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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

V Centenário Teresiano

REQUISITOS PRÉVIOS PARA UMA VIDA DE ORAÇÃO

‘A primeira vista, pode parecer um tanto estranho que um livro como o Caminho de Perfeição, escrito pela Madre Teresa para ensinar a suas filhas a oração mental, só entre no assunto no capítulo 22. Pensando bem, contudo, é uma postura lógica e de simples senso comum, pois não se trata de um simples ato de piedade, mas de uma vida inteira de oração: é muito adequado começar explicando o ambiente ou os requisitos prévios para levar esse gênero de vida.
Por isso, escreve com razão a Madre: “Foi sobre a oração que pedistes alguns conselhos. Em paga do que eu vos disser, peco-vos que observeis e leiais muitas vezes, de boa vontade, o que vos escrevi até aqui” Antes de me referir ao interior, isto é, à oração propriamente dita, direi algumas coisas necessárias que, mesmo sem serem almas muito contemplativas, poderão progredir rapidamente no serviço do Senhor. Ao invés, “é impossível serem grandes contemplativas se negligenciarem essas recomendações, e. quem se tiver nesta conta, estará muito enganada” (C 4, 3).
Como se vê, esta introdução é original como o próprio carisma teresiano, já que se trata de pré-requisitos essenciais para a vida de oração. A Santa Madre está tão convencida da importância de uma atmosfera adequada para se viver essa vida que, ao receber as postulantes à sua Ordem, diz: ‘É preciso grande informação para receber as postulantes e larga provação antes de admiti-las à profissão. Saiba o mundo, uma vez por todas, que tendes liberdade para as despedir. Em mosteiro onde se professa vida austera, muitos motivos pode haver para isso e, se virem que é este o vosso costume, ninguém se ofenderá’ (C 14, 2).
Seria um erro pensar que a Madre queda que suas postulantes ou noviças já fossem santas e perfeitas. Não, esta seria a meta a ir atingindo pouco a pouco.  Exigia, isto sim, que suas noviças se sentissem felizes naquela atmosfera que incluía os quatro requisitos prévios, que explicaremos a seguir. Assim escreveu: ‘Não penseis, minhas amigas e irmãs, que serão muitas as coisas a serem recomendadas. (...) Estender-me-ei tão somente em declarar-vos três portanto, que são das mesmas Constituições, porque multo importa entendermos o grandíssimo proveito da sua observância, para alcançarmos, interior e exteriormente, a paz tão recomendada pelo Senhor. O primeiro é o amor de umas para com outras; o segundo, o desapego de todo criado; o terceiro, a verdadeira humildade, e este, embora sela enumerado por último, é o principal e abrange a todos” (C 4. 4) Se ás três indicadas acrescentarmos a ‘boa consciência’ que depois mencionará (cf. C 5, 2), já temos elencadas as quatro colunas que são o alicerce e a base da vida teresiana de oração.
Esses requisitos prévios a uma vida carmelitano-teresiana devem ser considerados em uma determinada ordem e analisados com certo método, mas devem ser entendidos apenas como uma sistematização de idéias para sua melhor compreensão. Estes quatro requisitos estão tão relacionados entre si que, praticando um, pratica-se todos de uma vez, e são tão essenciais para uma reta construção da vida de oração que, na verdade, não é possível antepor-se um ao outro, assim como não se pode eliminar um sem que os outros sofram e se ressintam. Devem ser como os quatro pilares de uma construção: cada uma deles deve ser considerado fundamental.
A Santa Madre se deu conta disso muito cedo, razão pela qual começou por esta observação tão bela como lógica: ‘A meu ver, não pode haver humildade sem amor, nem amor sem humildade. Nem é possível existirem estas duas virtudes sem profundo desapego de toda Criatura’ (C 16, 2).
Foi, sem dúvida, a lógica da vida que a fez dar-se conta de que não é possível dar mais importância a um do que a outro elemento desses requisitos prévios, e que nenhum deles pode existir sem o outro, porque todos eles são meios que ajudam a viver a vida de plena intimidade com Deus, e não fins em si mesmos.
Para maior clareza, abordaremos os quatro pré-requisitos na seguinte ordem: boa consciência, humildade, caridade fraterna e desapego. É interessante notar, de passagem, sua maravilhosa correspondência com as quatro leis fundamentais da amizade de que falamos no capitulo anterior, ou seja: boa consciência = mútuo encontro, humildade = conhecimento mútuo, amor de umas para com as outras, amor mútuo, desapego = conformidade de vontades.
Na verdade, é a lógica da vida que unifica estes quatro elementos; daí que, sem procurá-lo, a exposição da Madre Teresa é muito coerente, e os vinte e um capítulos do Caminho que precedem aquele em que começa a explicar seu conceito de oração mental correspondem precisamente a essas quatro leis da amizade. Parece-nos muito conveniente recordar este ponto, pois acreditamos sinceramente que não seria possível explicar esses elementos teresianos guiando-nos pelos livros clássicos de teologia; quem tentasse fazê-lo não demorada muito para perceber seu próprio fracasso.
De fato, a Madre não enfrenta esses temas a partir de uma teologia teórica ou especulativa - que, por outro lado, não possuía-, mas do ponto de vista prático. O que pretende é simplesmente explicarás suas filhas a natureza da vida de oração - à que por vocação se consagraram, com sua vertente eclesial; assim, brotam de sua pena definições engenhosas e originais do que são boa consciência, humildade, amor fraterno e importância do desapego, tão externo como interno. Estes são os elementos que criam a atmosfera necessária a uma vida de oração.
Vejamos agora cada um deles.

