CAPÍTULO 3
OS ESCRITOS TERESIANOS
TESTEMUNHOS DE
ESPERANÇA
Frei Jesus Castellano
Cervera, OCD
Para
aproximarmo-nos da pessoa de Santa Teresa, da sua experiência e do seu
magistério temos
os seus escritos, nos quais se reflete claramente a sua pessoa e a sua história
exterior e interior, o seu caminho espiritual. Os escritos teresianos, mais que
os de São João da Cruz, trazem as pegadas da pessoa e a vicissitudes da sua
história, embora às vezes cobertas pelo anonimato.
Uma
introdução geral aos escritos teresianos do ponto de vista literário e
doutrinal se faz necessária, antes ainda de passarmos em exame as três obras
maiores. Para este capítulo nos servimos de bom grado de algumas páginas de
frei Tomás Álvarez, por nós elaboradas.
1.
Aspectos gerais, literários, históricos e redacionais
Teresa de Jesus não é somente uma santa e uma mestra da Igreja; pertence à literatura universal e em especial à literatura espanhola do século de ouro. São conhecidos os elogios feitos aos seus escritos por estudiosos a começar pelo editor das suas obras, Mestre também ele da língua castelhana, frei Luís de León. A qualidade fundamental dos escritos teresianos, sob o perfil linguístico, está em que ela transmite a linguagem clássica conversacional do século XVI presente na Castela. Por isso a linguagem original é viva e acessível, muito mais que nas traduções, frequentemente classiquejantes e barrocas. Se se entra no texto original com o desejo de compreender, basta saber ler e entrar no jogo da conversa, mesmo que se faça necessária uma adequada introdução.
Todos
os escritos da Santa pertencem à época da sua maturidade, a partir de 1560 em
que redige
as primeiras Relações até poucas semanas antes de sua morte, com as últimas
cartas.
Na
juventude, diz-se que escreveu um pequeno romance de cavalaria. O saber
escrever não é corrente na educação das mulheres do seu tempo. Teresa é de
certo modo uma jovem privilegiada, do ponto de vista cultural.
Sobre
os escritos teresianos não pairam dúvidas quanto à originalidade, como para os
de Santa Catarina ou outros santos, nem questões críticas sobre a autenticidade
das redações, como para alguns livros de São João da Cruz. Teresa foi de uma
sorte sem par, visto que a maioria dos seus escritos se conservam autógrafos. Vida,
Caminho de perfeição – primeira redação - Modo de visitar conventos, Fundações
são conservados na Biblioteca do Mosteiro El Escorial, próximo de Madri.
Caminho de perfeição - segunda edição está nas Carmelitas Descalças de
Valladolid - Moradas ou Castelo interior conserva-se nas Carmelitas Descalças
de Sevilha. Ademais existem edições fac-símiles de todos esses livros. Dos
outros escritos menores - Relações, cartas, Poesias - existem alguns
autógrafos. O estudo dos autógrafos permite também a análise da redação concreta
e da história dos textos e das correções, como aconteceu com o Caminho de
perfeição e com o Castelo Interior e recentemente para o estudo do livro da
vida. Temos portanto edições críticas confiáveis, feitas geralmente sobre os
autógrafos, ou sobre suas edições fac-símile.
2. Os
escritos teresianos
Há diversas formas de catalogar os escritos teresianos:
-
do ponto de
vista histórico-biográfico-doutrinal: Vida e Fundações.
-
do ponto de
vista do estilo doutrinal-místico: Castelo interior, Pensamentos
sobre o amor de Deus (Conceptos de amor de Dios).
-
de caráter
ascético-pedagógico-doutrinal: Caminho de perfeição.
-
de perfil
jurídico: Constituições e Modo de visitar conventos.
-
de tom
lírico efusivo: Poesias e Exclamações.
-
de gênero
epistolar e comunicativo: Cartas.
-
Estilo
humorístico espiritual: Vexame, Desafio.
Por
interesse propriamente espiritual, devem estudar-se os livros do tríptico Vida,
Caminho, Moradas e eventualmente completados com acenos a outras obras, como as
Relações e os Pensamentos sobre o amor de Deus; e para a história recorrendo
especialmente a Fundações e Cartas.
3.
Originalidade e influxos: as fontes do seu saber
Quanto ao conteúdo, ao estilo e às fontes, os livros teresianos apresentam uma forte conotação de originalidade. Certamente as páginas da Santa não nascem do nada, pressupõem, portanto, certa preparação literária e doutrinal, refletem alguns influxos padecidos, mas prevalece finalmente a sua síntese pessoal, a sua contribuição e a riqueza da experiência espiritual.
Vida
supõe e recorda diversas leituras; Caminho certamente leva em conta uma série
de leituras, livros, correntes de pensamento, aos quais reage também com certo
viés polêmico.
No
Castelo interior praticamente não existem alusões a outros livros. É uma
síntese magistral e madura. Teresa está bem a par da situação doutrinal de sua
época. Não se submete passivamente às indicações para leitura, às vezes reage,
pontualiza, corrige.
4. A
leitura de Santa Teresa
Teresa é desde a infância leitora afortunada e apaixonada de livros; tem alguns na biblioteca de seu pai, lerá muitos romances de cavalaria quando adolescente, como fazia sua mãe Beatriz; jovem iniciar-se-á na leitura de alguns livros espirituais dos Padres da Igreja e dos autores do seu tempo, embora no início faça-o sem muita vontade. Posteriormente a sua biblioteca conventual, pessoal, será nutrida, mas seja despojada dos livros preferidos por ocasião do Decreto inquisitorial de 1559 de F. De Valdés (V 26,6). Nas constituições indicará alguns livros do tempo, essenciais como alimento para a alma, como o comer é necessário para o corpo. Sempre foi amiga de livros, de ‘letras e letrados”, da cultura espiritual (Cfr. V 5,6).
Livros
marcam presença na vida de Teresa de modo explícito ou implícito são:
-
Dos padres
da Igreja: as Cartas de São Jerônimo; o Comentário em Jó ou Moralia
de São Gregório; As Confissões de Santo Agostinho, e outros opúsculos
pseudo-agostinianos, alguns pensamentos de São João Crisóstomo.
