JOÃO BATISTA
Joaquim Manuel Garrido
Mendes,, scj
JOÃO BATISTA: O PROFETA QUE CONVIDA À CONVERSÃO
1.1 João, o profeta
Um dia, depois
de ter sido interpelado pelos discípulos de João acerca da sua missão e do seu
papel na história da salvação (cf. Mt 11,2-6), Jesus perguntou às multidões que o rodeavam: “Que fostes ver ao deserto? Uma cana agitada pelo vento? Então que
fostes ver? Um homem vestido de roupas delicadas? Mas aqueles que usam roupas
delicadas encontram-se nos palácios dos reis. Que fostes, então, fazer? Ver um
profeta? Sim, Eu vo-lo digo, e mais do que um profeta” (Mt 11,7-9).
Não há dúvida:
na apreciação de Jesus, João Batista é, antes de mais, um profeta. A primeira
interpelação que esta figura nos faz resulta, portanto, do seu estatuto de
profeta.
1.1.1 Significado de “profeta”
O que é um
“profeta”? É um ser estranho e inquietante, de semblante afetado ou arisco, de
ar alienado, com os olhos modestamente cravados no chão, ou perdidos num
horizonte vago e indefinido, a tentar perscrutar e adivinhar o futuro,
desligado do duro presente em que vive o homem real?
No nosso
tempo, facilmente se concebe o “profeta” como uma mistura de adivinho, vidente
ou visionário, que fala do futuro, que anuncia castigos assustadores, que
desanca os seus contemporâneos com palavras ameaçadoras.
Uma imagem
corrente da nossa cultura racionalista apresenta o “profeta” como um ser
iluminado, desencarnado, estranho ao mundo, que se apresenta como mensageiro
privilegiado de um Deus exigente, incompreensível, amargurado porque ninguém
lhe liga, e que corre atrás dos homens para assustá-los com ameaças.
Talvez por
isso, o mundo moderno livrou-se dos “profetas”, baniu-os, tirou-lhes o espaço,
renegou-os, ignorou-lhes o testemunho, relegou-os para o quadro de um passado
distante e de uma religião primitiva – autênticas figuras “de museu”. E
“combinou-se” que os “profetas” nada têm a ver com o homem de hoje e com um
mundo esclarecido, racional, científico, tolerante, democrático…
Na realidade,
o “profeta” não é uma espécie extinta há muitos anos, como os dinossauros; não
é a testemunha de um Deus intolerante, ciumento, que não compreende os homens,
nem aceita a sua liberdade e a sua busca de felicidade.
O profetismo é
uma realidade através da qual o Deus de ontem, de hoje e de sempre continua a
vir ao encontro dos homens para lhes oferecer a vida e a salvação; o profetismo
é uma realidade através da qual o Deus Criador e Libertador continua a intervir
no mundo a fim de levar à plenitude a sua obra criadora.
O que é,
verdadeiramente, um “profeta”? O que é que define as figuras proféticas?
No Antigo
Testamento, a palavra que mais vezes aparece para definir essas figuras a quem
Deus confia uma missão profética no mundo, é a palavra “nabi”. A palavra
resulta do verbo “naba” - que pode significar, ao mesmo tempo, “chamar” e
“anunciar”. Tomando uma forma passiva, significa “aquele que é chamado pela
divindade” (aí, realça-se o aspecto da vocação); no entanto, também pode ser
entendido em sentido ativo; nesse caso, significa “aquele que anuncia e
proclama” (aí, realça-se o aspecto da missão).
O sentido da
palavra coloca-nos, em cheio, no meio daquilo que define a figura do “profeta”:
alguém que é chamado por Deus, com a missão de proclamar e anunciar algo aos
homens.
Estas pessoas a quem Deus fala e
a quem envia, não são seres estranhos, sobre-humanos, “à parte”, muito
diferentes dos outros homens. São pessoas normais, com a sua vida e a sua
história, mergulhados num determinado ambiente cultural e religioso – como nós.
São pessoas marcadas pelas descobertas, conquistas, esperanças, mas também,
contradições e fragilidades dos homens do seu tempo.
No entanto,
apesar desta “normalidade”, há duas características que o “profeta” tem,
necessariamente, de possuir: deve ser uma pessoa de uma fé profunda, que vive
numa comunhão muito estreita com Deus; e deve ser uma pessoa muito atenta ao
que se passa à sua volta (que está informada, que lê o jornal, que conhece os
dramas do mundo e dos homens). São estas duas dimensões (uma relação muito estreita
com Deus e uma grande atenção e sensibilidade aos problemas e inquietações dos
homens) que definem o quadro existencial do profetismo.
a) A relação com Deus
O profeta é,
antes de mais, um “homem de Deus”. O que é que isso significa, em concreto?
Significa, em
primeiro lugar, que Deus está sempre na origem de toda a experiência profética.
O profeta não
se torna profeta por geração espontânea, ou por herança familiar, ou por uma
opção pessoal deliberada (para se realizar profissionalmente, para colher benefícios
econômicos, por ânsia de protagonismo) ou porque alguém proeminente na
sociedade o elegeu para essa missão; mas, na origem da vocação profética está
sempre Deus que, de forma gratuita (e nem sempre compreensível à luz dos
critérios humanos), escolheu esse homem ou essa mulher.
Trata-se de um
elemento fundamental, verdadeiramente constitutivo do profetismo. É por isso
que em qualquer relato de vocação profética transparece a consciência de que
foi Deus quem escolheu o profeta, quem o chamou, quem o preparou para a missão
e quem o enviou ao mundo.
Amós,
confrontado pelo sacerdote Amasias no santuário de Betel (Amasias, incomodado
pelas denúncias de Amós, diz ao profeta: “sai daqui, vidente, foge para a terra
de Judá e come lá o teu pão, profetizando; mas não continues a profetizar em
Betel, porque aqui é o santuário do rei e a corte real” – Am 7,12-13),
responde: “eu não sou profeta, nem filho de profeta. Sou pastor e cultivo
sicômoros. O Senhor pegou em mim quando eu andava atrás do meu rebanho e disse-me:
‘vai e profetiza ao meu Povo, Israel’” (Am 7,14-15). Noutra ocasião, Amós
sintetiza desta forma esse imperativo profético que se apossou do seu coração e
da sua vida: “o leão ruge; quem não temerá? O Senhor Jahwéh fala; quem não
profetizará?” (Am 3,8). Não é que Amós tenha escolhido, por sua iniciativa, a
vocação profética; mas foi Deus que veio ao seu encontro e que se lhe impôs.