1. BOA CONSCIÊNCIA
A Madre Teresa não se perde em digressões teológicas sobre a graça (atual ou habitual, adquirida ou infusa, etc.), mas vai diretamente ao essencial: ‘Já sabeis que a primeira pedra há de ser a boa consciência e, com todas as vossas forças, livrai-vos até dos pecados veniais e segui o mais perfeito... Sobre isto assenta bem a oração; sem este forte alicerce, todo o edifício vai em falso’ (C 5, 3-4). Em outras palavras: devemos fazer todo o possível para conservar-nos em estado de graça habitual e evitar até os pecados veniais.
Santa Teresa trata o tema da boa consciência sob dois aspectos distintos: um negativo, o outro positivo,

a) Aspecto negativo - O aspecto negativo implica a abstenção de todo pecado mortal e até dos pecados veniais deliberados. A Santa não escreveu muito sobre o pecado mortal, mas encontramos, lá e cá, expressões suas que nos traçam um quadro bastante claro sobre o que pensava a respeita Assim, por exemplo: ‘O pecado é urna guerra campal travada contra Deus por todos os nossos sentidos e potências da alma’ (ExcI. 14, 2). ‘Nesta vida, só o pecado merece ser chamado de mal, por acarretar males eternos e para sempre’ (1M 2, 5). Em suma: é a perda total da graça: “Vi com quanta justiça se merece o inferno por uma só culpa mortal”  (V 40, 10).
Quando trata do pecado venial é surpreendente ver como sabe explicá-lo bem, tanto que dá a impressão de ser uma teóloga moralista por profissão. Suas reflexões são muito instinitivas e mostram claramente que o estado de pecado venial deliberado é incompatível com a vida de oração. Escreve: “Tende em conta o aviso de extrema importância que consiste em trabalhar sempre por adquirir grande determinação de nunca ofender ao Senhor e de estar dispostas a perder mil vidas de preferência a fazer um só pecado mortal. Dos veniais guardai-vos com sumo desvelo. Refiro-me aos que se cometem com advertência, pois, sem ele, quem estará livre de cometer muitos? Mas há uma advertência de caso pensado. Há outra tão rápida que fazer o pecado e ter consciência dele é quase a mesma coisa. Nem chegamos a entender bem o que fazemos. Deus nos livre de pecado plenamente deliberado, por pequeno que seja! Quanto mais que não pode haver pouco, sendo contra tão grande Majestade, que nos está olhando continuamente, como sabemos muito bem. Parece-me a mim que é pecado premeditado. É como se alguém dissesse: ‘Senhor, ainda que vos magoe, farei este ato. Bem convencida estou de que o vedes e não o quereis, mas antes quero seguir meu capricho e apetite do que vossa vontade.’ Não me parece que possa haver pouco esta matéria, por leve que seja a culpa, senão muito, e muitíssimo’ (C 41,3).
Como vemos, a Santa Madre refere-se aos pecados cometidos deliberadamente, que têm sérias conseqüências para a vida de oração, já que com eles antepomos nossos caprichos à vontade de Deus. Longe de considerá-los irrelevantes, a Santa leva-os muito a sério, lá que, embora não rompa definitivamente nossa amizade com Jesus, o pecado venial esfria e enfraquece o ardor do amor. Sabe-se que dependemos de Deus em tudo e que, se agirmos deliberadamente contra Ele, também Ele se mostrará menos generoso conosco. Por isso, a Santa insiste em que, para que nossa amizade com Cristo seja forte e permanente, devemos provar nosso amor com fatos, não só com palavras.
O pecado venial é um obstáculo à nossa intimidade com Cristo, diminui o ardor de nosso abandono e paralisa a nossa vontade nas obras isto contradiz o amor, de forma que a relação mútua de amor fica limitada a uma simples formalidade. Daí a lei básica da psicologia do amor: devemos amar a Deus segundo nossa natureza humana, e portanto, segundo a totalidade do nosso ser psicológico.