-
Dos autores
espirituais contemporâneos: os livros de Oração e meditação de Luís
de Granada, de Pedro de Alcântara, de João de Ávila (O Audi filia?), os livros
de Francisco de Osuna (Terceiro abecedário), de Bernardino de Laredo (Subida do
monte Sião), de Alonso de Madri (Arte de servir a Deus), de Barnabé de Palma
(Via Spiritus); conhece outros escritos de outros autores como S. Vicente
Ferrer...
-
Dos livros
medievais anteriores conhece e lê A Vida de Cristo de Landulfo de
Saxônia, chamado o Cartuxo; a Imitação de Cristo, o Flos Sanctorum e outros.
-Obviamente
pelas referências implícitas e pela constatação do ambiente carmelitano em que
vive Teresa, não podemos deixar de pensar que não tenha tido suficiente cultura
espiritual carmelitana alimentada nos livros do tempo, como Speculum Ordinis
com diversas obras sobre as origens do Carmelo e a sua espiritualidade.
Outras
referências foram talvez recebidas simplesmente pelo ensinamento oral.
5. As
correntes espirituais da época
Há também reminiscências do relacionamento e as reações de Teresa diante das correntes espirituais da época, das mais abertas como o erasmismo, promotor de um cristianismo interior em contraste com a exterioridade das praxes religiosas e das cerimônias externas, às mais perigosas dos “alumbrados” , às posições polêmicas de Melchor Cano e outros inimigos da cultura das mulheres e de sua dedicação à oração. Dessas correntes colocamos em realce sobretudo três: o movimento da “devotio moderna”, os movimentos renovadores ou reformistas, as correntes heterodoxas, mais ou menos perigosas da época. Teresa participa também com grande sensibilidade e equilíbrio no diálogo entre teólogos espirituais.
A. O
movimento oracional da “devotio moderna”
Através
de livros de autores franciscanos como Francisco de Osuna, Bernardino de
Laredo, Pedro de Alcântara, Alonso de Madri, ou dos dominicanos como Luís de
Granada, Teresa inseriu-se de maneira significativa no grande movimento de
oração mental metódica, educada ao recolhimento, própria da “devotio moderna”.
Mas ao lado desses livros havia também clássicos como a Imitação de Cristo e a
Vida de Cristo de Landolfo de Saxônia, o Cartuxo. Fora iniciada à oração
interior de recolhimento pelo tio Pedro Sanchez de Cepeda, bem antes de entrar
no mosteiro, e mais tarde quando saíra para curar-se da estranha doença que por
pouco não a levou à morte.
O
benéfico influxo da oração metódica na sua vida tornou a jovem Teresa uma
convicta propagadora da oração no mosteiro entre as suas companheiras e até com
seu pai. Na perseverança da oração, interrompida somente por certo tempo,
Teresa encontrou a força para
colocar-se na verdade diante de Deus, até a sua conversão.
Muitos
dos livros que constituíram o alimento espiritual de Teresa no momento da sua
luta, conversão e renascimento espiritual, foram proibidos por um Decreto do
Inquisidor Geral Fernando Valdés em 1559. A pequena mas atualizada biblioteca
de Teresa ficou quase vazia. Em compensação o Senhor assegura-a com estas
palavras: “Não tenhas medo, eu te darei livro vivo” (V 26,5). Era a promessa de
um magistério íntimo, constante, que então inicia para Teresa, convidada assim
a aprender a sabedoria aos pés do Mestre divino.
Embora
tenha assumido desses livros muitas noções e adquirido certa experiência da oração,
não faltarão da parte de Teresa pontualizações e contestações de alguns
autores, especialmente por certos conselhos a respeito da provocação do
recolhimento interior, o método do não pensar nada, o perigo que ela encontra
no convite a transcender a humanidade de Cristo nos altos graus da vida
espiritual (V 22).
B. Os
movimentos renovadores e reformistas
Numa
perspectiva mais concreta e pessoal Teresa estabeleceu rapidamente relação
muito estreita com quem podia compartilhar da sua sede de renovação espiritual
e comunitária. Os jesuítas, os primeiríssimos confessores que lhe vieram em
ajuda no início da sua vicissitude mística, constituem um autêntico movimento
renovador do qual Teresa tem plena consciência na lembrança explicita de Inácio
de Loyola e Companhia de Jesus. Entre os franciscanos encontramos uma
personagem da altura espiritual de são Pedro de Alcântara, confessor, confidente
e protetor da Madre Teresa e de seus projetos renovadores. Ente os dominicanos
a santa conta com um grupo fervoroso de amigos espirituais que acolhem através
de algumas respeitáveis personagens o influxo reformista italiano de G.
Savonarola: entre eles os freis Garcia de Toledo, Vicente Barrón, P. Ibáñez, D.
Báñez e outros. São alguns dos representantes do movimento renovador que
prepara a grande virada reformista do Concílio de Trento, e que encontrará a
Espanha do século XVI já empenhada num amplo esforço de renovação e de explícita
reforma religiosa, com nomes destacados como o Cardeal F. Ximénez de Cisneros.
C. As
correntes heterodoxas
Não
podemos esquecer, por reflexos no caso teresiano, a existência de grupos
heterodoxos diversos que passam sob o nome de “alumbrados”, denominação abrange
realidades bem diferentes. Uma nota comum é que na Espanha do século XVI
florescem, como fruto da renovação espiritual muito sentida, grupos de cristãos
que cultivam o assim chamado “cristianismo interior” erasmiano, do seu
propagador Erasmo de Rotterdam, dedicam muito tempo
à oração mental e formam grupos fechados que chegam a degenerar, às vezes, por falta
de discernimento e do fanatismo religioso ao redor de alguma personagem
“carismática”, exaltada no seu profetismo anti-eclesial ou nas suas falsas
experiências místicas. Círculos de oração, cristãos atraídos pelo evangelismo
erasmiano e, mais tarde, grupos pequenos tocados pela heresia protestante, põem
em estado de alarme a Santa Inquisição que toma medidas drásticas nas quais se
vê envolvido o Primaz da Espanha, o Arcebispo de Toledo Bartolomeu de Carranza.