Diante desse Deus que o escolheu e que o enviou em missão, o profeta não pôde
recusar nem fugir.
Jeremias, por
sua vez, assume que Deus o escolheu ainda antes de nascer, o consagrou, o
chamou e o enviou ao mundo com uma missão (cf. Jr 1,4-10). Numa linguagem muito
própria, Jeremias compara-se a uma jovem seduzida, de quem o sedutor (Deus)
triunfou: “vós me seduzistes, Senhor, e eu me deixei seduzir; dominastes-me e
obtivestes o triunfo” (Jer 20,7); e, marcando bem as suas resistências
pessoais, vencidas pela insistência de Deus, acrescenta: “a mim mesmo dizia:
‘não pensarei mais nele, não falarei mais em seu nome. Mas dentro de mim ardia
um fogo devorador, que não podia conter nem suportar” (Jr 20,9).
Jonas, quando tomou consciência
de que Deus o chamava para ir a Nínive pregar a conversão, até procurou fugir,
pois a missão colidia com os seus esquemas pessoais, com o seu comodismo e
mesmo com as suas convicções (cf. Jn 1); no entanto, Deus encontrou forma de conduzi-lo,
mesmo contra vontade, ao encontro dessa cidade onde o profeta devia cumprir a
missão que lhe tinha sido confiada (cf. Jn 2).
O “profeta”
é-o, portanto, por iniciativa de Deus. É Deus que escolhe o “profeta”, que o
desafia, que o seduz, que se apossa do coração do “profeta” como se fosse um
fogo devorador, e que o envia em missão; é também Deus que acompanha a
caminhada do “profeta”, que o protege e que lhe dá a força de testemunhar. Na
vocação profética, é Deus que é determinante e não a vontade ou o gosto pessoal
do homem ou da mulher.
Dizer que o
“profeta” é um “homem de Deus” significa, em segundo lugar, que o profeta tem
de viver uma relação muito próxima, muito íntima com Deus, pois só quem vive em
comunhão, em diálogo contínuo com Deus, é capaz de escutar as suas propostas e
de acolher os seus projetos. O profeta tem de ser uma pessoa que descobriu
Deus, que se apaixonou por Deus, que interiorizou essa relação, que aceitou
essa proximidade e que fez da sua vida um diálogo com Deus.
Enamorado de
Deus, o “profeta” vive em comunhão profunda, permanente, com Deus. Esta
“comunhão de vida” com Deus, vai fazendo, progressivamente, que o “profeta” se
aperceba dos planos de Deus para o mundo e para os homens. Ele sabe o que Deus
quer e sente-se inquieto quando os homens conduzem o mundo de uma forma
diferente. A relação com Deus acende no coração do profeta esse “fogo
devorador” de que falava Jeremias, e o “profeta” sente-se impelido a dar
testemunho diante dos homens, a ser Palavra viva de Deus no mundo.
b) A sensibilidade aos apelos do mundo e dos homens
Por outro
lado, o “profeta” não é apenas alguém que olha para o céu, mas é (tem de ser)
alguém com os pés bem assentes na terra, profundamente atento ao mundo que o
rodeia. É alguém que procura conhecer as questões, que está atento à forma como
o mundo se constrói, que se deixa interpelar por tudo o que se passa à sua
volta e que tem uma atitude consciente e crítica diante do mundo.
É precisamente
essa a atitude que encontramos nos profetas de Israel. Diante dos
acontecimentos que marcam a história do seu tempo, o “profeta” intervém para
criticar, para aplaudir, para corrigir, para animar. Ele intervém a propósito e
a despropósito, como se fosse a consciência crítica dos homens, sempre que os projetos
de Deus são violados. O seu olhar crítico nem se limita à análise dos problemas
– grandes ou pequenos – que marcam a história restrita da comunidade nacional israelita…
Amós, por
exemplo, apresenta um conjunto de oráculos contra as nações (Síria, Filisteia,
Tiro, Edom, Amon, Moab – cf. Am 1,3-2,3) que condenam alguns dos “crimes contra
a humanidade” cometidos por vários povos da zona; numa época em que não
existiam jornais, nem televisão, nem telefone, nem internet, o profeta
manifesta um conhecimento assombroso dos fatos da política internacional e uma
grande atenção à história do mundo que o rodeava.
O profeta não
pode ser alguém que vive apenas de olhos postos no céu, numa angélica
passividade; nem pode ser alguém que “não está para se chatear” com as questões
que preocupam os seus irmãos; nem pode ser alguém que vive fechado no seu
pequeno mundo, ocupado com os seus hobbys, com os seus programas de computador,
com os seus livros, com as suas especulações intelectuais, ou apenas ocupado a
conquistar o seu lugar ao sol na empresa; nem pode ser alguém para quem os
sofrimentos e angústias dos homens não contam nada…
O profeta é
alguém que se preocupa com os caminhos que os homens seguem, que não se deixa
dominar pelo comodismo ou pela preguiça, que se inquieta com os sofrimentos,
com as injustiças, com a violência, com a guerra, com a fome, com o pecado que
vê à sua volta, que analisa as questões do mundo com os olhos da fé e que
sente, em nome de Deus, a necessidade de intervir.
Conhecendo os projetos
de Deus e vendo a forma como os homens edificam o mundo, o “profeta” sente que
não pode ficar de braços cruzados. Em nome de Deus, ele vai denunciar as
injustiças, as opressões, os egoísmos que enfeiam esse mundo que Deus quis
diferente.
c) A consciência do chamamento
Como é que o
“profeta” se apercebe de que Deus o chamou e o enviou ao mundo com uma missão?
Os relatos de
vocação dos profetas do Antigo Testamento sugerem a existência de um momento na
vida do “profeta” em que o apelo de Deus se tornou tão nítido e tão forte que
toda a experiência posterior do “profeta” foi marcada por esse instante. Isto
não deve parecer-nos estranho: na experiência de qualquer “chamado” por Deus,
há instantes desses. No entanto, nem sempre a consciência do “chamamento” é tão
nítida: o nosso Deus é um Deus discreto, que respeita a liberdade do homem e,
mais do que impor, sugere de forma simples e discreta.
