mais de perto”11
e para encontrá-lo com maior prontidão. Deus é Amor, e a alma entende-o melhor
quando pratica a caridade com maior finura, e torna-se mais nobre na medida em
que cresce nessa virtude teologal.
O modo como
tratarmos e servirmos os que nos rodeiam será o sinal pelo qual nos hão de
reconhecer como discípulos do Senhor. “Ele não fala em ressuscitar mortos nem
em qualquer outra prova evidente, mas nesta: que vos ameis uns aos outros”12.
“Muitos querem saber se amam a Cristo e procuram sinais pelos quais possam
descobri-lo. O sinal que nunca engana é a caridade fraterna [...]. E essa é
também a medida do estado da nossa vida interior, especialmente da nossa vida
de oração”13.
Dou-vos um
mandamento novo: que vos ameis...14 É um mandamento novo porque são
novos os seus motivos: o próximo é uma só coisa com Cristo, e por isso é objeto
de um especial amor do Pai. É um mandamento novo porque o Modelo é sempre
atual. É um mandamento novo porque estabelece relações novas entre os homens;
porque o modo de cumpri-lo será sempre novo: como eu vos amei; porque se dirige
a um povo novo e requer corações novos; porque estabelece os alicerces de uma
ordem diferente e desconhecida até então. É novo porque sempre será uma
novidade para os homens, acostumados aos seus egoísmos e às suas rotinas.
Nesta
Quinta-feira Santa, ao cabo deste tempo de oração, podemos perguntar-nos se,
nos lugares em que se desenvolve a maior parte da nossa vida, as pessoas sabem
que somos discípulos de Cristo pela forma amável, compreensiva e acolhedora com
que as tratamos. Podemos perguntar-nos se procuramos não cometer faltas contra
a caridade por pensamentos, palavras ou atos; se sabemos pedir desculpas quando
tratamos mal a alguém; se temos manifestações de carinho com os que estão ao
nosso lado: cordialidade, estima, umas palavras animadoras, a correção fraterna
quando for necessária, o sorriso habitual e o bom humor, serviços que
prestamos, preocupação verdadeira pelos problemas dos outros, pequenas ajudas
que passam despercebidas...
Agora que
está já tão próxima a Paixão do Senhor, recordamos a entrega de Maria ao
cumprimento da Vontade de Deus e ao serviço dos outros. “A imensa caridade de
Maria pela humanidade faz com que também nela se cumpra a afirmação de Cristo:
Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos (Jo 15,13)15.
(1) Ex 12, 14; (2)
Jo 13, 5; (3) Jo 13, 1; (4) Paulo VI, Homilia da Missa da Quinta-feira Santa,
27-III-1975; (5) Jo 13, 1; (6) 1 Cor 5, 7; (7) Lc 22, 19; (8) 1 Cor 2, 26; (9)
Jo 13, 35; (10) Jo 15, 12; (11) São Tomás, Coment. à Epístola aos Efésios, 5,
1; (12) idem, Opúsculo sobre a caridade; (13) B. Baur, A vida espiritual; (14)
Jo 13, 34; (15) Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 287.
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