Teresa
teve consciência da existência desses grupos heréticos, mencionando-os explicitamente
(V 16,7). Melhor, um deles, o de Agostinho Cazalla e dos seus seguidores de Valladolid,
procuraram aproximar-se de Teresa durante o tempo de sua estadia na casa de D. Guiomar
de Ulloa em Ávila.
E
que nesta situação houve insinuações maldosas sobre Teresa e seus amigos,
constituídos num grupo de espirituais, tachando-os talvez somente com a
suspeita de ser círculo herético.
Os
primeiros temores de Teresa por sua pessoa envolta numa experiência mística,
dissiparam-se logo ao recorrer com sinceridade aos confessores, aos quais se
entregava humildemente para discernir a própria experiência. É sintomático que
o grupo herético de Valladolid teve logo medo de Teresa pelo fato de ser tão
aberta na busca da verdade com os seus confessores. O profundo apego à Igreja,
a convicção de encontrar nela a verdade da fé, levou-a a desconfiar de algum
amigo temeroso que lhe recordava o perigo da santa Inquisição: “Algumas pessoas
me procuravam, com muito medo, para me dizer que vivíamos tempos ruins e que
poderiam levantar contra mim falsos testemunhos, denunciando-me aos
inquisidores. Achei muita graça e ri, porque nunca tive temor disso, pois bem
sabia que, em matéria de fé, eu antes morreria mil vezes do que me oporia a
qualquer coisa da Igreja ou a qualquer verdade da Sagrada Escritura. Eu lhes
disse que não temessem quanto a isso, pois em estado bem ruim estaria a minha
alma se houvesse algo nela que me levasse a recear a Inquisição; se achasse que
havia, eu mesma iria procurá-la. Eu disse ainda que em caso de falsos
testemunhos, o Senhor me livraria de tudo e ainda me propiciaria algum
benefício” (V 33,5).
Esse
texto teresiano espelha muito bem o ambiente de suspeitas e também a segurança eclesial
da nossa Santa. De fato o seu caso não irá parar por enquanto na Inquisição;
melhor, muito rapidamente chegará a ter amigos no santo tribunal. Enviará o
manuscrito da Autobiografia para que seja revisado e avaliado por São João de
Ávila. Somente mais tarde, por causas caluniosas, florescidas na fundação de
Sevilha, terá de prestar testemunho diante da Inquisição da própria experiência
de oração com um memorial que é uma obra prima de discernimento eclesial (R 4).
A
atitude de Teresa diante dos círculos heterodoxos é bem clara: absoluta
dissociação e condenação. Mas não por isso se sente inibida de promover grupos
de autênticos amigos de Deus; nem retrocede no seu empenho de renovar a vida
espiritual por meio da oração constantemente
confrontada com as obras e o amor à Igreja. Para com as teses erasmianas Teresa
teria podido experimentar algum consenso, onde o Mestre de Rotterdam propõe uma
visão mais humanizante da vida cristã, um retorno ao Evangelho, a busca da
oração interior.
Mas
Teresa é muito “católica” para não discernir nas doutrinas erasmianas certas
posições exageradas que instintivamente ele reconduz à harmonia e à recíproca e
necessária integração. Assim a Santa escolhe o “tudo” católico:
interioridade-exterioridade, ciência - experiência, oração vocal e oração
mental, experiência interior, retorno ao Evangelho, liturgia religiosidade
popular, oração-obras, seguimento de Cristo e conhecimento dos próprios pecados,
juntamente com a gratidão pelo dom da graça. Com verdadeiro instinto
sobrenatural, o seu “sensus Ecclesiae” deixa-a fora do perigo das teses
antinômicas muito avançadas, até da heresia de reformadores e heréticos.
D. O
difícil diálogo entre teólogos e espirituais
No
quadro do florescimento espiritual do tempo e da vigilância inquisitorial pela
pureza doutrinal, ameaçada pelo espiritualismo interno e pelo protestantismo de
importação estrangeira, Teresa cai em plena polêmica doméstica entre os
espirituais e os teólogos do momento. Esta vez os espirituais não são tipos
possuídos como os “alumbrados”, mas homens santos e sábios como Luís de
Granada, Pedro de Alcântara, Francisco Borja, Luís Beltrán, ou outros. São os
teólogos que vigiam sobre a pureza da fé e estão próximos do tribunal da Inquisição
como Domingo Báñez, Melchior Cana, o Inquisidor Francisco Soto, bispo de Salamanca.
Teresa, amiga de uns e de outros, implicada num evento espiritual de
experiência, mas desejosa de confrontar-se com a Escritura e a teologia, se
encontra como a agulha da balança, o imparcial juiz de uma polêmica em que falta
o verdadeiro diálogo e onde ela se torna mediadora que aproxima uns a outros.
Os
teólogos repreendem os espirituais por sua insistência na experiência
espiritual, este iluminismo que se subtrai à ciência que pacatamente fixa os princípios
e à analise teológica na procura do discernimento da verdade. Ademais aos
teólogos parece fora de medida a exagerada democratização da experiência
interior cristã entre o povo, especialmente entre as mulheres. Soam fortes as
acusações contra alguns espirituais que escrevem tratados de oração para
“mulherzinhas, esposas de carpinteiros ...”
A
acusação mais explícita e mordaz é a de Melchior Cano que afirma, com senso
antifeminista: “mesmo que as mulheres com insaciável apetite reivindiquem o
acesso ao livro sagrado das escrituras, é preciso arvorar uma espada de fogo
que o impeça”. Ele tinha temor que essa democratização da experiência cristã
por meio da oração diminuísse o papel da teologia e dizia sem meios termos:
“Então será preciso fechar os livros, suprimir os colégios e as universidades;
aniquilar os estudos, e depois dediquemo-nos todos à oração”.
Teresa
acolheu muitas dessas acusações um pouco irracionais dos sisudos teólogos e respondeu
à letra em alguns capítulos do Caminho de perfeição.
Os
espirituais têm também sua conta aberto com os teólogos. Estão convictos de que
não basta a teologia; para compreender a vida cristã é preciso a experiência;
melhor, é esta que serve quando se trata de fazer uma escolha de vida.