O que é que
desperta a consciência de um “profeta”? Um sonho? Uma palavra? Uma leitura? Um
apelo? Uma necessidade sentida nas contradições da vida? Uma notícia lida no
jornal? Um convite do pároco?
Deus “chama”
de muitas formas e cada pessoa pode descrever de forma única e pessoal a forma
como se sentiu interpelada por Deus. Às vezes descobre-se o apelo de Deus no
rosto de um pobre, de um escravizado, ou nos olhos sofredores de uma criança
sem pão e sem esperança; outras vezes, nas páginas dos jornais; outras, nas
necessidades da Igreja e da sociedade; outras, nos acontecimentos turbulentos
do presente; outras, mais simplesmente, nas palavras de um amigo ou de um
mestre…
Cada “profeta”
terá um momento que considera fundamental na sua experiência vocacional – isto
é, na sua consciência de que Deus o chama e de que o envia ao mundo e aos
homens com uma missão.
É preciso
também ter em conta que a experiência profética não é algo estático: o
“profeta” é aquele que, dia a dia, se vai apercebendo do que Deus quer,
deixa-se questionar pelos sinais do tempo e vai descobrindo, pouco a pouco, o projeto
de Deus para os homens e para o mundo. É uma missão ininterrupta, cujas diretrizes
lhe vão sendo reveladas dia a dia, momento a momento.
Por isso, o
“profeta” é alguém muito atento aos acontecimentos da história e da vida: é aí
– nos “sinais dos tempos” – que Deus lhe fala, cada dia, lhe diz o que quer e
lhe sugere uma ação. É preciso, no entanto, saber olhar para os acontecimentos
com os olhos da fé: só dessa forma é possível encontrar sinais de Deus nesses fatos
mais ou menos banais que constituem a história da vida de cada homem ou de cada
mulher.
1.1.2 O “profeta” João Batista
É possível
situar a figura de João no enquadramento do que acabamos de dizer? Sem dúvida.
João Baptista é uma autêntica figura profética, que Deus escolheu, que Deus
chamou e que Deus enviou aos homens com uma missão. Essa missão passa,
concretamente, pelo anúncio da vinda iminente do Messias e por preparar os
homens para esse acontecimento fundamental.
a) Deus na
origem e no centro da vocação de João
A história de
vida de João Batista sugere claramente a centralidade que Deus assume – desde o
primeiro instante – na vida de João.
O Evangelho da
Infância de Lucas (cf. Lc 1,1-4,12) começa, praticamente, com o anúncio do
nascimento de João (cf. Lc 1,5-25). Todo o quadro está composto de forma a
sugerir que Deus escolheu João e o consagrou ainda antes do seu nascimento e
que toda a vida de João será consagrada a Deus e vivida na órbita de Deus.
O anúncio do
nascimento de João, feito a Zacarias (o pai de João) no Templo de Jerusalém (o
lugar de residência de Deus) por um anjo (um enviado de Deus), é o primeiro
sinal de que Deus vai desempenhar um papel primordial na vida dessa criança que
vai nascer. Diz Lucas, no seu relato, que Zacarias ficou perturbado e encheu-se
de temor – que é a reação humana normal, no Antigo Testamento, diante das
manifestações da divindade.
Todo este
quadro configura a presença de Deus, o interesse de Deus nesse menino: é na
casa de Deus, através de um mensageiro que fala em nome de Deus, que o mundo
fica a saber do nascimento de João… Deus está na origem do nascimento desse
menino; e toda a vida de João é para Deus e compreende-se à luz de Deus.
Depois de anunciar o nascimento,
o anjo deixa entender que João será sempre um “consagrado a Deus”: “Ele será
grande diante do Senhor; não beberá vinho, nem bebida fermentada e será cheio
do Espírito Santo desde o seio da sua mãe”.
Esta
“fotografia” de João leva-nos à prática dos nazireus (cf. Nm 6,3-4) – homens de
Deus, consagrados a Deus, separados do mundo profano para o serviço de Deus.
Como sinais dessa consagração, os nazireus abstinham-se de vinho e de bebidas
alcoólicas e deixavam crescer o cabelo (o cabelo comprido era símbolo de
consagração – cf. Nm 6,9.18). O famoso Sansão, herói de Israel e instrumento de
Deus para a libertação do seu Povo, era um nazireu (um consagrado a Deus, um
homem a quem Deus escolheu e separou para concretizar no mundo a sua ação
libertadora).
Também a
definição (pelo anjo) da missão de João dará conta da ligação íntima de João
com Deus e com os projetos de Deus. Nas palavras do anjo, João terá como missão
reconduzir “muitos dos filhos de Israel ao Senhor seu Deus. Irá à frente,
diante do Senhor, com o espírito e o poder de Elias, para fazer voltar os
corações dos pais a seus filhos e os rebeldes à sabedoria dos justos, a fim de
proporcionar ao Senhor um povo com boas disposições” (Lc 1,16-17). João
“trabalha” para Deus. A sua missão no mundo é conduzir os homens em direção a
Deus.
A centralidade
de Deus na vida de João desde o primeiro instante do seu nascimento é sugerida,
igualmente, na questão da escolha do nome para o menino. No oitavo dia após o
seu nascimento, o filho de Zacarias e de Isabel foi circuncidado (conforme os
preceitos de Gn 17,12 e Lv 12,3). Pôs-se, então, a questão do nome que devia
ser dado ao menino (no Antigo Testamento, o nome era dado logo após o
nascimento; mas aqui parece seguir-se o costume do helenismo e do judaísmo recente).
De acordo com Lucas, todos esperavam que a criança tomasse o nome do pai –
Zacarias; mas, Isabel insistiu que o menino devia chamar-se João; e Zacarias
confirmou essa escolha (cf. Lc 1,57-66) cumprindo, aliás, a ordem do anjo que
anunciou o seu nascimento (cf. Lc 1,13). Ora, João significa, literalmente, “o
Senhor faz graça”: João é uma “graça”, um “dom” de Deus ao seu povo, o primeiro
sinal de que se aproximam os tempos novos em que Deus vai oferecer ao seu povo
a salvação definitiva.