b) Aspecto positivo - Para explicar o aspecto positivo da boa consciência, a Santa Madre também recorre a uma grande variedade de fórmulas e metáforas: seguir sempre o caminho mais perfeito em tudo o que fazemos por Nosso Senhor (cf. C 3,4; 5,2, etc.); cuidar bem do jardim da alma, extirpando dele as ervas daninhas para que o Senhor se deleite... e plantar as boas (cf. V 11, 6; 7M 4, 9); servir a Nosso Senhor (cf. 7M 4,6); todo pensamento deve concentrar-se em procurar maneiras de agradá-Lo e lhe mostrar o quanto o amamos (cf. 7M 4,6). : ‘Minhas irmãs, quero que procuremos alcançar este alvo. Desejemos e pratiquemos a oração a fim de nos satisfazer, mas para termos forcas no serviço de Deus. Não sigamos caminho não trilhado, pois não perderemos no melhor do tempo” (7 M 4,12).
Estes são os fundamentos positivos da boa consciência. Se os praticarmos com empenho, estaremos em condições de aproximar-nos muito de Deus. E não esqueçamos que a Santa afirma que “a primeira pedra tem de ser a boa consciência” (C 5,3).

2. HUMILDADE
Santa Teresa diz que, embora trate da humildade em último lugar, ela é a principal, pois reúne em si todas as demais virtudes. É óbvio que com isto não pretende fazer dela uma virtude maior que as virtudes teologais - fé, esperança e caridade nem tão pouco que as virtudes cardeais- a humildade é só uma virtude moral. Mas é interessantíssimo estudar o modo original como explica esta virtude.

a) Uma definição original - Santa Teresa define a humildade como “humildade é andar na verdade’ definição tão concisa que não é fácil entender o que quer dizer sem levar em conta o contexto. Aqui está: “Certa vez, estava eu considerando por que razão Nosso Senhor é tão amigo da virtude da humildade. Veio-me logo de improviso, sem trabalho de raciocínio, esta resposta: é por que Deus é a suma verdade - e ser humilde é andar na verdade. Grande verdade é que nada de bom procede de nós, a não ser a miséria de ser nada. Quem não entende isso anda na mentira. Quem melhor o entender, mais agradará à suma Verdade, porque anda em sua presença.” (6M, 10 7).
Não reconhecer os dons recebidos não é humildade autêntica, e sim fingida e artificiosa. Se quisermos agradecer a Deus os dons recebidos, nosso primeiro dever é reconhece-los como tais, porque não há orgulho mais sutil do que atribuir-nos as boas qualidades e pensar que as conseguimos com nosso próprio esforço. Portanto, a verdadeira humildade é a verdade, quer dizer: reconhecer que todas as nossas boas qualidades vêm de Deus, e em compensação, todos os nossos defeitos vêm de nós mesmos.
Daí a nossa Santa Madre não gostar dessa humildade artificiosa; tanto é assim que chega a dizer que, quanto mais a alma se mantém nesse estado de reconhecimento de sua própria fraqueza, mais se aproxima de Deus: ‘Ele é muito amigo da humildade. Se vos considerardes indignas de merecer o ingresso mesmo nas terceiras moradas, mais depressa lhe movereis a vontade para vos admitir na quinta. Então, continuando a frequentar essas quintas moradas, entrando nelas muitas vezes, podeis servi-lo de tal modo que vos acabe introduzindo no aposento que reservou para si’ (M conclusão 2).
Segundo a Santa, é falsa humildade dizer “sou a última das criaturas” se isto não for verdade. E, para ilustrar graficamente a importância desta virtude na vida de oração, lançou mão de um exemplo muito original, o do jogo de xadrez, comparando a humildade com a rainha, que pode dar xeque-mate no Rei da glória (cf. C 16,1-2). Foi esta virtude, diz a Santa, que trouxe o Senhor ‘do céu nas entranhas da Virgem (ibid.). Não é maravilhoso que uma pobre monja possa dar xeque-mate no Rei da glória?