Emblemático o fato de Pedro de Alcântara que repreende a Santa que fora pedir
conselho aos dominicanos em fato de pobreza, quando tinha de escutar quem da
pobreza fizera a experiência radical. Eis o tom polêmico, em nada irônico, de
Pedro de Alcântara: “Admiro-me que vossa graça submeta à opinião dos doutos aquilo
que não é da alçada deles... Com os juristas tratam-se as disputas e casos de consciência,
mas receber conselho deles em matéria de espírito é tornar-se no mínimo infiel...
Se vossa graça vai procurar conselho dos “letrados” sem espírito, verá como vai
acabar... Não busque o parecer a não ser daqueles que vivem o que aconselham...
porque ordinariamente esses tais não compreendem mais do que fazem e vivem”
(Texto em Obras de Santa Teresa III, Madri BAC, 1959, pág.s 832-833). Um
verdadeiro e próprio desafio que muito impressionou Teresa, que desta vez deu
toda a razão em matéria de pobreza ao radical franciscano. Mais tarde, porém,
teve de recorrer à sabedoria dos dominicanos na questão da pobreza, aceitando fundar
mosteiros com rendas nas pequenas cidades onde não se podia esperar viver
somente com o trabalho e as esmolas.
Em
outro longo texto do livro da Vida temos a mais decidida apologia dos teólogos
e letrados, mesmo contra as opiniões de espirituais que queriam desacreditar a
competência deles em fato de experiência espiritual. Vale a pena transcrever
aqui o longo raciocínio de Teresa que se distancia claramente das teses rígidas
de Pedro de Alcântara: “E ninguém se engane, dizendo que os letrados sem oração
não servem para quem as tem. Tenho lidado com muitos, porque de uns anos para
cá minha necessidade tem sido maior. E sempre fui amiga deles, pois, mesmo que
alguns não tenham a experiência, não se opões ao que é espiritual nem o
ignoram, já que nas Sagradas escrituras que estudam, sempre acham a verdade do
bom espírito” (V 13,18). É importante colher com esta observação o conceito que
Teresa tem do teólogo que exerce bem sua profissão; é alguém que escuta Deus
nas escrituras, que propõe a verdadeira doutrina da Igreja; de início Teresa está
convencida de que não pode existir contradição entre o que Deus doa na
experiência e o que Deus revelou na Escritura, guardada pela Igreja; o teólogo
nada mais pode fazer do que descobrir o que é de Deus nesta experiência
espiritual.
Continuando
na sua exposição Teresa manifesta ainda maior apreço pelo carisma dos teólogos:
“Eu disse isso porque há quem pense que os letrados não servem para pessoas de oração
se não seguirem o espírito. Já falei que o mestre espiritual é necessário; se
contudo, este não for instruído, - e Teresa tinha feito uma experiência amarga
- há aí um grande inconveniente. Ajuda muito relacionar-se com pessoas
instruídas; se forem virtuosas, mesmo que não sejam espirituais, trazem
proveito, e Deus fará com que entendam o que precisam ensinar e até as tornará
espirituais para que nos ajudem. E não o afirmo sem ter experimentado...” E,
ainda que para isto não pareça necessário ter instrução, sempre tive a opinião
de que todo o cristão deve procurar ter relações com que a tenha, se puder, e
quanto mais, melhor; e os que seguem o caminho da oração têm mais necessidade
disso, e tanto maior quanto mais espirituais forem”. E como conclusão:
“Portanto é muito importante que o mestre de espírito seja inteligente, isto é
bem criterioso e que tenha experiência. E ademais é “letrado”, nada de melhor” (V
13,17.19). A apologia dos teólogos comporta em Teresa a convicção e a gratidão
por eles. Melhor, parece atrair com seu raciocínio os teólogos, afim de que,
tendo entrado em contato com as graças de Deus concedidas aos espirituais, por
sua vez eles também se tornem, porque para a vida espiritual, pensando bem, não
basta somente a teologia, mas é necessária a experiência.
Quando
Teresa terá de render contas à santa Inquisição da sua experiência espiritual
num memorial de autodefesa, fá-lo-á entre outras, com uma pitada de esperteza,
nomeando todos os seus confessores e conselheiros espirituais; uma longa
ladainha de nomes entre os quais está a nata da teologia e da espiritualidade
da época, quase subentendendo, “se eu errei tendo recorrido a todos esses
teólogos, deve estar em perigo toda a Espanha!” Com um texto muito bonito
Teresa tece os elogios dos teólogos na Igreja e reconheceu o carisma deles: em fato
de experiência, escreve Teresa, “estou bem disposta a aceitar o que disserem os
eruditos, porque, ainda que não tenham passado por essas coisas, eles têm um não
sei quê próprio dos grandes letrados. Como Deus destina-os a iluminar a Sua
Igreja, quando se trata de uma verdade, dá-lhes luz para que a admitam; e se
não são dissipados, mas servos de Deus, nunca se espantam com as suas
grandezas, pois bem sabem que ele pode muitíssimo mais. Enfim quando se trata
de coisas não perfeitamente esclarecidas, eles encontram meios de explicá-las por
meio de outras já descritas. Através destas, veem que as primeiras são também
possíveis” (5M 1,7).
Santa
Teresa, mística espiritual, quer assim realizar um necessário, fecundo diálogo
entre espiritualidade e teologia, entre experiência e doutrina, para que a vida
cristã seja vivida conforme a verdade da Palavra, mas também para que a
doutrina tenha a inspiração espiritual e o destino final naquele que doa vida
em abundância.
Também
esse é um aspecto relevante da presença teresiana no campo das correntes de pensamento
do seu tempo com uma contribuição de sabedoria. Ela mesma, se sabe, passo pelo
crivo das Escrituras a sua experiência espiritual, e realizou o esforço,
iluminado pela graça do Espírito, para oferece na sua obra prima, o Castelo
interior, uma síntese e experiência espiritual, de doutrina sólida, iluminada
constantemente pela escritura, de pedagogia cristã que abre a todos, não
somente a uma elite de doutos e espirituais, as riquezas da vida batismal, que
podem desenvolver-se até alcançar os cumes da santidade como exigência de vida
e como experiência do Espírito
Isso
acontece em Teresa quando funde pessoalmente, por uma graça do Senhor, a profundidade
da experiência e a clareza da doutrina, unindo portanto a teologia e a espiritualidade.