Depois, nada
mais se diz sobre João, até que, cerca de trinta nos depois, ele apareceu a
pregar nas margens do rio Jordão. Durante esse tempo de silêncio, João terá
continuado a ser um “homem de Deus”, de comunhão com Deus, que viveu uma vida
de intimidade com Deus, que foi descobrindo e confirmando, dia a dia, num
diálogo íntimo, que Deus o chamava e que tinha uma proposta de missão para ele?
Certamente. É impossível pensar
num profeta que não tenha feito uma caminhada desse tipo.
Na verdade, a
mensagem que João (por volta do ano 27) aparece a propor nas margens do rio
Jordão, é um convite aos homens no sentido de voltarem para Deus e para
prepararem o coração para acolher o projeto de salvação de Deus. Não se trata,
portanto, de uma missão própria, da defesa de ideias ou de interesses próprios
(como aconteceria, inevitavelmente se João tivesse vivido desligado de Deus),
mas de uma proposta que veio de Deus, ao encontro dos homens, através de João.
Ora, João só podia ser porta-voz de uma proposta desse tipo, vivendo na órbita
de Deus.
Todo o quadro
revela que a vida de João se entende em referência a Deus, que Deus está
profundamente envolvido com João e João com Deus. Deus é o centro de referência
à volta do qual toda a vida de João se constrói… E, por isso, João é, desde o princípio
da sua vida, até à sua morte, um “sinal” de Deus no mundo, uma testemunha de
Deus, dos seus valores, dos seus projetos.
b) A missão
No contexto do
nascimento de João, Lucas põe o sacerdote Zacarias a proclamar um belíssimo
cântico (“benedictus”), em que a missão de João é definida da seguinte forma:
“tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo, porque irás adiante do Senhor
a preparar os seus caminhos, para dar a conhecer ao seu Povo a sua salvação
pela remissão dos pecados, graças ao coração misericordioso do nosso Deus, que
das alturas nos visita como sol nascente, para iluminar aqueles que jazem nas
trevas e na sombra da morte, e dirigir os nossos passos no caminho da paz” (Lc
1,76-79).
João é, então,
um “profeta” que prepara os caminhos por onde Deus vai chegar ao coração dos
homens e do mundo; através da sua ação profética, Deus vai oferecer, a todos os
que estão prisioneiros das trevas e da morte, uma proposta de salvação e de
vida nova.
Como é que o
“profeta” João desempenha essa missão?
Como todos os
profetas, João é uma voz de Deus no mundo dos homens. Através dele, Deus vem ao
encontro dos homens, fá-los escutar as suas palavras, dialoga com eles,
corrige, admoesta, indica caminhos.
O anúncio que
Deus faz através de João Baptista concretiza-se nas palavras e nos gestos do
“profeta”.
Com palavras,
o “profeta” João Baptista propõe que os homens se preparem para acolher o
Messias corrigindo aquilo que está mal e que os impede de acolher a proposta
libertadora de Deus. Ele é definido por Lucas como “uma voz” que “clama no
deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, e endireitai as suas veredas’” (Lc
3,4).
E essa “voz”
não se limita a dar indicações de caráter genérico, mas apresenta exemplos
práticos, tirados da vida de todos os dias, para mostrar como é que se pode
preparar os corações para o Senhor que vem (cf. Lc 3,7-14). O profeta João é,
na verdade, a “voz” de Deus que interpela os homens, que os desafia, que os
dispõe para acolher essa proposta libertadora e salvadora que, em Jesus, Deus vai
apresentar ao mundo.
Essa “voz” não
se apresenta com a preocupação de ser uma “voz” simpática, conciliadora, capaz
de atrair as multidões pela elegância do discurso, pelo brilho das palavras ou
pelo recurso a sofisticadas técnicas de “marketing”; mas essa “voz” preocupa-se
em ser, apenas, o veículo dos “recados” de Deus para os homens. É dura,
violenta, questionante, pois a sua missão é incomodar, provocar, levar os
homens a porem em causa uma forma de viver marcada pelo egoísmo, pelo orgulho,
pela injustiça.
Com os seus
gestos, com a sua figura, com a sua maneira de se apresentar e de estar, o
“profeta” João Baptista denuncia uma vida marcada pelo egoísmo e propõe um
regresso ao essencial, quer dizer, um regresso a uma vida em que Deus ocupe o
primeiro lugar na vida dos homens. O seu estilo de vida é uma denúncia dos
valores que afastam os homens de Deus.
Não é por
acaso, ou por uma bizarria qualquer, ou por um desejo de provocação, que João
aparece vestido com peles de animais, alimentando-se de gafanhotos e de mel
silvestre (cf. Mc 1,6; Mt 3,4). Ele não precisava, certamente, de se vestir e
de se apresentar dessa forma “radical”; mas, conscientemente, pretende propor
um estilo de vida em que os valores materiais não ocupem a primazia.
A sua atitude
denuncia esses instalados, “que se vestem de roupas delicadas e gostam de morar
nos palácios dos reis” (cf. Mt 11,10). Com o seu “jeito”, ele denuncia uma vida
centrada no “ter”, nos bens materiais, e propõe um regresso ao essencial…
A sua figura
sugere – de uma forma mais questionante do que as próprias palavras - que o
fato de bom recorte, a conta bancária, a casa com piscina, o carro de último
modelo, o whisky de malte com quinze anos, a frequência das festas sociais onde
se reúne o jet-set, os banquetes onde se comem petiscos com nomes franceses –
não são (não podem ser) os valores essenciais à volta dos quais gira a vida do
homem.
João é um
violento, que grita – com palavras e com gestos – a sua revolta contra uma
sociedade que necessita de uma urgente conversão. Trata-se de uma sociedade
fortemente marcada pelo selo do pecado, do egoísmo, da injustiça, da violência,
da exploração; e o profeta João sabe que, nesse contexto, Deus não tem lugar. É
necessário, portanto, questionar esses valores falsos, sobre os quais os homens
constroem a existência. João vai fazê-lo com a convicção de quem crê
verdadeiramente naquilo que diz, e com a paixão de quem ama aquilo em que crê.