b) A virtude da humildade em seus escritos - Seria preciso muitas páginas para incluir aqui textualmente as numerosas citações que nos deixou sobre a virtude da humildade. Por isso, acredito que é mais prático resumir aqui os seus ensinamentos em alguns pontos que nos façam ver a importância da virtude e que caracterizam o homem verdadeiramente humilde:

v “Nunca perde de vista o que realmente é, Isto significa que devemos ter sempre em mente o que somos, quer dizer nada, já que tudo o que temos vem de Deus” (cf. 7M 4, 2).

v “Aceita os dons de Deus com reconhecimento, como não merecidos. Reconhece humildemente que foi Deus quem os deu e nunca os considera como se fossem próprios” (cf. V 10, 4; C38, 3).

v “Está sempre contente e feliz em servir a outros” (cf. C 17, 1).

v “Confia pouco em si mesmo e em suas aptidões” (cf. Ditos 2, 25).

v “Esquece-se de si e procura servir ao Senhor que lhe deu tudo o que tem” (cf. C 36. 10).

v “Foge de qualquer louvor que possam lhe fazer” (cf. 5M 3, 11).

v “Deseja ser tido como pouco” (cf. C 15, L.).

v “Não deseja honrarias nem cargos, sejam de que tipo forem” (cf. C 12, 6).

v “Não se deixa afetar em seu agir pela honra ou desonra que dele possa decorrer” (cf. C 12, 13).

v “Não olha nunca as faltas ou pecados dos outros, mas apenas os próprios. Esta é uma regra muito importante, porque julgar os outros é apropriar-se de uma função que cabe somente a Deus” (cf. C 19, 5).

v “Sempre duvida das próprias virtudes e freqüentemente considera mais seguras e de maior quilate as que vê no seu próximo” (C 38, 9).

v “Procura saber a verdade, submete-se ao confessor e trata com ele com verdade e simplicidade” (cf. C 40, 4).

v “Suporta com serenidade seus próprios pecados e misérias, coisa importante na vida espiritual, porque irritar-se ou deprimir-se por causa deles é sinal de que atribui todo progresso aos seus esforços pessoais” (cf. C 39, 1-2).

v “Deseja ser tido por pouco e perseguido e condenado sem culpa, até em coisas graves” (cf. C 15, 2).

v “Permanece sempre contente com o que o Senhor quiser fazer dele, sentindo-se indigno de chamar-se seu servo” (cf. C 17,6).

Como pode constatar-se, temos aqui um belo tratado sobre a humildade que, em vez de abater e desanimar, consola e ilumina, Só nos resta esforçar-nos para colocá-los em prática.