6. O
livro vivo de Teresa: a Palavra e o Mestre
Um influxo determinante na sua experiência e nos seus escritos tem, sem dúvidas, a Escritura. Dela Teresa possui somente um conhecimento fragmentário. Não direto nem completo. Talvez jamais tenha tida nas mãos uma edição completa da Bíblia. O latim não o compreende; apesar de recitar o breviário e seguir a Missa com um pequeno missal. As reminiscências são citações dos livros, das conversas com os teólogos, de livros como a Vida de Cristo do Cartuxo Landulfo de Saxônia, na tradução castelhana de A. Montesinos, confessor da rainha Isabel de Castela, com seus textos bíblicos em vulgar da liturgia dos domingos e festas.
O
amor de Teresa pela Bíblia é proverbial. Afirma: “Todo o mal que existe no
mundo vem de não se conhecer claramente a Escritura” (V 40,1). Está disposta a
dar a vida por uma só verdade
da Escritura (V 33,5). Ama mais o Evangelho do que os outros livros de oração
(C 21,4).
Deseja ardentemente conhecer a Escritura para poder dizer o que é a união e
expressar os mistérios da vida espiritual (7M 2,13).
Recorre
facilmente a Bíblia no Comentário ao Pai nosso no Caminho de perfeição, com uma pitada
de polêmica: este livro não poderão tirá-lo de vós! Comenta nos Conceitos do
amor de Deus, alguns versos do Cântico dos cânticos, correndo o risco de cair
na censura da Inquisição por ter comentado o livro mais perigoso da Escritura; se
salva apenas a cópia do livro que o confessor mandara lanças às chamas, por
medo ser também envolto nesta arriscada aventura.
O
confessor parece que era frei Diego de Yanguas e as suas razões são estas no
dizer do frei Graciano: “Porque pareceu ao seu confessor coisa nova e perigosa
que uma mulher escrevesse sobre os Cânticos”.
Em
suma, a Escritura aparece como o fundo doutrinal que inspira a Santa ou o
recurso que comprova as suas afirmações. O caso do livro do Castelo interior é
emblemático e surpreende pela riqueza da sua inspiração bíblica. Um rico veio
que hoje é colocado em luz pelos estudiosos.
Ao
lado da Bíblia Teresa teve o privilégio singular de um magistério interior do
Senhor.
Anunciado
coma as Palavras: “Eu te darei livro vivo” (V 26,5-6), confirmado com muitas visões,
revelações, palavras de Cristo. Palavras porém simples, não discursos
complicados, ensinamentos
essenciais, de teor bíblico, palavras às vezes humaníssima. Ela reconhece com frequência
que o Senhor foi o seu Mestre e as coisas que escreve foi o Mestre quem lhas
deu a entender (V 12,6; 22,3; 39,8). Do amor pelas palavras vivas do Mestre vêm
à Teresa também o grande amor pelas palavras da Escritura.
Nos
altos graus da experiência mística cristológica e trinitária vêm à mente e à
sua pena os textos
escriturísticos mais sublimes de Paulo e de João. E em outros momentos, como
final da Exclamação 17, saem, como que a borbotões, palavras que são puramente
bíblicas, e se confunde
então a sua expressão orante com as mesmas palavras e as orações da Escritura.
7. A riqueza da experiência pessoal
O recurso à experiência é, qual fonte primária dos escritos teresianos, a verdadeira fonte da sua inspiração. Experiência muito rica e vária na vida de uma mulher aberta ao saber, ao comunicar, ao querer aprender a verdade das coisas; experiência singular, mística, pessoal dos mistérios e do modo com que Deus se doa.
Uma
primeira camada da experiência teresiana é a comum da vida com todas as suas
vicissitudes humanas: experiência própria, dos ambientes em que vive, das
pessoas que conhece, dos teólogos que consulta. Tudo é filtrado no momento
oportuno na sua síntese pessoal, cheia de bom senso, de realismo cristão e
espiritual. Outra camada é constituída pela experiência pessoal interior,
oração mística. O que ela sabe, sabe-o por experiência. Aqui está alicerçada a sua força. O que narra
não foi por ter escutado. A palavra experiência é um termo chave do léxico
teresiano e recorre com frequência no seu falar: sei isso por experiência,
tenho experiência, sei por mim mesma. E escreve com esta última sabedoria que
lhe permite desafiar os teólogos sobre certos temas ou discutir com eles sobre
certas verdades que agora ela sabe por experiência. E escreve também para
suscitar, enquanto possível, a experiência, confiando que somente por esta
sintonia experiencial é possível compreender e crer no seu testemunho.
8. O
modo de escrever
É
necessário conhecer algo do seu modo de escrever. Diversas foram as
circunstâncias e o modo
de escrever cada livro, como podemos verificar na apresentação dos três
maiores: Vida, Caminho, Castelo Interior.
O
ponto de partida da redação é constituído pela obediência aos seus confessores
em sentido formal, embora depois também a Santa goze por poder escrever e
comunicar, e às vezes
se lamente dizendo que preferiria dedicar ao trabalho de fiar a roca e o fuso
(cf. V 10,8).
Certamente
põe-se a escrever sem um programa, um esquema, ou esboço. Não tem diante de
si outros livros dos quais haurir, não consulta sequer a Escritura, mas cita de
memória, aproximadamente. O seu escrever, frequentemente de joelhos sobre o
“apoio” de sua cela e à luz de uma vela e no frio clima de Ávila e de Toledo, é
rápido; escrevia como um tabelião, dirá Frei Graciano. Escolhe cuidadosamente o
papel, a pena e a tinta, especialmente quando suspeita que o escrito deve ir em
mãos alheias.