É como
“profeta” que corrige e denuncia, que João se dirige às multidões e diz: “quem
tem duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma e quem tem mantimentos, faça
o mesmo”; é como “profeta” que corrige e denuncia que João se dirige aos
publicanos (os cobradores de impostos) e lhes diz: “não exijais mais do que
está estabelecido”; é como “profeta” que corrige e denuncia, que João diz aos
soldados: “não exerçais violência sobre ninguém, não denuncieis injustamente e
contentai-vos com o vosso soldo” (cf. Lc 3,10-14); é como “profeta” que corrige
e denuncia, que João se dirige a Herodes e lhe diz: “não te é lícito viver com
a mulher do teu irmão” (cf. Mt 14,4)…
João não é
inconsciente e sabe que seria mais prudente e menos perigoso adoçar as suas
palavras, aceitar a realidade dos fatos, desculpando muitas injustiças; mas
está consciente de se encontrar diante de uma sociedade injusta, impregnada de
pecado, de exploração, de violência, de hipocrisia, e sabe que, como “profeta”,
não pode pactuar com essas realidades, mesmo que assim ponha em risco a sua
vida. O “profeta” não é o homem das covardes concessões, mas o homem da radical
fidelidade à missão a que Deus o chamou – a missão de construir um mundo novo,
edificado de acordo com o projeto de Deus.
1.1.3 A interpelação de João
A vocação
profética dirá, apenas, respeito a alguns iluminados? Ou será algo que Deus
quererá de todos os homens e mulheres?
Pelo fato de
sermos cristãos – seguidores de Cristo – fomos escolhidos por Deus para ser
“profetas” (isto é, “chamados” por Deus e enviados a apresentar ao mundo as
propostas de Deus). No dia do nosso batismo, fomos ungidos com o óleo do
“crisma”, que nos constituiu “profetas” à imagem de Jesus…
A vocação
profética é, portanto, algo que faz parte da nossa vida e que não pode ser
eliminado do “disco rígido” do nosso compromisso cristão.
Não vale a
pena estar com meias palavras: quem se recusa a ser profeta, está a recusar ser
um “sinal” vivo de Deus, uma testemunha de Jesus e dos seus valores; e está
fora da dinâmica do “Reino”.
Para um
cristão, a questão não pode ser: apetece-me ou não, tenho ou não disponibilidade,
tenho ou não jeito para ser profeta? Esse problema de base já foi resolvido no
dia do nosso Batismo...
A questão que
podemos pôr (e que talvez devamos pôr) é antes esta: como é que eu posso viver,
com fidelidade, a minha vocação profética?
É aqui que a
figura profética de João – o profeta que veio preparar a vinda do Senhor – nos
pode ajudar.
a) A nossa ligação a Deus
Em primeiro
lugar, interpela-nos esta ligação “umbilical” de João a Deus, desde o primeiro
instante da sua existência.
De entre as pretensões
da modernidade, está a de fazer aparecer o homem plena e totalmente livre; e,
para os homens dos nossos dias, falar de um homem livre, é falar de um homem
que se basta a si próprio, que não depende de Deus e que não precisa de Deus. O
homem do século XXI não é o homem que perde tempo a negar a existência de Deus;
mas é o homem que não precisa de Deus para nada e vive preocupado com outras
coisas mais importantes e decisivas.
O que
acontece, então? Acontece que o homem não encontra ninguém a quem confiar a sua
fragilidade e em quem confiar; fica, cada dia, mais só e perdido, sem
referências, sem segurança, sem “salvação”. Em lugar de ser livre, o homem
torna-se escravo, coloca a sua segurança e a sua esperança em certos valores e
propostas que substituem Deus, mas com muita desvantagem.
Em João,
encontramos o testemunho de um homem que está consagrado a Deus desde o
primeiro instante da sua existência, que vive em contínuo diálogo com Deus, que
vive apenas para Deus e que oferece a Deus cada pedaço da sua existência. Ele
não tem medo de perder a liberdade, ou de viver uma vida sem sentido: Deus está
presente na sua vida desde o primeiro instante; e ele sabe que só de mãos dadas
com Deus, a sua vida fará pleno sentido.
É esta
centralidade que Deus assume na vida de João que nos interpela e questiona.
Correspondermos
à nossa missão profética significa, em primeiro lugar, colocarmos Deus no
centro da nossa vida. Deus não é um concorrente, que nos mantém prisioneiros;
mas é a nossa esperança e a nossa segurança, aquele que dá sentido à nossa
existência.
O profeta João
desafia-nos a ter consciência de que foi Deus quem nos chamou à existência, nos
elegeu, nos consagrou para o seu serviço e nos confiou uma missão no mundo;
desafia-nos a ver Deus como a origem e o centro da nossa vocação e da nossa
missão; desafia-nos a fazer de Deus a nossa prioridade fundamental.
Isso significa
mantermos, em todos os instantes, uma comunhão muito estreita e muito íntima
com Deus, desenvolvida num diálogo muito próximo com Deus.
É impensável,
para um “profeta”, viver à margem de Deus, ou manter uma vida de alheamento em
relação a Deus. O profeta tem de ser alguém que reza, que escuta e reflete a
Palavra de Deus, que está atento a Deus e aos seus “sinais”, que procura
discernir as propostas de Deus e concretizá-las na vida. E tem de ser também
alguém com o coração disponível para aceitar os desafios de Deus e para ser
porta-voz desses desafios no meio dos homens.
• Já descobri
que Deus me chama e me destina a missão de anunciar e proclamar um mundo novo,
com palavras, com comportamentos, com atitudes?
• Como é que
me situo face a essa exigência, que resulta da minha adesão a Cristo?
• Já encontrei
a sua interpelação nesses fatos banais da vida, nesses “sinais” que, de forma
mais ou menos discreta, Deus coloca na minha vida para me mostrar o que quer de
mim?
• Tenho tempo
para Deus, de forma a viver em comunhão com Ele e a aperceber-me das suas
propostas e dos seus planos para mim e para o mundo?
• Ele é ou não
uma prioridade na minha vida?