3. CARIDADE FRATERNA
O próprio fato de a Madre Teresa ter dedicado quatro capítulos inteiros ao tema (cf. 04-7) já denota a importância que dava a este pré-requisito da vida de oração. Por outro Fado, se a vida de oração é um trato de amizade com o Senhor, a mera analogia deste gênero de amizade com a amizade humana evidencia que ninguém é verdadeiro amigo se não amar e respeitar os amigos do amigo, segundo o conhecido provérbio: “Os amigos dos meus amigos, são meus amigos.”
Pois bem, já sabemos que, para a Santa Madre, a função básica do Carmelo é oferecer a Cristo “um pequeno grupo de amigos verdadeiros” que devem reger-se pela regra básica que o Divino Mestre deu ao colégio apostólico: ‘Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei’ (Jo 13, 34). Portanto, Jesus não recomenda um amor qualquer, mas o próprio amor com que de nos amou e pelo qual sacrificou sua vida.
Esse amor também foi a característica mais destacada da comunidade cristã primitiva. Tanto é assim que São João, o discípulo amado, não se cansava de repetir já na velhice: ‘filhinhos, amai-vos uns aos outros’; os discípulos estranhavam que o repetisse tantas vezes e lhe perguntavam por quê, e sua resposta era sempre a mesma: que esse era o mandamento do Senhor e cumpri-lo era o bastante (cf. 1Jo 3, 23).
Madre Teresa, que tão bem soube assimilar o espírito do Evangelho, logo intuiu que as pessoas que aspiram a viver uma vida de oração e intimidade com Jesus têm absoluta necessidade de obedecer e praticar este Seu mandamento. Se não nos amarmos uns aos outros, não poderemos pretender amar a Cristo Jesus, porque esta é a mensagem evangélica desde o começo: ‘Se alguém disser ‘amo a Deus’, mas odeia seu irmão, é um mentiroso; pois quem não ama o irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê’ (1Jo 4, 20).
Em relação á prática do amor fraterno, a Santa Madre deixou escritas, normas muito concretas que a tomaram famosa entre os autores espirituais. Em primeiro lugar, a Santa não crê que seja necessário provar a necessidade desse amor mútuo, que lhe parece uma coisa evidente: “Voltando ao amor de umas para com as outras, parece escusado recomendá-lo. Pois, que gente haverá tão grosseira, vivendo na mesma companhia, sem outra convivência, outros tratos ou recreações com estranhos, que não tenha mútuo amor? Ainda mais entre nós, pois cremos que Deus ama as nossas irmãs e elas o amam, tendo deixado tudo por Sua Majestade?” (C 4, 10).
Por outro lado, é muito fácil cometer faltas na prática deste amor fraterno, pois com freqüência a vontade deixa-se dominar pela paixão e o amor mútuo diminui ou se limita a uma pessoa, de onde nascem as amizades particulares que a Santa detesta: ‘Nesta casa, onde não são nem hão de ser mais de treze, todas as irmãs devem ser amigas, todas hão de se amar igualmente, todas hão de se querer, todas hão de se ajudar. Pelo amor de Deus, guardem-se dessas particularidades, por santas que sejam! Ainda entre irmãos costumam ser veneno. Nenhum proveito vejo nisto, e, se são parentes, pior ainda, é peste!’ (C 4,7). A Madre é muito exigente quando se trata de evitar essas amizades particulares, e não vê modelo melhor que o do próprio Jesus: ‘Assemelha-se e imita o amor que nos teve o Jesus, nosso bom Amigo’ (C 7,4).
Então como deve ser esse amor mútuo entre as irmãs?
Para evitar toda confusão possível, a Santa Madre começa distinguindo dois tipos de amor fraterno: “De duas espécies de amor quero tratar. Um é espiritual, totalmente isento de qualquer sentimentalismo e ternura da natureza que o tomem menos puro. O outro é também espiritual, mas acompanhado de sensibilidade e fragilidade humana. É amor bom e licito, como o dos parentes e amigos” (C 4, 12).
O amor é espiritual quando a paixão não o influencia em nada. Os teólogos escolásticos diriam que se trata de um amor de benevolência, em oposição ao chamado amor de concupiscência. O primeiro tem por objeto o amigo em si mesmo, e quem ama não procura nenhuma vantagem pessoal; o segundo é sempre um amor interessado. A Santa escreve que ‘havendo paixão, toda a harmonia se muda em dissonância’ (C4,13). Poucos chegam a ter este amor puro espiritual, e sua presença indica maior perfeição (cf. C6, 1).
Mas o problema é: como a alma pode saber que o possui? Ponto muito importante, a que a Madre responde: “Quando Deus dá a conhecer claramente a uma pessoa o que é o mundo e quanto o mundo vale, e que há outro mundo; a diferença que há entre um e outro, e que um é eterno e o outro um sonho, ou que coisa é amar o Criador ou a criatura. não por fé ou persuasão, mas por experiência, o que é muito diferente; quando esta alma vê e prova o que se ganha com um e se perde com o outro, que coisa é o Criador e que coisa é a criatura, e muitas outras verdades que o Senhor ensina a quem se deixa instruir por ele na oração, ou a quem apraz a Sua Majestade ensinar, essa pessoa sabe amar muito melhor do que os que ainda não chegaram a essa perfeição” (C 6, 3).
Estas almas ‘se algumas vezes, no primeiro momento, por inclinação natural, gostam de se sentir amados, caindo em si, vêem que é disparate, a menos que se trate de pessoas capazes de lhes beneficiar a alma com doutrina ou com oração’ (C 6,5).
‘Ora, essas almas perfeitas já trazem tudo debaixo dos pés: bens, satisfações e prazeres que o mundo lhes pode dar. Chegaram a tal ponto que, por assim dizer, ainda que queiram, não se podem deleitar senão em Deus, ou em tratar de Deus’ (C6,6). ‘Quando se lhes representa esta verdade, riem-se de si mesmas, da preocupação que algum tempo tiveram, se era ou não correspondida a sua amizade’ (C 6, 7).
‘Parecer-vos-á que essas almas não amam como nós, nem sabem amar senão a Deus? Pois eu vos digo que amam muito mais, e maior veemência, e com amor mais proveitoso e verdadeiro; enfim, é amor. (..,) Asseguro-vos que só este amor merece tal nome, que essas outras afeições imperfeitas lhe têm usurpado o nome’ (C 6,7).
“É amizade que lhes custa muito caro: não há diligência que deixem de fazer para aproveitamento da pessoa amada. Mil vidas dariam para lhe obter um pequeno beneficio espiritual. Õ precioso amor, que tão fielmente imita o comandante-chefe do amor, Jesus, nosso bem’! (C6, 9).
Este é o verdadeiro amor de benevolência vivido com todas as suas conseqüências. É verdade que até neste amor pode haver um pouco de sensibilidade natural, mas, como destaca Santa Teresa: ‘Se, pela fragilidade natural, tem algum sentimento passageiro, logo a razão examina se aquela alma aproveita com o sofrimento, se cresce nas virtudes e se suporta bem. Feito isto, roga a Deus que a faça merecer e lhe dê paciência nas tribulações. Quando vê que a tem, não sente pesar algum, antes se alegra e consola’ C7,3).
Estas almas amam ao próximo com o amor verdadeiro, desejando só seu bem, e, se o vêem cometer alguma falta, sofrem e procuram levá-lo à verdadeira perfeição ‘logo o advertem. (...) Se não vêem emenda, não recorrem a lisonjas, nem dissimulam coisa alguma’ (C 7, 4). Ê este tipo de amor que a Santa Madre deseja para suas filhas: ‘Esta maneira de amar, quisera eu tivéssemos umas às outras. A principio não será tão perfeita, mas o Senhor a irá aperfeiçoando’ (C 7, 5).
Este tipo de amor mútuo manifesta-se em muitíssimas circunstâncias da convivência religiosa, como em compadecer-se das irmãs ao vê4as sofrer (C 7, 6), ‘também alegrar-se com as irmãs quando estão necessitadas de recreação’ (C 7, 6), preferindo os interesses das outras aos próprios (C 7, 8), procurar ‘tirar às irmãs o trabalho, tomando-o para si nos ofícios da casa’ (C 7, 9), etc.
Santa Teresa era muito exigente neste ponto do amor fraterno: ‘Cuide muito a Priora, por amor de Deus, em não permitir semelhantes coisas, Em atalhar ou não energicamente os princípios está todo o remédio ou o dano. Se souber que alguma irmã altera a paz, procure transferi4a a outro mosteiro, que Deus lhe dará meios para a dotar (C 7, 11).
Com toda razão, pois, põe ela a caridade fraterna entre os pré-requisitos a uma vida de oração (cf. C 4, 4) e exorta os que tiverem recebido do Senhor este dom a mostrar-se muito agradecidas (cf. C 6, 1), porque, para ela, o amor fraterno na vida de oração é o sinal mais seguro do amor a Deus. Ouçamos como se expressa a este respeito: “O mais certo sinal. a meu ver, para verificar se guardamos esses dois pontos com perfeição, é a observância generosa da caridade fraterna. Com efeito, não temos certeza do nosso amor a Deus, conquanto haja grandes indícios por onde se entende que o amamos- O amor ao próximo, por outro lado, logo se conhece. E convencei-vos: quanto mais adiantadas estiverdes no amor do próximo, mais tanto mais o estareis no amor de Deus. Quereis saber a razão? É tão grande o amor de Deus para com os homens que, em paqa do amor que tivermos a eles, Sua Majestade fará crescer por mil maneiras o amor que temos a ele. Não posso duvidar.” (SM 3, 8).
Como conclusão a estas considerações teresianas sobre o amor fraterno, permita-me  acrescentar aqui umas breves reflexões sobre o diálogo como mais uma expressão do amor mútuo.
Depois do concilio Vaticano II e de sua Constituição ‘Perfectae Caritatis’, falou-se e se escreveu muito a respeito da necessidade do dialogo como meio eficaz de promover o amor fraterno na vida comunitária. Não ê minha intenção explicar seus prós e contras, mas simplesmente oferecer ao leitor uma informação elementar sobre este ponto.