Durante
a composição cresce a sua capacidade de comunicar, narra as suas experiências, divaga,
conversa com o leitor. Com frequência interrompe a redação, faz digressões, lamenta-se
por ter de escrever entre mil afazeres de casa e depois durante as viagens. No
final sente verdadeira satisfação pelas coisas que escreveu. É em geral
orgulhosa dos seus
livros. A Vida, define-a como uma joia, uma pedra preciosa, a sua alma, o livro
das misericórdias
do Senhor. Em alguns casos a satisfação da santa aflora nos títulos que dá aos capítulos
das obras, títulos escritos depois da redação, convidando o leitor a ler porque
as coisas ditas são importantes e contêm coisas muito bem ditas (cf. Vida
capítulos 11-15.16.18; Castelo nos títulos dos capítulos das 5, 6 e 7 Moradas).
Típico é o epílogo do livro das Moradas como experiência de contentamento por
ter terminado esta obra. O seu castelo interior da alma saiu belíssimo, cheio
de labirintos, jardins, fontes... É um verdadeiro “castelo encantado”.
Também
essas características de espontaneidade são importantes para fazer-nos compreender
que nos encontramos diante de escritos fora do normal tom acadêmico e também do
muito intimístico. Com características literárias próprias e conteúdos, estilo
de grande nível espiritual.
9. Os
recursos pessoais ao redigir
Teresa
escreve partindo da sua experiência e da sua inicial preparação literária. Em
certos momentos sente que a sua capacidade se bloqueia, como no início do livro
das Moradas, mas depois retoma com
força. Em alguns momentos ela mesma confessa de sentir-se habilitada para
dizer coisas com certa facilidade e efusão. Às vezes nos testemunhos das monjas
se chega até a exagerar dizendo que algumas páginas do Castelo interior foram
escritas com o rosto cercado de luz ao até que se encontram páginas escritas
milagrosamente... Mas já nos encontramos
diante de exagerações.
Que
à base do seu dizer se possa encontrar certa graça ou carisma sobrenatural do
saber dizer as coisas de Deus, a “gratia sermonis” de Santo Tomás (S.
Theologiae II-II, q.177, a.1, ad 3) é evidente. Mas esta graça se enxerta numa
preparação pessoal, na experiência e numa série de recursos característicos que
forma o estilo literário espiritual teresiano. Frei Tomás Alvarez indica
claramente três grandes veios expressivos que permitem ler este tema do seu
estilo literário no âmbito da espiritualidade:
a)
uma espécie de ideário muito
concreto
que corresponde às convicções de base;
b)
o recurso a imagens;
c)
a imediatez e o sentido efusivo do seu dizer com o recurso ao diálogo, ao
solilóquio, à oração.
a) O ideário teresiano é composto por
um modesto repertório de ideias base que à maneira de
conceitos chaves condensam em palavras e frases o seu ensinamento. A Santa não
tem um sistema de pensamento, nem uma bagagem precedente de cultura livresca ou
de noções universitárias da teologia da época, mesmo não ignorando algumas
generalidades. Por isso evita enunciados
abstratos e com realismo plasma em poucas palavras ideias fundamentais.
Teses
teresianas são:
-
a caducidade da vida: tudo passa;
-
o valor absoluto de Deus: só Deus basta;
-
a presença de Deus em todos os lugares;
-
a pessoa humana como morada de Deus, criada à sua imagem e a sua semelhança,
capaz de Deus e chamada ao diálogo com Ele;
-
é decidida em suas convicções a respeito da humanidade de Cristo, sobre o valor
da doutrina e dos ritos da Igreja, sobre o valor do apostolado: dar a vida por
uma única alma; ou sobre a necessária coerência entre vida de oração e ascese:
oração e vida cômoda não vão de acordo.
Detesta
devoções bobas: “de devoções bobas livre-nos Deus”; critica e zomba da mistificação
dos abobamentos feitos passar por arroubos (abobamentos-arroubos).
Os
conceitos fundamentais da vida espiritual adquirem assim realismo e concretude:
a graça é a água viva da samaritana, ou Deus que se comunica à pessoa; a alma é
o palácio de Deus; o coração é o seu trono; a pessoa humana é um castelo
interior; a eternidade é a percepção
do “para sempre, sempre” de quando criança; a oração é “tratar com Deus”, uma divina
amizade; a fortaleza é afirme decisão de seguir a Deus; o amor se demonstra com
as obras; a humildade é caminhar na verdade; o caminho da oração nos conduz a
tornar-nos da condição de Deus, a ser servos no amor; os santos são ‘os
esquecidos de si” (los olvidados de si) e os contemplativos são os que estão
“presentes e com vontade de servir” (presentes y com ganas de servir)...
b) O recurso às imagens, símbolos,
alegorias é essencial para proporcionar ao seu discurso concretude
plasticidade. Temos uma teologia simbólica e uma estética teológica da vida religiosa.
Todos os grandes livros baseiam-se sobre simbologias estruturais: o jardim da
alma (Vida), o caminho rumo à água viva e o itinerário da perfeição (Caminho d
perfeição), o castelo interior. Mas logo se entrelaçam outras numerosas imagens
complementares, como no Castelo quando recorre às duas fontes, ao
bicho-da-seda, à alegoria matrimonial; mas está repleto de outras constelações
simbólicas. Os símbolos teresianos são tomados da natureza ou da sociedade e
muitas vezes acham-se presentes na Bíblia. Não são fantasiosos. Impressionam pela
imediatez e procuram dizer o inefável, expressar o inexprimível que é vital e
não só conceitual, provocar a experiência, encantar o leitor diante das
maravilhas de Deus na natureza e na vida da graça. Prefere os símbolos da água,
as metáforas militares, algumas maravilhas da natureza ou da vida humana.
c) A efusividade da autora nos seus
livros é também um recurso congenial aos seus sensos de amizade e de intimidade
ao diálogo com o possível leitor e com Deus. Teresa deseja contagiar,
encorajar, engulosinar o leitor, quase plasmando com verdadeira unção
espiritual no escrito as mesmas realidades que está vivendo, e comunicando com
as ideias, num intenso diálogo afetivo-amigável a mesma vida divina que é
aberta a todos. É sua convicção que Deus quer doar-se a nós sem medida, como
conclui o livro da Vida. É típico da santa o seu imediato comunicar,
testificar, transferir à pena o que são suas experiências íntimas, para que o
leitor participe delas também e se torne um dos nossos, um do grupo dos amigos
de Deus.