• O que conta
mais: Deus ou certos “bens” que, na minha vida, ocupam o lugar de Deus?
b) O nosso compromisso com a missão
Em segundo
lugar, questiona-nos a forma como João assume a sua missão de testemunha e se
dirige aos homens… Sobretudo, questiona-nos a sua coragem, o seu empenho, a sua
coerência – que vai até ao dom da vida para defender a verdade e a justiça.
O profeta não
é um homem acomodado, que se enterra no seu cômodo sofá com o copo de whisky
numa mão e o jornal “A Bola” na outra, a assistir de cadeirão às misérias do
mundo; mas o profeta é o porta-voz de um Deus que quer um mundo melhor e luta ativamente
por ele.
Ser profeta
significa testemunhar, com desassombro e sem medo, a verdade, mesmo quando ela
incomoda os poderosos e os donos do mundo. É o que faz João ao dizer a Herodes
Antipas que ele não tem o direito de roubar a mulher do seu irmão…
O profeta não
pode calar-se diante dos poderosos, que fazem as suas próprias leis e zombam
dos direitos e da dignidade dos outros.
O profeta não
pode pactuar com as arbitrariedades, nem encolher com indiferença os ombros
diante das violações dos direitos humanos.
O profeta não
pode virar a cara para outro lado a fingir que não vê quando algum irmão é
maltratado e privado dos seus direitos.
O “profeta”
não pode fingir que tudo está bem quando, em nome de princípios políticos ou
interesses econômicos, as crianças são exploradas, obrigadas a deixar a escola
para trabalhar, espoliadas do seu direito à segurança, ao pão, à instrução, ao
futuro.
O “profeta”
não pode calar-se quando os idosos são obrigados a viver com pensões de
miséria, que mal dão para pagar os medicamentos, enquanto que a classe
dirigente borboleteia de festa em festa, à custa dos pobres.
O “profeta”
não pode fingir que está de acordo com aqueles que, em nome de Deus, alimentam
a espiral de violência e despejam toneladas de bombas sobre populações
inocentes.
O “profeta”
não pode pactuar com aqueles que alimentam o racismo, a intolerância, a
xenofobia, a divisão, o ódio.
O “profeta” não
pode ignorar quando os esquemas de concorrência e o bem-estar da economia
atiram com milhares de famílias para o desemprego e para a miséria.
O “profeta”
não pode concordar com aqueles que fingem defender os direitos do homem, a sua
liberdade e a sua dignidade, mas potenciam estruturas que geram morte, miséria,
sofrimento, escravidão – seja na sociedade, seja na Igreja, seja na empresa,
seja no próprio contexto da família.
• Tenho
conseguido “desinstalar-me”, sair do meu cantinho, para levar a cabo a missão
que Deus me confia?
• Sou capaz de
me esquecer de mim, dos meus interesses, das minhas prioridades, para enfrentar
o desafio de construir um mundo melhor?
• Quem manda:
o meu comodismo, o meu egoísmo, a minha ambição, os meus medos, ou as propostas
de Deus?
• Tenho
procurado estar atento àquilo que me rodeia e ser uma voz crítica,
questionante, preocupada em construir um mundo mais justo e mais fraterno?
• Tenho sido
um “profeta” que não pactua com a opressão, com a injustiça, com a exploração,
quer a que reside no meu coração, quer a que reside no mundo que me rodeia?
1.2 João e a “conversão”
Depois de
termos refletido sobre o testemunho profético de João e as interpelações que
esse testemunho nos traz, detenhamo-nos agora, um pouco, no convite que João
faz aos homens (aos do seu tempo e aos de todos os tempos), no sentido da
conversão.
De fato, o
essencial do anúncio do “profeta” João resume-se na palavra “conversão”.
“Convertei-vos”, diz ele, “porque está próximo o Reino dos Céus” (Mt 3,2; cf.
Mt 3,11; Mc 1,4).
a) Significado de “conversão”
Quando
falamos, neste contexto, em “conversão”, não estamos a falar de uma penitência
externa, feita de exercícios piedosos, ou de qualquer experiência intelectual
ou sentimental...
Estamos a falar de algo mais radical,
expresso no texto pela palavra grega “metanoia” (“conversão”, “mudança” – a
palavra usada neste contexto por Mateus e por Marcos): uma transformação da
vontade, uma mudança radical de consciência, uma nova atitude de base, uma
escala de valores onde o egoísmo, o orgulho, a vaidade não ocupam os primeiros
lugares.
Falar de
“conversão” é falar de uma mudança radical de pensamento, de uma viragem total
do homem, de uma postura vital inteiramente nova.
No contexto
bíblico, a palavra “metanoia” refere-se a um movimento radical, total, que leva
o homem a re-orientar a sua vida para Deus. O nosso grande drama é que, com
frequência, deixamos que outros valores (às vezes não tão “valorosos” como
isso) sejam a nossa prioridade; e Deus passa para um plano absolutamente
secundário na nossa vida…
A “conversão”
é, pois, um re-equacionar a vida, de modo a que Deus passe a estar no centro da
existência do homem. É uma inflexão do sentido da existência, de forma a que
nem o dinheiro, nem o poder, nem o sucesso, nem os amigos, nem a família tenham
primazia; é uma inversão das prioridades, de forma a que Deus e os seus valores
passem a ocupar o primeiro lugar. É por isso que João assume um estilo de vida
pobre e simples, denunciador dos valores materiais.
No Novo
Testamento – e sobretudo nos evangelhos sinópticos – o conceito de “conversão”
é entendido em referência a Cristo: converter-se é aderir à pessoa de Cristo,
crer nele segui-lo no caminho do amor e do dom da vida, acolher o seu projeto e
os seus valores, entrar no “Reino” que Ele anuncia. É aderir a Cristo e à nova
proposta de vida que Ele traz. Isso implica, naturalmente, despir-se do
egoísmo, do orgulho, da auto-suficiência, do comodismo, do viver virado para os
bens materiais; e implica construir a própria vida de acordo com outros
critérios e outros valores – os valores do Reino, os valores de Jesus.
É por isso que
João fala de um “novo batismo” que Jesus traz, o “batismo no Espírito” (cf. Mc
1,8; Mt 3,11): trata-se de uma nova vida que Jesus vai propor aos homens e que
se concretizará através desse Espírito de vida que Jesus quer transmitir a
todos. Aceitar o “batismo” que Jesus traz é aceitar essa vida nova que Jesus
propõe, que transforma o homem e o coloca numa nova atitude diante de Deus e
diante dos outros homens.