a) O diálogo - A primeira coisa que me ocorre dizer é que, quando usado corretamente, o diálogo pode ser um instrumento maravilhoso para reforçar o amor mútuo dos componentes de uma comunidade. Na verdade, ninguém pode negar que, mesmo depois de uma convivência de muitos anos tanto em pequenas como em grandes comunidades-, é freqüente não conhecer-se verdadeiramente uns aos outros, nem saber as respectivas opiniões sobre os temas mais importantes. Isto se deve, em grande medida, a um modo de vida comunitária regida pelo costume e por uma certa tradição em que o Superior da comunidade ordena e manda sem dar ao subordinado a oportunidade de manifestar seu próprio ponto de vista.
Hoje em dia não se pode agir assim; a mentalidade e o estilo da sociedade humana mudaram muito neste sentido, como assinala o Decreto conciliar ‘Dignitatis humanae’. Hoje incute-se mais o respeito á pessoa humana: cada um tem sua própria dignidade como pessoa e ê amado e chamado por Deus em igual medida. Seria um ato ridículo e de orgulho pensar que já sabemos tudo e que nada podemos aprender escutando os outros. Por isto, penso sinceramente que seria muito proveitoso a todos dedicar algum tempo da vida comunitária a exercitar o ‘diálogo’. É um fato histórico que, a partir dos Padres do deserto, sempre houve na vida religiosa uma espécie de diálogo comunitário, denominado ‘conferência espiritual’, na qual cada um dos participantes expressava livremente o que pensava sobre um determinado assunto. A pena é que, quando esses encontros, e também o modo ritual como se realizavam, foram institucionalizados, foi-se perdendo sua espontaneidade e, portanto, sua utilidade espiritual. O resultado foi que se transformaram em atos de observância formal, controlados pelo Superior, tomando-se estéreis para fomentar a vida comunitária.