10.
Aspectos doutrinais da redação dos escritos
A. O
gênero coloquial
Do
ponto de vista literário e doutrinal os escritos teresianos não se configuram
como escrito de reflexão ou de exposição, mas sim como narração e conversação.
Foi dito que são uma longa carta escrita aos seus amigos ou uma amigável
conversação sobre Deus e sobre as coisas de Deus perto da lareira de casa. Do
gênero epistolar e da nota coloquial conservam, portanto, o estilo, a
efusividade, a imediatez da comunicação. Grande conversadora, capaz de entreter
por horas em agradável conversação os seus amigos e as suas monjas, adotando o
gênero literário da conversação desmancha o seu estilo e as suas resistências e
consegue comunicar, tornando juntamente o seu escrever, experiência contada e
pedagogia da convicção e da comunicação.
Este
estilo narrativo, a arte de narrar a própria experiência, hoje recuperado a
nível teológico como teologia narrativa, explica o estilo triangular com que os
escritos teresianos entrelaçam
o referimento a ela, escritora, implicada no fato de escrever e de narrar, a
atenção ao leitor, que sempre é concreto, mesmo sabendo que poderá ser também
qualquer eventual leitor do escrito. Finalmente, o contínuo remeter-se a Deus,
como protagonista da vida, como termo do ensinamento, mas também como
testemunha e presença viva com quem dialoga e a quem implica com orações
espontâneas e invocações, em nada ponderadas ou forçadas.
Assim
Frei Tomás caracteriza a nota pessoal (a protagonista), dialogal ou dialógica
(o leitor ou
os leitores) e teologal (Deus).
a) A Santa apresenta nos seus escritos
um forte acento pessoal. Consegue afirmar a sua presença; certamente é ela que
escreve e narra, exprime a sua vida, põe em luz constantemente a sua
experiência, fonte se suas afirmações. Ademais, empenha a si mesma em quanto
diz, às vezes sob certo anonimato, mas sempre com aquele ‘eu” robusto do seu dizer
e do seu testemunhar. E comunica certamente ao todo uma sua vibração feminina
de mulher, de cristã e de mística.
b) Nos escritos Teresa dialoga com o
leitor, conta a pessoas concretas a sua vida, o seu caso. No livro da Vida são os seus confessores, o
grupo de amigos, às vezes a concreta referência a um confessor (Frei Garcia de
Toledo), às vezes um grupinho formado pelos cinco que no momento presente nos
amamos em Cristo (Cf. V 16,5-7). Com maior frequência, nas outras obras
conversas com as suas monjas, o círculo mais restrito e concreto. Não um
artifício literário, mas sim recurso pedagógico que tem também o inconveniente
de surpreender o leitor. Os livros teresianos permanecem abertos a novos amigos
que queiram fazer parte do círculo teresiano, novos leitores que entram através
deste gênero literário da conversação no vivo da experiência da Mestra.
c) Finalmente nos escritos teresianos
está presente Deus, como interlocutor e testemunha, com uma naturalidade
desconcertante. Como está presente na vida de Teresa. O escrever torna-se frequentemente
oração, diálogo com Ele, louvação do seu nome, canto das suas misericórdias.
Como se Deus fosse ao mesmo tempo pessoa de que se narra a intervenção maravilhosa
na sua vicissitude, objeto-sujeito para quem se endereça o pensamento do leitor,
testemunha e eleitor também Ele, Deus, do acontecimento narrado ou da doutrina
proposta. Dos escritos teresianos, com naturalidade, se podem haurir “orações”,
invocações. Teresa fala da oração orando, e o leitor é surpreendido ao escutar
o testemunho teresiano e ver-se envolto na sua mesma profissão de fé e no seu
diálogo com Deus.
B. A
marca feminina
Seguindo
algumas considerações sobre o estilo característico da redação das obras ao feminino,
podemos verificar em santa Teresa aquelas notas que as estudiosas do estilo feminino
colocam em realce:
a) O estilo biográfico que emerge,
mesmo com o devido anonimato, em todas as obras, distante do intelectualismo
abstrato.
b) A tendência à concretude na
exposição dos temas, no colóquio com o leitor, no recurso a imagens e
realidades da vida cotidiana.
c) A sensibilidade pela narração
histórica mesmo que parcial, que evita as generalizações e
os
discursos onicompreensivos. Significativo o seu contar a própria vida, o apego
à história das fundações, começando pela de São José de Ávila.
d) O tom de interioridade e
ressonância espiritual, tão característico das obras teresianas, da Vida ao
Castelo, onde uma leitura ao feminino evidencia as dimensões do vivido
interior: castelo, salas, água viva, transformação...
e) O forte acento colocado na
relacionalidade que se exprime no diálogo vivo com os leitores e as leitoras.
11.
Conclusão: uma experiência cristã totalitária
Antes de aprofundar alguns dos conteúdos mais importantes da experiência e da doutrina teresianas, percorremos sinteticamente algumas palavras do conteúdo global da sua mensagem como a de uma experiência cristã totalitária. Para indicar esta totalidade de serviço sirvo-me de bom grado da expressão paulina de Ef 3,18-19, onde se fala das quatro dimensões do amor de Cristo; a saber: largura, comprimento, altura e profundidade.
a) Na largura colocamos a sua
experiência horizontal de comunhão com a realidade da sociedade e da Igreja do
seu tempo, que entra a fazer parte normalmente como experiência concreta,
histórica, eclesial da sua vida espiritual. Ela é testemunhada em todos os seus
escritos, de modo especial nas Fundações e nas Cartas. É próprio a ampla
abertura , sempre maior à realidade humana e social que a cerca e que forma
parte também do seu viver e da sua comunhão com Deus; não como mera anedota, ou
palavreado superficial, mas como experiência de vida, ocasião de encarnação do
seu zelo apostólico, viva participação nas coisas de Deus.
b) A segunda dimensão é o comprimento.