É esse o
centro da missão profética confiada a João: propor aos homens um novo jeito de
viver, onde Deus tenha a primazia.
Se o homem se
voltar para Deus e colocar Deus no centro da sua vida; se o homem acolher a
proposta de Deus trazida por Jesus Cristo; se o homem aceitar transformar a sua
vida, de forma a acolher o projeto de Deus (renunciando aos seus esquemas
egoístas, aos seus interesses materiais, ao seu bem-estar e comodismo, ao seu
orgulho e autossuficiência), Deus poderá nascer em cada coração e, através dos
crentes, tornar-se uma realidade viva no mundo. Haver ou não Natal, depende do
acolhimento desta proposta.
Como é que
João concretiza o seu apelo à “conversão”?
João Batista
propõe três atitudes concretas para quem quer fazer essa experiência de
conversão e de encontro com o Senhor que vem.
1.
Ao povo, em geral, João recomenda a
sensibilidade às necessidades de quem nada tem e a partilha dos bens (“quem tem
duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma, e quem tem mantimentos, faça o
mesmo” – Lc 3,11).
2.
Aos publicanos, pede que não explorem, que não
se deixem convencer por esquemas de enriquecimento ilícito, que não despojem os
mais pobres (“nada exijais além do que vos foi estabelecido” – Lc 3,13).
3.
Aos soldados, pede que não usem de violência,
que não abusem do seu poder contra fracos e indefesos (“não exerçais violência
sobre ninguém, não denuncieis injustamente e contentai-vos com o vosso soldo” –
Lc 3,14).
Repare-se como
João põe em relevo os crimes contra o irmão: tudo aquilo que atenta contra a
vida de um só homem é um crime contra Deus; quem o comete está a fechar o seu
coração e a sua vida à proposta libertadora que Jesus veio trazer…
Em suma,
“converter-se” é voltar-se para Deus, dar-lhe prioridade, torná-lo o centro da
nossa vida. Para o cristão, “converter-se” é voltar-se para Deus, aderindo à
proposta de salvação que Deus faz em Jesus e embarcar na dinâmica do “Reino”.
Isso implica aderir a uma lógica de partilha e de serviço, ser verdadeiro,
honesto e não explorar os outros, ser justo e lutar pela paz.
João é o
“profeta” cuja missão é preparar os corações dos homens para que Deus lá tenha
lugar. Propondo – com palavras e com gestos – uma nova atitude, João é aquele
que prepara o caminho (cf. Mt 3,3; Mc 1,3; Lc 3,4-5) para que o Senhor possa
chegar ao coração e à vida dos homens.
c) A interpelação que João nos faz
Em termos
pessoais, falar de conversão significa, em primeiro lugar, expulsar do nosso
coração esses esquemas egoístas e esses interesses pessoais que açambarcaram a
nossa atenção e que usurparam o lugar que Deus devia ocupar na nossa vida.
Significa identificar e banir da nossa vida esses valores que impedem a
irrupção do “Reino” no mundo e na vida de cada homem.
Quais são
esses interesses?
Seguindo o
itinerário de João, pensemos, em primeiro lugar, na escravatura dos bens
materiais…
Constatamos,
hoje, que o verdadeiro motor da história é o dinheiro: ele compra consciências,
compra poder, compra bem-estar, compra projeção social, compra reconhecimento e
até compra amor… Por ele, mata-se, calcam-se aos pés os valores mais
fundamentais, renuncia-se à própria dignidade, destrói-se a natureza,
envenena-se o ambiente (que interessa o buraco do ozônio, a poluição dos rios,
o desaparecimento da floresta amazônica, se isso fizer mais ricos os donos do
mundo?), escravizam-se os irmãos... O dinheiro tornou-se o verdadeiro centro de
poder no mundo; é a ele que tudo se subordina e submete.
No entanto,
quando a lógica do “ter” domina o coração de alguém, nasce a escravidão que
aliena, que causa injustiça, sofrimento e morte. O homem é envolvido numa
lógica de “ter sempre mais” que o torna obcecado com os bens… Quando o homem se
deixa apanhar por essa lógica, o dinheiro passa a ser o seu deus fundamental e
a verdadeira “medida” que define a realização e a felicidade do homem. Ter mais
dinheiro (mesmo quando já o temos em excesso) significa obter mais
reconhecimento, mais valor, mais posição.
Entra-se numa
viagem que nunca termina e que torna o coração do homem progressivamente surdo
a outros valores. Ele deixa de ter tempo para Deus, para a família e para si
próprio. Não acompanha o crescimento dos filhos, não tem tempo para os amigos,
não tem tempo para saborear as coisas simples da vida, não tem tempo para o
amor; e, algures durante essa cavalgada louca em direção à terra do “ter”, ele
deixa pelo caminho todas aquelas coisas pelas quais vale a pena viver e lutar.
Torna-se uma máquina de dinheiro, em cujos olhos brilham cifrões, não a
felicidade.
João convida a
não deixar que a escravatura do “ter” nos escravize, nos aliene, nos feche num
egoísmo frio e estéril. João convida-nos a descobrir “o outro lado”, o oposto
do açambarcamento egoísta dos bens. Ele garante-nos que a salvação do homem não
está no egoísmo, mas num coração aberto aos irmãos. Por isso, João avisa que a
“conversão” passa pela partilha…
Os bens que
temos à nossa disposição devem ser sempre vistos como um dom de Deus e que, por
isso mesmo, pertencem a todos: ninguém tem o direito de se apropriar deles em
seu benefício exclusivo.
A busca
desenfreada e obcecada dos bens materiais, a indiferença que nos leva a fechar
o coração aos gritos de quem vive abaixo do limiar da dignidade humana, o
egoísmo que nos impede de partilhar com quem nada tem, significam que no nosso
coração ainda não há lugar para acolher Jesus e a sua proposta. Dessa forma,
não podemos celebrar o Natal, a vinda de Jesus à nossa vida e ao nosso mundo.
As nossas
comunidades e nós próprios damos testemunho desta partilha que é sinal do Reino
proposto por Jesus?