b) Como o diálogo deve ser realizado- Apelando para a minha limitada experiência, considero que, para que o diálogo seja frutuoso e possa atingir sua finalidade, devem-se levar em conta as seguintes regras fundamentais:
Ø  Uma boa preparação é absolutamente necessária: estabelecer o ponto concreto sobre o qual dialogar, e dar tempo suficiente para que possa ser estudado de forma adequada por todos os que desejarem intervir.
Ø  Dar a cada um a oportunidade de expressar livremente o seu modo de pensar sobre o tema, e que sua opinião seja ouvida com respeito, mesmo se não for compartilhada ou aceita por todos.
Ø  Não interromper com perguntas e questionamentos enquanto alguém estiver expondo sua opinião; o diálogo não é uma discussão, e todos têm o direito de ser ouvidos. Se um diálogo se transformar em polêmica, já vai pelo caminho errado, pois a caridade e o amor fraterno são humilhados, em vez de reforçados. É evidente que antagonismos e faltas de caridade são coisas contrárias a um diálogo proveitoso.
O princípio fundamental do diálogo é não dizer nada que possa fazer mal a ninguém. Quando não se tem respeito pelos outros, quando se pensa que alguém sabe mais, é mais inteligente, os sentimentos do outro são feridos, a caridade é ofendida e, sobretudo, Nosso Senhor é ofendido. E isto é ainda pior do que não entabular diálogo algum. A verdadeira comunicação, o mútuo conhecimento, não consiste tanto em falar quanto em ouvir os outros em todos os temas que afetam a vida comunitária em seus vários aspectos.
Por outro lado, o diálogo não pode ser imposto a ninguém. Quem não tiver nada a dizer, melhor não abrir a boca; e se não tiver nada que acrescentar, não deve ser importunado para que diga algo. 0 diálogo não tem como finalidade convencer os outros de que a própria opinião é a certa e a de outros, errada, mas apenas comunicar-se e reforçar os vínculos da caridade fraterna.
Para garantir a utilidade do diálogo, é preciso que haja sempre um presidente ou moderador, oficio que bem poderia ser exercido rotativamente, preservando-se sempre a liberdade de aceitar ou recusar, pois, neste caso, não se trata de ter autoridade ou jurisdição, mas somente de presidir uma troca fraterna de idéias.

4. DESAPEGO
O último, embora não menos importante, dos pré-requisitos a uma vida de oração é o desapego. O conteúdo doutrinal da palavra ‘desapego’ na literatura ascética, tanto cristã como não cristã, é muito rico e amplo. Resumindo-o, poderíamos dizer que é o estado da alma em que esta se encontra livre de todo afeto desordenado e egoísta para com algo ou alguém.
Entretanto, não se refere só á ausência e libertação de todo apego; de fato, muitos autores espirituais usam freqüentemente o termo com um significado mais amplo, de maneira que deve coincidir mais ou menos com as palavras, quase sinônimas, abnegação, renúncia, nudez, mortificação., etc. Assim, São João da Cruz utiliza diversos termos para referir-se ao desapego, como “noite, vazio, purificação, nudez, negação”, cada um deles com um matiz diferente.
A Santa Madre Teresa emprega preferencialmente esta palavra no sentido de desapego de todo afeto, e também no de penitência, mortificação, sacrifício, etc., ou sei, para significar as variadas formas ascéticas de a vida religiosa comporta sob forma de pobreza, clausura, penitência, jejum. etc.
Não falta quem afirme que São João da Cruz mostra-se mais exigente do que Santa Teresa em matéria de desapego que, para ele, é uma condição de todo o caminho de perfeição, um nada drástico e intransigente, ao passo que a Santa — como mulher e, portanto, pessoa mais sensível - não seria tão exigente neste aspecto. Entretanto, ambos os Doutores da Igreja pensam de maneira idêntica: para chegar à verdadeira intimidade com Deus e à completa transformação de nossa vontade na sua, será preciso deixar de lado toda amarra desordenada às criaturas.
Algumas citações da Santa Madre sobre o tema nos convencerão de que ela é tão exigente quanto seu filho Frei João da Cruz:

v “Avisei que em de grande importância, ao começarem a oração, as almas se desapegarem de todo gênero de satisfações e entrarem neste caminho determinadas unicamente a ajudarem Cristo a levar a cruz, como bons cavaleiros que, sem remuneração querem servir a seu Rei” (V 15, 11).