Interpretamo-la neste momento como consciência do longo itinerário que se abre
diante da vida cristã; itinerário ou caminho por ela percorrido e por ela
indicado como caminho a ser percorrido, com etapas progressivas e sucessivas,
como uma história de salvação: vocação, escolha, pecado, conversão, encontro com
Cristo, vida em Cristo, aliança esponsal, tensão escatológica, pregustação da
glória... E nisto Teresa é testemunha do grande tema do itinerário espiritual,
com o seu início ascético e a sua culminação mística. Um dinamismo de caminho,
de cumprimento, de crescimento progressivo podemos encontrá-lo nas três grandes
obras teresianas: Vida, Caminho, Moradas. As Fundações são a documentação do
caminhar apostólico e eclesial do serviço concreto a Cristo.
c) Na dimensão da altura, podemos
colocar todas as realidades místicas, que como desde a altura de Deus e na
altura de Deus são contempladas e vividas por Teresa. O mistério de Deus e o
mistério do homem são, como já assinalamos, os objetos da contemplação e da experiência
teresiana: Deus Trindade, Cristo, Espírito Santo, Maria, comunhão dos santos; a
presença de Deus nas criaturas, a inabilitação trinitária, os mistérios de
Cristo, a presença do Senhor na Eucaristia e a eficácia dos sacramentos, a
verdade da graça e da justificação, a verdade e a força da Palavra de Deus, o
senso e a realidade do pecado. Tudo é doado com simplicidade, e não existe uma
única experiência sobrenatural da qual Teresa não procure apresentar o
fundamento bíblico e teológico, unindo a sim experiência e doutrina. Podemos aplicar
a Teresa a expressão de Paulo VI, referida, segundo Jean Guitton, aos místicos
como “cosmonautas do espírito”, pessoas atraídas à esfera de Deus que do alto
contemplam por graça o mistério de Deus e os mistérios da humanidade. É esta a
genuína experiência mística.
d) Por último notamos a dimensão da
profundidade. O mistério de Deus realiza-se na pessoa humana na dupla verdade
da revelação na fé e na comunicação da graça. Deus de fato é verdade e vida.
Através dos escritos teresianos podemos colher como Deus atua em profundidade
na pessoa humana. Da periferia dos sentidos até a profundíssima morada do Rei, no
Castelo interior das muitas moradas, temos uma imagem viva da pessoa humana que
pouco a pouco se enche de Deus, que se comunica e penetra, purificando,
iluminando e transformando a pessoa concreta. Não se trata de psicologismo, mas
de realismo de participação de toda a humanidade do crente na vida de Deus, até
às profundezas da inabilitação trinitária e a total purificação e união
mística. Isso comporta reações psicológicas, um refazimento da pessoa, uma
sanação e libertação das próprias capacidades, uma unificação interior sempre
mais viva.
Teresa
de Jesus é testemunha da experiência cristã em todos os seus componentes. No
seu testemunho entrelaçam-se a experiência sobrenatural e a percepção
psicológica; são atendíveis as suas afirmações densas de ardorosa sinceridade
humana e de forte vibração mística. Nela encontramos uma síntese adequada da
mística objetiva dos mistérios revelados e comunicados e da mística subjetiva
da concreta percepção desses mistérios. Nisso consiste sem dúvida, a
originalidade dos escritos teresianos e a sua perene mensagem na Igreja.
Bibliografia
1. Para o estudo das fontes literárias de
Santa Teresa, além dos estudos já citados conferir os dois clássicos:
G. ETCHEGOYEN, l’amour divin. Essai sur les sources de S Thérèse, Paris 1923;
R. Hoornaert, Sainte Thérèse ecrivain: son milieu, ses facultès, son
oeuvre, Paris 1922;
T. ALVAREZ, Santa Teresa e i movimenti
spirituali del sua tempo, em AA.AA., Santa Teresa maestra di orazione,
Teresianum,Roma 1963, pág.s 7-54.
2. Novas pistas sobre leituras teresianas:
Introdução de T. ALVAREZ à edição fac-símil
do Camino de Perfección, Roma 1965.
Sobre a importância da experiência confere.
M. HERRAIZ, Experiencia y teologia. Teresa
de Jesús vida e palabra, em “Teologia Espiritual”
22(1978) 7-36
Id., Teresa de Jesús Maestra de
experiencia, em “El Monte Carmelo” 88(1980) 269-304
D. De Pablo, Santa Teresa y el
protestantismo español, em “Revista de Espiritualidad” 40(1981)253-275
Id., Las lecturas de Santa Teresa, Madrid
2009; M. ANDRÉS MARTIN, Erasmismo y tradición en lãs Cuentas de Conciencia, em
“Revista de Espiritualidade” 40(1981)253-275.
Alguns pareceres sobre o estilo literário
em:
Obras de Santa Teresa, Madrid, Bac, 1951,
7-18.
V. GARCIA DE LA CONCHA, El arte literário
de Santa Teresa, Barcelona, Ed. Ariel. 1978; Id., Santa Teresa, em Al aire de
su vuelo, Barcelona, Galaxia Gutember, 2004, pág.s 17-106
F. MARQUEZ VILLANUEVA, La vocación
literaria de Santa Teresa, em “Nueva Revista de Filología Hispánica”
32(1983)355-379
G. VEGA, La dimensión literaria de Santa
Teresa, em “Revista de espiritualidad” 41(1982)29-63
J.A.Marcos, La prosa teresiansa. Lengua y
literatura, em Introducción a la lectura..., pág.s 283-329.
Para alguns aspectos relativos à revisão
dos escritos cfr.:
A.MAS, Acerca de los escritos autógrafos
teresianos: Vida, Castillo interior, Relaciones, Ib pág.s 81-134
G. Vega Garcia Lluengos, Santa Teresa de
Jesus ante la crítica literária del siglo XX, Ib., pág.s 135-142
J.A. MARCOS, Recurrencias y concatenadores:
la cohesión en el discurso teresiano, Ib., pág.s 153-170
P. CEREZO GALÁN, La experencia de
subjetividad en Teresa de Jesus, Ib., pág.s 171-240.
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