Pensemos, em
segundo lugar, na proposta que João faz aos publicanos: “não exijais além do
que vos foi estabelecido”.
Os publicanos
são, neste contexto, o protótipo daqueles que conduzem a sua vida por caminhos
de desonestidade, de corrupção, de roubo, de exploração. Trata-se,
infelizmente, de um clube com muitos adeptos, muitas vezes encapotados, mas
sempre ativos e em busca de oportunidades de negócios.
Para a nossa
mentalidade, são absolutamente dignos de reprovação aqueles que assaltam um
banco de armas na mão ou que nos apontam uma seringa infectada para arranjar
uns escudos para “o vício”; mas não nos parece tão chocante se alguém usa
esquemas imorais (às vezes lícitos, do ponto de vista legal, mas imorais) para
enriquecer rapidamente: achamos que eles são apenas espertos e até admiramos a
sua habilidade…
No entanto,
podemos pactuar com os processos mais ou menos engenhosos de fuga aos impostos,
que prejudicam toda a comunidade?
Podemos
aceitar os esquemas de branqueamento de dinheiro sujo (às vezes, dinheiro que
vem do comércio da droga, ou do contrabando de armas), mesmo se esse dinheiro
traz benefícios à economia nacional?
Podemos
aceitar com indiferença as falcatruas cometidas com os dinheiros da nação – com
o dinheiro que pertence a todos e que devia servir para proporcionar melhores
condições de assistência médica, de educação, de segurança aos cidadãos?
Podemos achar
normal que se trafique com bens de primeira necessidade, ou que se ganhe
dinheiro com a venda de produtos que são um perigo para a saúde pública?
Podemos
aceitar que se paguem serviços políticos ou econômicos ao partido ou à família
com cargos públicos bem remunerados?
Devemos
encolher os ombros e achar que “é normal” que os grandes tubarões da finança
combinem negociatas que devoram os pequenos investimentos e as economias dos
pobres?
João Batista
acha que não e não fica indiferente nem calado diante de um quadro de
desonestidade, de especulação, de exploração. Ele sabe que numa sociedade onde
alguns, para salvaguardarem os seus interesses egoístas, prejudicam toda a
comunidade, não há lugar para Jesus nem para o “Reino”.
Pensemos, em
terceiro lugar, na questão da violência, da opressão, da injustiça. A pergunta
dos soldados (“e nós, que devemos fazer?”) dá a João, a oportunidade para
abordar esta questão.
No séc. I, o
Povo de Deus conhecia a dura experiência da opressão. Os mercenários romanos
comportavam-se verdadeiramente como senhores absolutos em terra conquistada.
Impunham-se pela força, aterrorizando as populações; mal pagos, exigiam com
frequência tributos para deixar as aldeias e as pessoas em paz. É o problema da
violência gratuita e injustificada por parte daqueles que detêm o poder das
armas, frente aos pobres e débeis.
Este problema
continua a ser de uma atualidade impressionante. Os militantes de qualquer
grupelho terrorista fazem explodir aviões cheios de inocentes, destroem prédios
onde vivem milhares de pessoas, colocam bombas que matam indiscriminadamente,
em nome da luta pela a justiça e pela liberdade; os governos instituídos
respondem na mesma moeda, lançam toneladas de bombas sobre “alvos seletivos”,
massacram populações inteiras e justificam-se dizendo que são os “danos
colaterais” da guerra contra o terrorismo…
Os estados
promulgam leis violentas, que reduzem os direitos dos trabalhadores e que
saqueiam os bolsos dos pobres; reprimem os imigrantes clandestinos e
repatriam-nos, condenando-os a uma vida sem qualquer perspectiva, de miséria e
de morte…
Nos tribunais,
os pobres têm de esperar vários anos, antes que lhes seja feita justiça (e,
muitas vezes, não há justiça, porque o crime prescreveu, ou o juiz não tem a
coragem de afrontar os direitos dos ricos e dos poderosos); nas repartições
públicas, os funcionários gastam o tempo a tomar café ou a conversar sobre
assuntos triviais e deixam as pessoas a esperar, durante várias horas, que
alguém se digne prestar-lhes atenção; nos hospitais, as pessoas fragilizadas
pela doença têm de esperar várias horas nos corredores, antes que alguém se
digne atendê-las e tomar conta dos seus padecimentos…
Nas próprias
famílias, acontecem casos de crianças maltratadas, impedidas de viver uma
infância normal; e, tantas vezes, a violência familiar derrama-se sobre as
pessoas mais frágeis, quer do ponto de vista físico, quer do ponto de vista
psicológico, quer do ponto de vista econômico…
É neste
contexto que continua a ecoar a palavra de João: “não exerçais violência sobre
ninguém”…
É um apelo a
respeitar o outro, a respeitar a sua dignidade e integridade, a respeitar os
direitos de todos aqueles que vivem ao nosso lado numa situação de fragilidade
e de debilidade. É um apelo a substituir as relações baseadas no poder, na
prepotência, por relações baseadas no amor e no serviço.
O apelo do
profeta João é claro: não é possível acolher o Senhor que vem e embarcar na
proposta do “Reino”, enquanto houver nos nossos corações sinais de
intolerância, de prepotência, de abusos de autoridade, de indiferença pela
sorte dos irmãos que sofrem e que dependem de nós; não é possível Jesus nascer
no nosso coração e na nossa vida quando ainda não nos livramos da tendência
para a injustiça, para a violência e não assumimos uma atitude de humildade, de
simplicidade, de amor e de serviço.
• Diante do
apelo à “conversão”: estou disposto a pôr em causa os meus esquemas (se chegar
à conclusão que eles não se regem pelos critérios de Jesus)?
• Aceito
tentar a ruptura com os valores egoístas e comodistas que ainda podem residir
em mim?
• O que é que
eu teria – prioritariamente – de mudar, a fim de que Jesus encontre um lugar
quente e acolhedor no meu coração e na minha vida?
• Tenho lugar
para as propostas libertadoras que Ele traz, ou estou demasiado apegado às
minhas coisas, aos meus interesses, aos meus pequenos egoísmos?
• Estou
disposto a acolher Jesus – sabendo que acolher Jesus é aderir aos seus valores
e às suas propostas – e, depois, a anunciá-lo, a dá-lo aos meus irmãos?
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