v “É grande fundamento resolver-se desde o principio, com determinação, a seguir o caminho da cruz, sem desejar consolações. O mesmo Senhor mostrou ser essa a estrada da perfeição, dizendo: ‘Toma tua cruz e segue-me” ( V 15, 13).

v “A meu ver, não há nem pode haver humildade sem amor, nem amor sem humildade. Nem é possível existirem estas duas virtudes, sem profundo desapego de toda criatura” (C16, 2).

v “Se o desapego for verdadeiro, parece-me que não é possível sem ele não ofender ao Senhor” (F 4, 5).

v “Com efeito, se nos esvaziarmos de todo o criado e nos desapegarmos das criaturas, por amor de Deus, é certíssimo que o mesmo Senhor nos encherá de si” (7M Z 7).

Embora o método de apresentação da própria doutrina seja diferente nos dois Santos — assim, a Santa Madre não segue uma ordem metódica, e São João da Cruz é um professor na exposição sistemática-, pode-se dizer que seus ensinamentos a este respeito são idênticos.
Para confirmá-lo, seja-nos permitido recorrer a um texto mais enfático da Madre Teresa: “O que importa para nós é que nos entreguemos com total determinação, dando-lhe plena liberdade, para que ele possa pôr e tirar ã vontade como propriedade sua. E Sua Majestade tem todo o direito, não lhe neguemos o que exige de nós. Como não nos constrange, aceita o que lhe oferecemos. Contudo, não se dá de todo enquanto não nos dermos de todo a Ele. (...) O Senhor, amigo de toda ordem e harmonia, não age na alma, senão quando a vê toda sua e sem partilhas, (...) Se atravancarmos o palácio de gente baixa e de bagatelas, como há de caber nele o Senhor com sua corte? Já muito faria em estar um pouquinho no meio de tanta barafunda”. (C, 28, 12).
Uma dúvida surgirá aqui indevidamente em todo leitor que conheça, mesmo superficialmente, a vida destes dois Doutores místicos: como combinar sua insistência no desapego com a prática de sua vida?
Em relação à Santa Madre, sabe-se do afeto que professou a seus familiares, e não menos a tantos filhos e filhas (Padre Gracián, Maria de São José, etc.), como também a muitíssimas pessoas eclesiásticas e leigas. Basta percorrer o seu epistolário para percebê-lo: todas as suas cartas transpiram um afeto intenso e muito feminino pelas pessoas a quem se dirige.
Quanto a São João da Cruz, conhecemos sua predileção por seu irmão e sua cunhada, a ponto de que, enquanto foi Superior em Duruelo, Granada e Segóvia cuidou deles, enviando-lhes presentes e dinheiro para atender ás suas necessidades.
Pois bem: sabe-se que os Santos não são hipócritas nem pregam o que não praticam. Tem de haver alguma explicação que justifique este modo de agir. E é que, em todo caso, desapego não significa tornar o coração duro e insensível, pois o amor é o primeiro e o maior dos deveres.
Quando Santa Teresa e São João da Cruz falam de desapego, referem-se sempre ao interior, ou, como diriam os teólogos, ao desapego “afetivo”, para distinguí-Io do “efetivo’ Portanto, quando se viram obrigados a manifestar seu afeto por outras pessoas do modo que acabamos de recordar, não há dúvida de que o fizeram por um motivo sobrenatural. Na verdade, não são as coisa materiais em si que ameaçam o nosso desapego, e sim nossa atitude em ralação a elas. O desapego é uma atitude espiritual: um mendigo pode estar mais apegado a um punhado de moedas do que um homem rico à sua fortuna. O que importa é a reta intenção, mais do que as circunstâncias materiais.
Por isto, a primeira coisa que devemos fazer é purificar o nosso coração de todo afeto desordenado para com qualquer criatura, e regular todas as nossas ações pelo amor de Deus, que é quem deve iluminar toda a nossa vida. Eis aqui uma regra de ouro formulada pela Santa em poucas palavras: “(...) desapego que devemos ter, porque tudo depende dele, se for praticado com perfeição” (C 8.1).

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